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Maria Gabriela Llansol

Escrever é o duplo de viver

É realmente extraordinário termos nascido numa dada signografia do há em que a nossa biografia se cruza (e tantas vezes se confunde) com a geografia dos mundos.
Maria Gabriela Llansol, Inquérito às Quatro Confidências

1.

Quase sempre redigida como uma necessária enumeração sequencial de acontecimentos que ligam duas datas — nascimento e morte do sujeito — a nota biográfica tende, paradoxalmente, para um relato que se furta à possível verdade de uma vida. Porque uma vida é também composta por todas as idiossincrasias que resultam de contingências por vezes consideradas menores aos olhos do mundo e que a este se omitem, a possível verdade de uma biografia depende, em última instância, do próprio sujeito. Entre os autores que com agrado aceitam a escrita bio- e autobiográfica e aqueles a quem isso repugna, parece haver lugar para os que preferem alargar o conceito da chamada “biografia do autor”, perspectivando-o de outro modo. Poderá ser o caso dos que escrevem reescrevendo-se dentro da obra, habitando esse universo textual não como narrador mas como figura que entra e sai da escrita, dialogando com todos os outros que aí falam, entrelaçando muitas vezes factos biográficos com outros e com diferentes níveis de realidade, pretendendo que o leitor não faça qualquer distinção entre o livro fechado e o livro aberto, ou seja, que reconsidere também aquilo a que chamamos “o autor”, que não estabeleça hierarquias nem atribua funções determinadas a autores, personagens, leitores, assumindo, assim, a possibilidade de a literatura, e a arte em geral, não ficarem circunscritas a dicotomias como ficção/realidade ou arte/vida, e poderem situar-se fora de um mundo de hierarquias e poder. Significa entender a bio-grafia no seu sentido mais literal — um registo de vida — e aceitar que essa organicidade esteja presente em todas as manifestações do ser, incluindo a da escrita, nunca colidindo com os diferentes reais em que se movimenta. A única salvaguarda é a de manter o sujeito fora de uma subjectividade estéril e inerte, na arte como na vida, e que ele esteja, na sua singularidade, à altura daquilo que lhe acontece, e se mostre aos outros, vivendo e/ou criando mundos, sob qualquer forma digna desse acontecer. Entender a biografia como registo da resposta que continuamente damos ao mundo — não como registo de um passado, mais ou menos anódino, centralizado em consanguinidades e fechado numa busca de “quem sou”, mas como um registo em devir, que se vai construindo e projectando para a frente, procurando dar resposta a “quem me chama”.


Não sou portadora de uma verdade porque a verdade não pode ser transportada mas sofro o impulso de formular perguntas à verdade que vejo como ajuste. Os seres têm um sentimento final de que há um lugar onde chegarão à sua coincidência./ Para cada um a sua.

a verdade não é subjectiva, nem objectiva mas o contorno final e acabado da vida de cada um; a resposta dada, com recta intenção, ao justo apelo. Perguntar «quem sou» é uma pergunta de escravo; perguntar «quem me chama» é uma pergunta de homem livre. (Lansol, FP: 129-130)

Perguntar «quem sou» remete, apenas, para a nossa condição de “ente”, desligado do que existe “fora”, esquecendo que somos num determinado contexto de existência; perguntar «quem me chama» integra o ente que somos numa relação com tudo o que existe fora desse ente — aquilo a que, embora com diferenças, surge nomeado como o “Há”, por exemplo, em Levinas, onde não há nem nada, nem ser, mas impersonalidade, ou em Blanchot, que se lhe refere como o “neutro” ou o “fora”:

De facto, insisto na impersonalidade do «há»; «há», como «chove» ou «é de noite». E não há nem alegria nem abundância: é um ruído que volta depois de toda a negação do ruído. Nem nada, nem ser. Emprego, por vezes, a expressão: o terceiro excluído. Não pode dizer-se deste «há» que persiste, que é um acontecimento do ser. Não se pode também dizer que é o nada, ainda que não exista nada. (…) [Para Blanchot] é um acontecimento que não é nem o ser nem o nada. (…) Blanchot chama a isso «desastre», o que não significa nem morte nem infelicidade, mas como se o ser se separasse da sua fixidez de ser, da sua referência a uma estrela, de toda a existência cosmológica, um des-astre. (Levinas, 1982: 40-42)

Em Maria Gabriela Llansol, o “há” parece distinguir-se do de Blanchot e de Levinas. Ao “há” como densidade existencial do próprio vazio, acrescenta outra dimensão: não sendo um vazio como nada (a isso chama o “não-há”), mas um vazio prenhe de possibilidades, de densidade existencial, não será um não-sentido (como em Levinas), mas o lugar de possibilidades de sentido; o “há” de Llansol é um lugar de encontro com o ser ou o lugar onde os seres chegarão à sua coincidência, logo, à verdade do seu sentido; o “há” existe na relação com o sujeito e é na relação que o sentido se produz:

eu sempre desejei que houvesse um ponto de coincidência de todo o espaço, de todos os factos, de todas as espécies, de todos os reinos. Apenas do Há, entenda-se. Porque a sua força de coesão é sinónimo de memórias dispersas reunidas, de narrativas transactas em concórdia. (Llansol, P: 42)

