Que seria dos pobres se não fossem os pobres?
A escrita do Padre Américo é uma ferramenta poderosa, simples e profunda, terna e irritada, comovente e irascível. Padre Américo, o fundador da obra O Gaiato, nasceu há 121 anos e morreu ainda eu não era nascido. O que me faz parar, neste mundo em que, de estímulo em estímulo, somos estimulados a nunca parar, num homem que desapareceu nos anos 50 e que o frenesim mediático não tem tornado presente? A surpresa de me achar a ler "Páginas Escolhidas" (ed. Modo de Ler) que, reunindo os seus escritos dispersos, a Inova publicou em 1974 e que agora se reedita.
Comece-se a ler "Páginas Escolhidas". Ao fim dos primeiros parágrafos, acontece aquilo que só é possível nos grandes escritores: estamos presos ao livro. Que há de assinalável nele? Trazer, transportado de meados do século XX, algo que interpela o que andamos a fazer hoje. A obra coloca-nos, sem aviso prévio, perante o mais fundo dos problemas das sociedades, o da desigualdade e o da indiferença perante a sua evidência.
Em tempos em que retorna o tema da pobreza é surpreendente a actualidade do que escreve: dos quadros que nos põe diante, feitos dos simples, dos precisados, mas também dos da soberba e da indiferença. Distancia-se dos nossos intelectuais, que não escrevem sobre a pobreza senão de longe. Ela não é, para ele, um conceito que se defina por limiares económicos, por indicadores, uma entidade desencarnada da qual se mede o aumento e o decréscimo.
Escolhe as ruas onde os deserdados precisam dum procurador, como a si próprio se intitula. E, ao contactar assim directamente com a miséria, ergue-a a algo mais do que a evidência imediata: a miséria, na sua visão do homem, não está só na fome ou na míngua do pobre - está, "mais perfeita", no palácio do rico.
Que diferença há entre esse Portugal de meados do século XX e o de hoje? É aqui que se salienta toda a importância de trazer de novo para a luz do dia os escritos do Padre Américo. Não apenas pela preservação do nosso património intelectual, humanístico, religioso, que a sua obra representa. Mas porque nos surge com uma actualidade perturbante que no mínimo nos põe a pensar sobre que mundo é este que não conseguimos ainda distanciar muito daquele que ele descreve. Não há já a fome ostensiva, no limiar do indecoroso, do Portugal desse tempo; surgiram, entretanto, instituições da sociedade civil que têm dado atenção aos mais desfavorecidos. Mas permanece o abandono, permanece o isolamento de quem está na espiral descendente que conduz à exclusão, permanece ainda a polarização social, em que poucos têm muito e muitos têm muito pouco.
Outro traço marcante da sua visão do Homem é a capacidade de dádiva que, mesmo em quem está praticamente despojado, continua a existir. Ninguém melhor do que o pobre ajuda o pobre. Que seria dos pobres se não fossem os pobres, diz. "Que com quem pode não há que contar muito..." Esta sua visão afirma a solidariedade - algo que faz a diferença com os actuais contextos da pobreza periférica nas grandes cidades: dessolidarizada de si própria, tornada objecto de manipulação política. O pobre, nos seus escritos, torna-se exemplar: porque anuncia (a solidariedade de quem não tem, a heroicidade na dor) e porque denuncia (a incapacidade de repartirmos, a cegueira de não querer ver, a ganância, a inveja).
Num Portugal apertado pela censura e pela aliança entre Salazar e as cúpulas da Igreja, não tem medo de se exprimir como um ideólogo na afirmação dos direitos dos fracos e na denúncia dos poderosos.
Mas há também em Padre Américo o lado do escritor: a escrita é nele uma ferramenta poderosa, simples e profunda, terna e irritada, comovente e irascível, às vezes no mesmo parágrafo. O povo, nos seus textos, tem na fraqueza o fulgor do herói. A forma como o descreve tem um toque bíblico. Há talento de cronista no modo como consegue, a partir do quotidiano, pintar quadros plenos de humanidade. E há escrita política, como a que saiu das mãos de revolucionários. "Eu escrevo de cor. Nunca li, nem quero ler, tratados de doutrina social." E talvez seja um sinal dos tempos trazermos aqui um pensador cristão: agora que o Estado laico parece querer deixar cair a missão que nos tornou sociedades mais justas e mais solidárias, teremos de retornar à religião para redescobrirmos caminhos para refundar o vínculo social?
Artigo relacionado:
O Padre Américo e a generosidade da cidade do Porto
Luís Fernandes
Faculdade de Psicologia e Ciências de Educação, Porto
in Público, 23.10.2008
24.10.2008
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