Manoel de Oliveira: sem tendências de tristeza
Quando Catherine Deneuve sentiu vontade de fazer um filme com Manoel de Oliveira, conseguiu contactos para um almoço entre ambos que proporcionasse a oportunidade de um trabalho conjunto. Manoel de Oliveira, então quase a atingir os 90 anos, ter-se-á mostrado muito interessado, mas disse-lhe que no próximo filme que tinha arquitectado não via um papel para a actriz, no seguinte também não, mas no outro que viria a seguir já seria muito possível. Catherine Deneuve ter-lhe-á respondido que naquele instante tinha um rosto possível de filmar, mas três anos depois, se calhar, já não... Oliveira acabou por perceber que nem todas as pessoas têm da vida a mesma noção e que a ideia de que atrás do tempo tempo vem e que a um filme outro se segue com a naturalidade das estações é algo que só para ele próprio faz sentido.
Oliveira e Deneuve acabaram por se entender, como se sabe, quanto ao tempo certo. Manoel de Oliveira trabalhou na última década como se a velhice e a hipótese de morte não existissem. Nunca teve um filme para fazer a seguir a este - teve sempre dois ou três. Ainda agora, quando preparava o filme do ano do seu centenário, andou meses indeciso entre «Singularidades de Uma Rapariga Loira» e retomar um velho projecto do princípio dos anos 50, «Angélica». Decidiu-se pelo primeiro, adaptando um conto de Eça de Queirós, que começou a filmar, em Lisboa, no mês passado, com Catarina Wallenstein como protagonista. E quer, tão depressa quanto possível, começar o outro...
Manoel de Oliveira entre Bulle Ogier e Michel Piccoli, nas filmagens de
«Belle Toujours»
Mas, se o ritmo de trabalho não abrandou, seria estar distraído dizer que nos filmes não aparecem nem a velhice nem a morte. Pelo contrário, se há temática de que Oliveira nonagenário bem se abeirou foi essa. Antes de tudo no abissal «Viagem ao Princípio do Mundo», com Marceilo Mastroianni ferido de cancro a interpretar o papel do próprio cineasta (enquanto Oliveira, irónico, reservava para si um papel de motorista), a falar das suas memórias e da morte perto. Ou no «sketch» inicial de «Inquietude», com um ancião intimando o filho para que se mate se quer salvar-se da decadência física, do ficar morto pela metade - num tom cruel de comédia burlesca. Ou na angústia patética e comovente do actor que já se desentendeu com o mundo e decide fazer o que o realizador nunca fez, retirar-se - no «Je Rentre a la Maison», em que Piccoli é sublime. E, claro, no «Porto da Minha Infância», pequena obra-prima, meio documentário, meio ficção, em que Oliveira olha para trás e o que nos mostra é um mundo que, radicalmente, já não há - outra forma de falar da transitoriedade... E ainda no problemático «Belle Toujours» de que outra coisa fala o cineasta senão do arrefecimento das paixões, da possível vanidade da vida?
Manoel de Oliveira com o Prémio Árvore da Vida-Padre Manuel Antunes
Porto, Dezembro 2007
Só que a consciência da velhice e da morte nunca foram, para este realizador, matéria mórbida. Oliveira é um ser vivo, superlativamente vivo, a rondar os 100 anos de existência, e nos seus filmes o humor, uma última pirueta, um movimento de tango ou um requebro de fado desconcertam-nos e não deixam que mensagens funestas deveras se instalem.
Entre homenagens que, neste ano, se acumularam - das honras de abertura no Festival de Veneza ao preito que todo um congresso ibero-americano de cultura lhe prestou, em Outubro, no México -, Oliveira sempre foi dizendo que a longevidade não é mérito, decerto na inquietação lúcida de que as vassalagens sejam mais pelo século de vida do que pela obra feita. Por isso, assim que pôde, voltou a pôr-se ao trabalho. Estará em filmagens quando fizer 100 anos.
Jorge Leitão Ramos
in Expresso (Actual), 29.11.2008
05.12.2008
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