“mas todos nós somos há, apenas diferimos no uso da sua força de coesão” (Lansol, P: 67)

Se cada um escolhe o seu há, por mais motivos que tenha _______ é sempre uma inclinação e um querer pertinazes. Um gosto, e uma dada grafia de corpo. (Llansol, IQC: 74)

Enquanto para Levinas, a única possibilidade de sair do “há” é o ser-para-o-outro, numa relação des-inter-essada, em Llansol não se trata de sair do “há”, mas de procurar no “há” a coincidência do próprio ser, sendo que como esta coincidência implica a mútua não-anulação, logo, não tem necessidade de se afirmar como ser-para-o-outro, pois nessa coincidência está já implicada a responsabilidade pelo outro.

terra é todo o lugar onde uma consciência se encontra com o há, e aprende a discernir-lhe as cores.

O que procuro é ver onde a continuidade do há se fractura, onde muda de registos e de sinais, (…). Quando nos apercebemos de que o há é há, não somos só parte dele. Acrescentamos-lhe um ver criador ______ criamos, modificando-lhe a paisagem. (…) O que hoje me cabe é ver sinais, e projectá-los com toda a força de impacto de que dispuser. Sobrepondo-os e desenvolvendo as consonâncias que desenvolvem entre si. (…) Recomeçar o ver todos os dias, tentar que a energia que me gasta me dê mais energia, procurá-la nos filamentos mais ténues do real que tenho à mão, (…). Ver é fazer e desfazer. É criar linguagem. E criar-me. (…) Em qualquer mundo, / serei dita e direi. (Llansol, IQC.: 168-169)

A arte poderá ser esse lugar, ou lugar do “há” onde o ser chega à sua coincidência. É também o lugar daquilo que Llansol designará por “mais-paisagem”, ou ver criador, que intervém no “há”, transformando-o. Assim sendo, a arte não estará separada da vida, cada uma com a sua função exterior; fazem parte uma da outra, implicam-se, pois enquanto mundos do mundo, ou diferentes níveis de realidade, elas só existem em relação, não estando previamente determinadas, mas interagindo na complexidade de um devir. A identidade de cada uma advém da relação, e isso não separa a arte da vida, antes as põe em diálogo para mostrar diferentes formas de inscrição do/no “há”. O que poderemos evitar não são as ligações entre a arte e a vida, sua condição, mas a queda em hierarquias, a servidão de uma à outra – por um lado, a arte encarada como culto ou transcendência, por outro, a voluntária adaptação do artista ao mercado e ao consumo (tendência posta em prática, por exemplo, pelo pós-modernismo), que retira à arte o seu direito à mudança, ao novo, ao improvável, perdendo-se nos caminhos do imediato e do fácil, tendo como consequência a sujeição ao poder:

“Quem colabora nesta desvitalização da literatura fá-lo em proveito de uma posição de poder pessoal e de grupo que vai contra a memória e a dignidade daqueles que não usaram, e não usam, a literatura, aqueles que a retiraram, retiram, ao campo do poder, que é sempre o da fixação.” (Lopes, 2003b: 23).

A resistência à mudança e o gosto pela espectacularização, a opção pela novidade em detrimento do novo, levam à “desvitalização da literatura”, à transformação da obra em produto, à anulação da capacidade e possibilidade de ruptura, ao desaparecimento daquilo que nela é salvaguarda de liberdade. O novo cria instabilidade, gosto pela mudança, e quando se pactua com o “horizonte de expectativa” vigente, deixa de haver lugar para o novo. O “culto do autor” foi substituído pelo “culto da mercadoria”, do descartável, da enganadora máscara do legível que nada acrescenta e só cria imobilidade. Mas, por outro lado, este culto da mercadoria traz ainda consigo a recuperação de uma noção de autor, que dissolvendo-se numa maioria a que se submete, paradoxalmente, vai no sentido de uma promoção do eu, mas de um eu que se esvazia do que lhe é singular. Recusar o “não-comum da singularidade” (ibid.: 12), dissolver-se no comum e no mesmo, significa aceitar a lógica das instituições que, ao excluir o diferente, pretende alisar e tornar homogéneo o que de vital existe em cada um — a sua capacidade de insatisfação, o direito de fuga ao mesmo, a possibilidade de devir e, na perspectiva llansoliana, o seu encontro com o “há” ou a possibilidade de chegar à sua coincidência.

Uma sociedade que exclui o heterogéneo só pode afirmar-se pelo “Incaracterístico”, “o protagonista destes tempos”, “senhor absoluto da acção, autor, actor, espectador, do novo irrisório espectáculo que traz à cena”:

Em quem quer que se lhe oponha, o Incaracterístico vê um ser incompreensível (…). Para o Incaracterístico, quem não lhe é idêntico não tem identidade, nem tem direito a ter identidade.

A Grande Absurdidade é a fracção de universo percebida pelo Incaracterístico. Inclui a rede planetária de circulação da mercadoria, e denega todo o demais mundo.

