Peregrinação interior
Gostaria que as pessoas tivessem consciência da necessidade de enfrentar profundamente o desafio do mistério que paira paciente sobre o mundo dos homens e que se oferece gratuito à nossa exploração. Incomodam-me as linhas rectas e os ângulos, detesto escrever com lápis nº. 3 e desejaria viver numa casa de Gaudi, que prolongasse a natureza em vez de a agredir, mas receio que mais uma vez se esteja a ceder à facilidade.
As pessoas andam muito justamente perturbadas e talvez o melhor seja refazermos outra vez a viagem desde o princípio até ao local onde reparámos que estávamos perdidos. Acho que o criado de Odylo é que tem razão. Isto porque veio um dia do Piauí para o Rio. Sabia o que era andar a pé e a cavalo e nunca lhe ensinaram outro andar até que o meteram de auto-pulman para viajar oito dias do interior à capital. Um dia, na viagem, amanheceu baralhado. Daí para diante achava que o Sol nascia no ponto onde na sua terra se escondia e que se ia embora para o mundo escurecer exactamente onde, no Piauí, ele vinha para dar luz aos olhos das pessoas e contorno às coisas. Explicava-se, explicava-se, nada. Um dia o José disse que a coisa só ficava direita se voltasse ao Piauí e viesse devagarinho até ao Rio ver o Sol levantar-se e esconder-se todos os dias. Todos os dias. Só assim é que perceberia que o Sol era o mesmo e fazia a mesma coisa.
Às vezes não temos outro remédio se não irmos outra vez ao Piauí e descermos devagarinho a ver o Sol: nasce além… dá a volta à terra… põe-se além. Nasce além… dá a volta à terra… põe-se além. Assim, sucessivamente, até ao Rio.
A todos os níveis ando a fazer a minha peregrinação interior porque deve haver alguma razão para que certas coisas aconteçam sem que eu saiba como nem porquê e sem me darem em troca nada de melhor.
E depois, acho que não devemos perder a nossa unidade interior, e que isto talvez só se consiga olhando para nós próprios e para a vida que vamos vivendo como se fosse uma história.
A minha relação com Deus só tem explicação se for a história duma relação. Nada teve de abstracto ou de escolar.
De resto, hoje estou absolutamente seguro de que uma relação com Deus é fundamentalmente uma biografia, uma movimentada biografia de aventureiro. O mal é que ela tenha entrado no departamento das «relações públicas».
António Alçada Baptista
12.12.2008
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