A palavra, vivaz e violenta, que era filtro e fogo da estranheza do Eu perante o Ser, evolou-se e deixou um resíduo sem espessura. (Vieira, 1994: 8, 48)

O Incaracterístico é, pois, o protagonista de uma época que não se aventura na espessura do mundo, que evita o desconhecido, o risco, o estranho, ainda que estes possam ser sinais de mudança e de novas possibilidades, uma época em que o uso da palavra parece reduzir-se à sua capacidade de comunicação imediata, demitindo-se da possibilidade de gerar pensamento, de se autoregenerar, de experimentar (sem cair em experimentalismos autotélicos) novos modos de dizer. E é essa possibilidade de ser outra coisa que não o mundo, que faz entrar a palavra no domínio do literário cujo campo há muito se alargou para além dos domínios da ficção.

Não é o poder ser apresentada como exemplo de um mundo que é fundamental numa obra literária, é, pelo contrário, o ser a forma exacta que não é um mundo. Essa forma exacta onde o mundo se dissipa só pode ser acontecimento, e este implica sempre a linguagem como afirmação do duplo, que não é cópia nem consequência lógica de um original. (Lopes, 2003b: 102-103)

A afirmação do duplo abre caminho a outra realidade possível, que não é cópia como resultado de um original, mas criação a partir de uma matriz que se molda, e que pelo trabalho da matéria verbal cria o novo. É um trabalho de musicalidade e dissonâncias, de ritmo. “O texto não se escreve com sentido, mas com ritmo” (Llansol, P: 151); o que a palavra faz é figurar o real, mais do que representá-lo.

Noto que eu não espero para escrever, nem deixo de escrever para passar pela experiência que produz a escrita; tudo é simultâneo e tem as mesmas raízes, escrever é o duplo de viver; poderia dar como explicação, que é da mesma natureza que abrir a porta da rua, dar de comer aos animais, ou encontrar alguém que tem o lugar de sopro no meu destino. (Llansol, FP: 73)

O duplo não é a representação do outro, mas o que está quando o outro se ausenta, a sua figura, o que age pelo outro, o que naquele momento é ele e não o outro, ora um ora outro. O que nos leva a pensar que a escrita, no caso de Llansol, não procura representar o real, é uma experiência de figuração do real  — “escrever é o duplo de viver” porque a vida e a escrita são o duplo uma da outra, são duas experiências pelas quais se passa, e com as duas se caminha; como Maria Gabriela Llansol já tem dito, “a escrita é uma anotação progressiva da própria vida” - anotar não significa representar, é antes, como diria Spinoza, o “modo” ou extensão da realidade, como o corpo é a extensão da mente, a sua figura; não dizemos que se representam um ao outro, dizemos que são duas páginas de uma mesma folha, dois modos de uma mesma essência; escrever será um modo de figurar o que existe na experiência da mente, aquilo que existe, embora não seja real no mesmo plano (os “existentes não-reais”). O caminho da arte pode não ser o da representação, mas o da figuração; enquanto faz, enquanto figura, ela é acontecimento e gera o lugar do possível, do que ainda não tinha tido “anotação”, figuração — o que é preciso é juntar os sinais que, reunidos num determinado dispositivo, mostram onde a realidade do possível está; encontrar as palavras que “forçam a pujança a manifestar-se no vivo” (Llansol, “O Espaço Edénico”, in CJA, 2ª ed.: 157). Ao juntar sinais num determinado dispositivo, estamos a inscrever a realidade do texto no mundo, texto que é um mundo real e único no seu modo de dizer o mundo. Manuel Gusmão sublinha como, em Llansol, essa inscrição deve ser entendida literalmente:

Na obra de Maria Gabriela Llansol, o mundo do texto torna-se caminho e inscrição no «texto do mundo». A escrita e a leitura são o abrir de sendas ou veredas, rios, jardins ou desertos no mundo e isso que fazem deve ser tomado «literalmente e em todos os sentidos», como o escreveu Rimbaud. Esta incisão da escrita no corpo da terra é possível enquanto experiência da plasticidade da matéria figural e da materialidade da figura, experiência que inventa ou dá forma a uma nova sensibilidade. (Gusmão, 2004: 284)

A partir da experiência da plasticidade, há toda “uma nova forma de sensibilidade” que pode ser criada. Não se trata aqui de recuperar a ideia tantas vezes referida relativamente à literatura, e à arte em geral, de que é possível criar mundos a partir do literário, o que também não é alheio a esta escrita. Mas o que parece importante salientar como “novo” na escrita llansoliana não é a capacidade de “criar mundos” a partir de um imaginário concebido no texto, e sim o facto de esta escrita partir de dados muito concretos do real, não do imaginário mas dessa “anotação progressiva da própria vida”, e desencadear um processo de significação desse real através da “figuração intensamente metamórfica, ou regida por uma múltipla metamorfose de um espaço-tempo de várias maneiras compósito, transtemporal ou transmigrante” (ibid.: 285), figuração adentro do discurso, que obriga a uma mudança de olhar para poder ser lida, o que por sua vez desencadeia um modo diferente de estar no mundo, essa “nova sensibilidade” de que fala Manuel Gusmão, pelo facto de se “viver o discurso e a sua dinâmica”, como refere Silvina Rodrigues Lopes, a propósito d’O Livro das Comunidades, e que nos parece possível alargar a toda a escrita llansoliana:

Não se trata de fazer mundos, mas de habitar, viver o discurso e a sua dinâmica como uma espécie de encantamento. (Lopes, 2003a: 191)

O que não exclui que essa “coabitação” possa gerar alguma esperança, como Manuel Gusmão acrescenta:

Os mundos podem também ser compossíveis ou alternativos. Eu diria que o desejo da compossibilidade desses mundos torna o mundo-texto “Llansol” alternativo à versão de mundo hoje dominante no mundo contemporâneo e, se estou a ler bem, isso lhe agradeço. Se estiver a ler mal, agradeço-lhe na mesma. (Gusmão, 2005)

Em Ways of Worldmaking, Nelson Goodman, cuja obra é muitas vezes referida a propósito de questões como as aqui enunciadas, tenta mostrar como os “Modos de fazer Mundos” (título da tradução portuguesa; Porto, Asa, 1995) estão relacionados com o conhecimento, com diferentes modos de descrição, com diferentes formas de verdade, de crença e de ponto de vista. A questão do “ver”, segundo Goodman, não diz respeito ao facto de vermos ou não vermos o que está à nossa frente, o que seria óbvio, mas de vermos ou não vermos o que não se apresenta aos nossos olhos — neste caso, o “ver” depende de nós, do que fazemos (ou não)com isso. No capítulo intitulado “The Fabrication of facts”, Goodman mostra a importância deste “fazer”, e expõe claramente por que está em desacordo com “ aqueles fundamentalistas que sabem muito bem que os factos se encontram e não se fabricam, que os factos constituem o único mundo real, e que o conhecimento consiste em acreditar nos factos.”(Goodman, 1978: 91). Para esses, “a expressão «fabricação de factos» soa estranha, tornou-se sinónimo de «falsidade» ou de «ficção», contrastando com «verdade» ou «facto»”. O que Goodman salienta é que, embora se deva distinguir «falsidade» e «ficção» de «verdade» e «facto», “não podemos fazer essa distinção com base no pressuposto de que a «ficção» se fabrica e o «facto» se encontra.” (ibid.: 91). Para ele, não faz qualquer sentido manter a ideia de uma realidade em si, independentemente das diferentes versões que dela existem, pois estas constituem modos de representação dessa realidade, fazendo assim parte dela. Ainda que controversa, o mais significativo e enriquecedor nesta problemática é o facto de se poderem discutir as diferentes versões e as suas vantagens e possibilidades. É neste aspecto que o livro de Goodman pode ler-se com a obra de Llansol — criar “versões” do mundo, criar linguagem a partir do ver criativo, é criar uma realidade possível porque é criar acontecimento. E o texto literário é hoje, na sua especificidade, a forma desse acontecer.

Se a partir de um ver criativo se cria linguagem e esta tem a capacidade de gerar pensamento, a frase de Maria Gabriela Llansol, “o jardim que o pensamento permite”, dá conta, até pela sua ambiguidade, de toda uma poética da criação — o “jardim” é apenas O Lugar onde o pensamento e a linguagem podem trocar de presença, e nessa troca criar mundos porque se trata de “viver o discurso e a sua dinâmica” (Lopes, 2003a: 191). O “jardim”, em Llansol, é o lugar onde o possível é figurado e ganha realidade — o possível é o real que ainda não aconteceu porque ainda não foi “anotado” —,  é o lugar de manifestação de uma nova verdade. Quando o discurso deixou de ser manifestação da verdade do sujeito para passar a ser manifestação da verdade da própria linguagem, o literário continuou ainda na fase da representação e a manter a dualidade mundo verdadeiro/mundo não verdadeiro, realidade/ficção; foi preciso criar uma nova categoria — a do “possível” — para perceber outros modos de ligação ao mundo. A realidade possível não é manifestação da verdade do sujeito, também não é uma manifestação da verdade da linguagem, com autonomia em relação ao sujeito, é antes a manifestação da verdade dessa “possibilidade”, a verdade dessa figuração. Num breve diálogo com Musil, em Um Falcão no Punho, Llansol dá conta do modo como, em lugar de trazer a realidade para o texto, a escrita pode levar o “possível” para a realidade:

É frequente em Herbais o tempo, sem luz, tornar-se verde;

Ele (Musil) diz: — O dom de envolver a realidade numa atmosfera sugestiva  (o poeta).

Eu digo: — O dom de envolver uma atmosfera sugestiva na realidade (que procuro desenvolver pouco a pouco, e a que chamo escrita, seja ou não expressa verbalmente e incorporada, por sinais, no papel). (FP: 63-64)

A esta escrita que tem o dom de “envolver”, que pode ser figuração e não representação da realidade, também Llansol chama “uma confidência envolta” ou “conto”, remetendo para um tempo em que dizer ou contar era sinónimo de criar, ou de “envolver confidências”:

Estou quase a acabar «Contos do Mal Errante». Chamei-lhe contos, não por ser um livro de contos mas porque, em cada parte de si mesmo, é uma confidência envolta. (Llansol, FP: 92)

 

2.

A especificidade do literário, tantas vezes procurada no conceito de “literariedade”, a partir da primeira década do século XX e muito em particular pelos Formalistas russos e por toda a crítica estruturalista, ganha novos contornos numa sociedade que, se por um lado tende a desconstruir as noções de testemunho e de ficção, alargando os respectivos campos e fazendo-os interagir, por outro, tende a neutralizar todo o efeito de estranheza que a palavra cria quando, dando lugar ao possível, cria o novo. E é no novo que os estudos literários encontram matéria de reflexão.

Aristóteles falara da necessidade de a língua poética ter um carácter estranho ou surpreendente, e Chklovski, em 1917, em “A Arte como Processo”, referia-se à necessidade de libertar o objecto do automatismo perceptivo, para que se pudesse continuar para além do reconhecimento: “A finalidade da arte é dar uma sensação do objecto como visão e não como reconhecimento” (in, Todorov 1965, II: 73-95); ou, como dirá em 1919 ao referir-se à literatura, “o caminho onde o pé sente a pedra”; salientava nas grandes obras aquilo que definiu como o “processo de singularização”, que consistia em não chamar o objecto pelo seu nome, mas em descrevê-lo como se estivesse a ser visto pela primeira vez, para que a percepção pudesse ser prolongada:

O acto de percepção em arte é um fim em si e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto, aquilo que já se «tornou» não interessa à arte. (ibid.: 82)

O carácter estético é, assim, como também afirma, “criado conscientemente para libertar a percepção do automatismo” (ibid.: 92). Toda esta questão, continuamente referida como a especificidade do literário, é observada por Maria Gabriela Llansol de um modo mais abrangente – extravasando o domínio da arte, o ver para além do reconhecimento do objecto é, em Llansol, um modo de vida, uma ética, e um dos modos do seu Texto, já que a estética que o orienta se baseia num modo de ver, num processo de “mais-paisagem”, que orienta também o seu ver quotidiano que é estético e sobre o qual uma contínua reflexão ética se projecta, como se ética e estética dialogassem através de uma etologia prospectiva que evolui na escrita. A etologia, ou estudo dos comportamentos em sociedade, inicialmente considerada em relação às chamadas “sociedades animais”, e hoje alargada às “sociedades humanas”, parte do princípio de que as culturas são constituídas por conjuntos coerentes de comportamentos, e de que podemos caracterizá-las através dos seus modos de inserção no real. A esses modos, Jean-Éric Aubert chama “ethos”, e acrescenta um exemplo elucidativo que, aliás, não é despiciendo para o texto llansoliano, com o qual poderíamos fazer uma análise deste tipo para tentar perceber algo que há muito pre-ocupa os seus legentes — como é que este Texto produz significação, qual o modo de inserção deste Texto na chamada Literatura e no real, sendo que o real é a parte da realidade que permanece indizível, “que resiste em acto ao instituído, à realidade, e impede que esta se feche, impede que esteja tudo dito” (Lopes, 2005: 256). Poderíamos dizer “Qual o seu estilo?” (segundo Genette, também o estilo, como os comportamentos, se encontra nos pormenores), mas teríamos de nos limitar a analisá-lo apenas no seu interior, esquecendo que ele tem também uma força centrífuga, o que nos leva a querer interrogá-lo na confluência de dois modos, o ético e o estético enquanto experiências que se projectam uma na outra.

O ethos manifesta-se nos pormenores. (…) Comparemos os jardins. Um jardim francês aparece como um dispositivo geométrico que fez tábua rasa do que existia. Um jardim inglês resulta de uma combinação com a natureza, como se se quisesse produzir um quadro. Um jardim japonês procura construir uma harmonia entre o homem e uma natureza cuidadosamente cultivada. Daí resultam três modos diferentes de inserção no real. (Aubert, 2004: 15)

Os mesmos princípios de coerência parecem aplicar-se aos dispositivos antropológicos sobre os quais se constroem as sociedades. Esses dispositivos resultam de condições objectivas nas quais as sociedades se constituíram e influenciam depois as suas trajectórias de desenvolvimento.

Identificar os ethos, compreender as suas origens, prever os seus efeitos, são os objectivos de uma análise etológica. (…) A partir dessa análise chega-se à conclusão de que o desenvolvimento resulta da capacidade de ultrapassar os hábitos criados pelos condicionalismos antropológicos e históricos próprios a cada sociedade. (ibid.: 16)

O texto llansoliano ultrapassou os condicionalismos literários da narrativa; poderemos dizer que tem um modo de inserção, ou ethos, estético, no sentido em que não se constitui através de um modo de pensar que toma uma determinada forma, nomeadamente dentro de parâmetros narratológicos, mas através de um modo de ver que cria mais-ver; a qualidade do seu ver não se dá numa forma fechada de pensamento, mas no próprio acto de ver posto em linguagem. Como Llansol refere, é esse o seu modo ou “qualidade”:

Essa qualidade tem o nome de estética. É, pois, desse modo, que eles [os textos] se dirigem ao real, e não sob o modo filosófico ou teológico. (Llansol, LL 1: 140)

Daí que a ética que orienta Llansol e o seu texto, como lugar de permanente reflexão em linguagem, não possa desligar-se do seu “modo” ou ethos estético, pois é deste modo que o texto se dirige ao real e nele se insere, projectando na escrita, através de um ver criativo, novas formas de real e de comportamento que partem de um ponto de vista estético.

Ponto de partida para aprender a olhar as coisas como se as estivéssemos a ver pela primeira vez, o “ver criativo” pode começar pela opção de sair da simetria, prolongando assim a percepção do objecto, e em última instância levar, através dessa perspectiva estética, a uma maior consciência dos diferentes modos de estar no mundo, criando uma ética que dá a ver, que mostra ao ser humano como “trocar de presença” com os outros vivos para poder ser responsável pelo outro e entrar num mundo de “mútua não-anulação”, pois “ser-se humano é evolutivamente um progresso de leitura mas não é um privilégo, nem uma superioridade, nem um dado adquirido, / é um lado/ mais legível do que outros para dar continuidade/ e orientação à emergência do vivo no seio do universo” (Llansol, OVDP: 187-188). Ver será, pois, e como resultado, outra coisa ainda — a capacidade de assumir outro ponto de vista, trazendo-o para a realidade e pondo-o a agir pela mútua não-anulação entre os vivos:

Viver com as imagens é a nossa arte de viver. Reparem, sem o seu fulgor, não saímos da simetria. E nesta nada vemos. Vamos presumir uma saída. (…) Não podemos desejar o novo e querê-lo sem surpresa. (ibid.: 34)

sentei-me fora da minha natureza, e reparei (ibid.: 182)

A mudança de olhar abre um campo vastíssimo ao vivo (ibid.: 215)

sei-o porque aprendemos a trocar de presença, / em mim é humana,/ nele sou cão (ibid.: 299)

Sentar-se fora da sua natureza é aprender a trocar de presença com o outro e entrar na mútua não-anulação. Sair da simetria passa por acrescentar ao ver um ver criador — ensaiar uma nova imagem a partir da imagem dada ou, como Maria Gabriela Llansol mostra, passar da paisagem à “mais-paisagem”.

Nesta perspectiva, o conceito de “autor” reveste-se de uma particular incidência em Llansol. “Autor” é aquele que opera a mudança da paisagem à “mais-paisagem”, que age, não como quem tem autoridade para, mas como um actor, que sabe “sentar-se fora da sua natureza”, e como um ensaísta, em deriva, como quem vai ensaiando na escrita o que sabe e procurando o que daí advém, e mostrando, na própria escrita, esse seu modo; nesta relação está também implicado o legente — quem aqui escreve, escreve para contar coisas àqueles que, por sua vez, pegam nelas para as contar a outros. É um processo, e um contrato, ininterrupto — contos como “confidências envoltas”, crenças, encontros, que se vão levando e dando pela mão da escrita:

sempre que sei, não escondo ______________

O contrato que me liga ao legente é da ordem da compaciência; avanço por um caminho que não garanto, e vou «dizendo» (Llansol, OVDP: 185)

«(…) uma confidência: um dos lugares onde começa o mundo.» / «Um dos lugares de onde jorra a imanência…» (Llansol, OVDP: 47)

— O texto é, então, a arte do verbal, do olhar, da confidência e do paraíso? /  — Do verbal e do olhar. Do paraíso, talvez. / — Talvez? / — Depende do olhar. É a arte do . Do que entre. / — E a confidência? / — É o que estamos a sofrer… O que há entre os olhares. (Llansol, IQC: 44)

A confidência pode, talvez, ser entendida como uma afecção, o efeito ou acção que um corpo produz sobre outro, uma affectio no dizer de Spinoza, e que constitui aquilo a que ele chama as “ideias-afecções” ou o primeiro grau do conhecimento, ainda só um conhecimento dos efeitos sem as causas. Se a confidência “É o que estamos a sofrer… O que há entre os olhares”, como diz Llansol, ela é uma afecção e, como tal, pode gerar afectos, pois a capacidade de ser afectado varia de corpo para corpo e gera diferentes afectos. O que define um corpo, uma espécie, é a sua capacidade de ser afectado; o que distingue uma rã de um macaco, diz Deleuze continuando Spinoza, é o facto de eles não serem capazes das mesmas afecções; em diferentes culturas, os homens não são capazes das mesmas afecções nem dos mesmos afectos — por isso, Deleuze fala da necessidade de se fazerem “mapas de afectos” para os homens e para os animais, concluindo que esse “mapa etológico” seria bem diferente das conhecidas classificações de espécies e géneros. Ao propor que cada um se “sente fora da sua natureza” e olhe, Llansol está a indicar-nos um modo de percebermos qual a capacidade que o nosso corpo tem de ser afectado e que afectos ele gera.

Tudo depende do olhar, do ponto de vista, das escolhas e dos encontros. Por isso, o autor ensaia e actua — é esse o seu drama (que na origem significa “acção”), esse o seu agir. Como o ensaísta, move-se “segundo um impulso de aventura, não sistemático” (Lopes, 2003b: 165), e sabendo que “Não há propriamente verdade que o ensaio persiga, quando muito revérberos dela nas coisas.” (Barrento, “Geografia do Acaso”, in Moura, 1997: 95); como o actor, sabe que a sua arte é devir e o seu caminho errante.

 

3.

Toda a reacção desencadeada nos finais dos anos sessenta por Roland Barthes e Michel Foucault, ao proclamarem a então chamada “morte do autor”, salientava principalmente o momento positivista como aquele que transformara a pessoa do autor numa figura de culto e a obra numa espécie de relato subjectivo do autor. Embora referindo autores pioneiros nessa reacção, como é o caso de Mallarmé ou do movimento surrealista, que dessacralizou a imagem do autor, Barthes considera, ainda em 1968, a existência de um verdadeiro “império do autor”. Embora as vozes de Barthes e de Foucault se centrem ambas na problematização do sujeito e no emergir da escrita, seguem, no entanto, orientações diferentes. Barthes considera a escrita como um “neutro” e destruição da voz, “o preto-e-branco aonde vem perder-se toda a identidade, a começar precisamente pela do corpo que escreve” (Barthes, 1984: 49), e afasta o autor e a ideia da sua anterioridade face ao texto, substituindo-o pelo “scriptor moderno [que] nasce ao mesmo tempo que o seu texto” (ibid.: 51), já que o único tempo que existe é o da enunciação. Sucedendo ao autor, o scriptor aponta para uma outra figura – a do leitor — que não tem história, nem biografia, nem psicologia, sendo o lugar para onde converge tudo o que está na escrita e, portanto, o seu destino e não a sua origem. O leitor “é apenas esse alguém que tem reunidos num mesmo campo todos os traços que constituem o escrito.” (ibid.: 53). Como também afirma, o preço a pagar pelo advento do leitor é a morte do autor.

Mas o scriptor é desde sempre a figura do copista, aquele que reúne quem escreve e quem lê, sobrepondo em si os dois momentos de um texto — o da representação e o da recepção; é, portanto, uma figura da completude e o melhor comentador de um texto. Ao substituir o autor pelo scriptor, Barthes, anunciando a “morte do autor”, não suspende a escrita privando-a de um sujeito, o que faz é anunciar a metamorfose do autor, a sua ressuscitação, acrescentando-lhe mais um ponto de vista, e trazendo-o de imediato ao seu tempo, através da figura do scriptor. Paralelamente, em Maria Gabriela Llansol, a figura do legente pode aparecer também com o S de scriptor, reunindo em si quem escreve e quem lê, e não apenas como um escritor-leitor a ler o seu texto; o duplo aparece também no momento da escrita — “alguém o escreveu que não sou só eu”:

O Livro das Comunidades: / como este livro é belo; releio-o ao corrigir as últimas provas; alguém o escreveu que não sou só eu; se assim foi, tornei-me profundamente seu amigo; tem um S por nome — Sol de noite; sibilo; mas só encontro o ar derramado por ele que circula na casa, /     scriptor. (F: 182)

O scriptor, em Llansol, está do lado de quem escreve, como em Barthes, mas espera, explicitamente, pelo outro que virá ler — está do lado da escrita e da leitura, é um híbrido, escrevente e legente do texto, “sol de noite”, fazendo alternar luz e escuridão e conciliando-as na claridade desse sol de noite.                         

Enquanto Roland Barthes, antecipando H.-R. Jauss e a “Estética da Recepção”, se centra já no emergir da figura do leitor, num texto conciso em que opta por mostrar a inevitabilidade dessa substituição do autor pelo leitor, Michel Foucault faz, no seu texto, uma análise detalhada da figura do autor. Para Foucault, enquanto autor que dá um nome de escrita a um conjunto de textos, quem escreve não pode subtrair-se a determinados traços característicos constituintes daquilo a que chama a “função autor”, mas pode demarcar-se de uma posição autoral que considera a superioridade de um dos vários “eus” presentes no discurso, relativamente aos outros também presentes:

De facto, todos os discursos que são providos da função autor comportam esta pluralidade de “eus”. (…) A função autor não é assegurada por um destes “eus” à custa dos outros (…), que aliás não seriam então senão o seu desdobramento fictício. Importa dizer, pelo contrário, que em tais discursos a função autor desempenha um papel de tal ordem que dá lugar à dispersão destes (…) “eus” simultâneos. (Foucault, 1969: 55-56)

Foucault analisa toda esta problemática do “autor” com vista a uma análise histórica dos discursos, considerando a necessidade de os estudar nas modalidades da sua existência:

“Talvez seja tempo de estudar os discursos não somente pelo seu valor expressivo ou pelas suas transformações formais, mas nas modalidades da sua existência: os modos de circulação, de valorização, de atribuição, de apropriação dos discursos variam com cada cultura e modificam-se no interior de cada uma; a maneira como se articulam sobre relações sociais decifra-se de forma mais directa, parece-me, no jogo da função autor e nas suas modificações do que nos temas ou nos conceitos que empregam. (ibid.: 68-69)

A partir daí, importa saber que lugar um sujeito pode ocupar em cada tipo de discurso, sob que condições e que funções ele pode exercer; no entanto, e como “a função autor é apenas uma das especificações possíveis da função sujeito” (ibid.: 70), Foucault considera não ser indispensável que a função autor permaneça constante na sua forma, o que leva a concluirmos que, em última análise, a sua posição se encontra com a de Beckett (que ele refere no seu texto), quando com ele afirma “Que importa quem fala”, e com a perspectiva llansoliana de indiferenciação de vozes no Texto. Manuel Gusmão, no posfácio que escreve para a segunda edição de Contos do Mal Errante, ao analisar as diferentes vozes deste texto de Maria Gabriela Llansol, mostra como a questão do “autor” se põe nesta escrita:

o texto é corpo-[e]-sujeito, e se nele todos poderão vir a escrever (ler), a autoria pode entretanto ser pensada como a não coincidência consigo de um mesmo nome próprio que é simultaneamente várias figuras e uma assinatura.

Escrita e autor implicam-se e afectam-se, mas são diferentes formas de sujeito e as posições da tradição biografista e psicologista, bem como as da tradição formalista são necessariamente subvertidas, se é a escrita quem ironicamente («intimamente») conhece o seu (dela) «autor» e não o seu suposto «primeiro autor», nem «pai» nem «proprietário». Esta escrita de é matéria figural e figuração de um sujeito que indicia a singularização de uma comunidade ‘sem deus nem senhor’. (Gusmão, 2004: 280-282)

Claro que é necessário não confundir uma análise da “função autor” com uma análise de vozes no interior de um texto. No entanto, em Llansol, e segundo o que tem vindo a ser referido, essa fronteira é muito ténue, às vezes praticamente inexistente. E se isto acontece, talvez seja porque o que lhe interessa, quando escreve, “é saber em que real se entra, e se há técnica adequada para abrir caminho a outros” (Llansol, FP: 55). A dissipação da “função autor” era algo que Foucault, em 1968, só poderia imaginar:

Podemos imaginar uma cultura em que os discursos circulassem e fossem recebidos sem que a função autor jamais aparecesse. Todos os discursos, qualquer que fosse o seu estatuto, a sua forma, o seu valor, e qualquer que fosse o tratamento que se lhes desse, desenrolar-se-iam no anonimato do murmúrio. (op. cit.: 70).

Talvez Foucault pensasse num possível “autor” já não como “autor-idade”, mas também como actor e ensaísta de linguagem e de mundos, essa figura da errância que não se fixa e que, pela fuga sempre latente, pode manter-se à margem do poder; considerando desejável que um autor não repetisse o seu nome de cada vez que publicasse um livro, Foucault parecia ambicionar não só que o sujeito não se encerrasse numa qualquer subjectividade estéril e comprometida, mas que a escrita se afirmasse fugindo às malhas do poder e o escritor à sua trágica condição de autor, que apenas se encontrasse naquilo que escreve com os que têm um mesmo nome de escrita:

Pelo jogo das leituras escolhidas e da escrita assimiladora, deve tornar-se possível formar para si próprio uma identidade através da qual se lê uma genealogia espiritual inteira. (Foucault, 1983: 144)

_______________ durante estes meses procurei uma geografia — não uma biografia, e muito menos uma ficção — , sobre as relações deslumbradas e doridas entre escritores. Parti em busca da natureza da relação escritural de obras (…) que não sendo, de facto, construídas nos mesmos pressupostos,/ acabam por chocar,/ cada uma com a sua velocidade própria,/ com o mundo, a sua significação e a sua evanescência.       A certa altura, escrevi mesmo que essa geografia era, antes e sobretudo, uma signografia-sobre-o-mundo. (Llansol, IQC: 167)

Se a biografia de alguns “se cruza (e tantas vezes se confunde) com a geografia dos mundos”, como foi dito em epígrafe, é porque não está presa nas malhas da subjectividade; considerando que um “eu” pode ser singular mas não subjectivo, quem escreve pode sempre entrar e sair do Texto, qual figura biotextual que, pertencendo à vida-no-plano-da-escrita, não compromete nem anula o próprio de cada um. Assim sendo, e como sugere Maria Gabriela Llansol, aqueles cujo nome pelo qual são chamados é um verbo — “escrever” —  talvez entendam a biografia como uma cartografia dos seus encontros de  escrita, dos múltiplos diálogos entre os que, em qualquer plano, se sentem “semelhantes na diferença”, e cuja singularidade, na vida como na obra, tem por base uma energia operante que é factor de mudança e de criação do novo, em qualquer mundo ou “geografia imaterial por vir”.

A quarta confidência/ é sobre o desejo e a repulsa da identidade. (…) De facto, deram-nos um nome, o nome por que nos chamam, mas não é um consistente –— é um verbo./ O nosso verbo, por exemplo, é escrever. (Llansol, IQC.: 48)

Entre Amar Um Cão e o cão que eu amei há apenas o ressalto de uma frase. (…) Está em causa o que me move a escrever (o mundo) e o que me faz sentir (a literatura). São quase sinónimos. E são-no quase porque, entre a literatura e o mundo há ainda o ressalto de uma frase. Este ainda é precioso. (…) O ressalto da frase é, propriamente falando, vital. Sem ele, os nossos corpos não poderiam respirar. Teriam falta de desconhecido. (Llansol, SH: 234)

No ressalto de uma frase se joga o literário — “a literatura tem de continuar a destrinçar os mundos no mundo” (ibid.: 36) e quem escreve, a viver com “o desconhecido que nos acompanha”.

 

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Maria Etelvina Santos

in Como uma pedra-pássaro que voa, ed. Mariposa Azual

22.12.2008

 

 

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Capa

Como uma pedra-pássaro que voa

Autores
Maria Etelvina Santos

Editora
Mariposa Azual

Ano
2008

Páginas
280

Preço
€ 16,20

ISBN
978-972-8481-12-4

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