Poesia e realidade
Ignorante de versos é o poeta.
Teixeira de Pascoaes
Se ponho antes das minhas palavras esta frase de Pascoaes não é porque ela desminta tudo quanto se possa dizer e tudo quanto eu possa dizer sobre poesia, mas sim porque ela afirma que toda a definição de poesia que eu possa encontrar está assente num limite.
Eu sei que nunca se dirá tudo o que a poesia é. Nenhuma análise, nenhuma teoria explicará o que a torna tão necessária a alguns homens e o que a torna tão indiferente a outros.
Aquele que tem o sentido da poesia reconhece-a imediatamente, como aquele que tem sede reconhece a água. Sem necessidade de análise, de conceitos ou de teorias.
Mas aquele que não tem o sentido da poesia não reconhece nunca, por maior que seja a sua cultura e por mais vasta que seja a sua informação.
Nenhum sistema de filosofia, nenhum tratado de estética pode ensinar a distinguir um poema verdadeiro dum falso poema.
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Sabemos da poesia que ela é uma necessidade, mas que não é uma necessidade geral.
Como necessidade, sabemos que ela é uma necessidade elementar e vital e não uma necessidade secundária.
De facto, um homem que precisa de poesia precisa dela, não para ornamentar a sua vida, mas sim para viver.
Precisa dela como precisa de comer ou de beber. Precisa dela como condição de vida, sem a qual tudo é apenas acidente marginal e cinza morta.
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A palavra poesia é usada em três sentidos: Chamamos poesia à Poesia em si, indepenedente do homem. Chamamos poesia à relação do homem com a Poesia do Universo. E chamamos poesia à linguagem da poesia, isto é, ao poema.
Para tornar claro o que vou dizer, chamarei Poesia à poesia em si, poesia à relação do homem com a Poesia e poema à linguagem da poesia.
A Poesia
A Poesia existe em si – independente do homem. Realidade das coisas, ela existe mesmo onde ninguém a vê e onde ninguém a conhece.
O homem da nossa época vê maravilhosas fotografias dos anéis de Saturno. É possível que nas futuras viagens interplanetárias o homem possa desembarcar em Saturno e caminhar através da sua beleza, conhecendo a sua Poesia. Mas assim como a beleza já existia antes de o homem ali ter chegado, assim também a Poesia de Saturno é anterior às viagens no espaço, às fotografias dos observatórios e até ao facto de sabermos que Saturno existe e tem anéis.
Pois a Poesia é a própria existência das coisas e si, como realidade inteira, independente daquele que a conhece.
Porque não somos nós que criamos o mundo.
Se o poeta procura tanto a solidão, não é só para fugir ao rumor e à agitação, mas também para ver as coisas, quando elas estão sozinhas. A emoção que sentimos ao entrar numa casa deserta ou num jardim abandonado, é a emoção da vermos como as coisas sem nós existem, na sua própria realidade, em si. É com esse em si que o poeta quer entrar em relação.
A poesia
A poesia é a relação do homem Poesia. Ou melhor: a poesia é a relação pura do homem com as coisas. Isto é: uma relação do homem com a realidade, tomando-a na sua pura existência.
O poeta é aquele que vive com as coisas, que está atento ao Real, que sabe que as coisas existem.
Pascoaes diz:
Ninguém contempla as coisas admirado;
Dir-se-á que tudo é simples e vulgar...
E se olho a Terra, a flor, o céu doirado.
Que infinda comoção mo faz sonhar!
Esta relação com a realidade é essencialmente encontro e não conhecimento.
A atitude do homem de ciência perante a Realidade é igual à atitude dum anatomista perante um corpo morto que ele estuda e analisa.
A atitude do poeta perante a Realidade é igual à atitude do amante perante um corpo vivo com o qual ele se encontra, vive, se une e se confunde.
A poesia só é conhecimento por consequência, isto é, na medida em que de todo o encontro nasce necessariamente conhecimento.
O poeta não tem curiosidade do Real, mas sim necessidade do Real. A verdadeira ânsia dos poetas é uma ânsia de fusão e de unificação com as coisas.
Ao longo de todos os poemas do mundo, os poetas pedem a abraço total com a Poesia. Diz Hölderlin:
Concedei-me um só estio, ó Poderosas!
E um outono ao meu canto maduro.
Que o meu coração mais pronto do doce
Jogo farto, então morra!
À alma que em vida o divino direito
Não alcançou, também não repouse lá baixo no Orco;
Mas se uma vez o Sagrado, aquilo
Que ao peito me é caro, o Poema, atingir,
Benvindo então, silêncio do reino das sombras!
Contente estarei, ainda que a lira
Me não acompanhe; uma vez
Terei vivido como os deuses e mais não preciso.
Esta fome de encontro absoluta com a Poesia está presente em todos os poetas, com mais ou menos força, com mais ou menos evidência.
A união com a Poesia e não o poema é a finalidade do poeta.
Mas por mais real que seja o encontro, nunca é total; por mais funda que seja a união, nunca é absoluta. A relação do homem com as coisas nunca é uma túnica sem costura. Há sempre uma lacuna. Essa lacuna o poeta leva-a como uma ferida na sua carne ou, como diz Hölderlin, como um espinho no seu peito. No poema «Fantasia ao anoitecer» ele diz o que essa lacuna é:
Para onde irei eu? Vivem os mortais
De soldo e trabalho; alternando em fadiga e repouso
Tudo se alegra; porque não dorme então
Nunca em meu peito o espinho?
No céu da tarde floresce toda uma primavera;
Incontáveis florescem as rosas e tranquilo aparece
O mundo áureo: oh! levai-me para lá
Nuvens purpúreas! e que lá em cima
Em luz e ar se dissolvam meu amor e dor! –
Mas, como corrido da súplica louca, foge
O encanto; faz-se escuro, e solitário
Sob o céu, como sempre, me encontro.
É nesta lacuna, nesta impossibilidade de fusão com a Poesia, nesta distância que o separa dos Deuses, que o espírito de Hölderlin se despedaça, vencido.
E perante esta lacuna que Rimbaud renega a Poesia, quebra a poesia e se refugia na aventura.
E é no momento desta lacuna que o poema surge corno um medianeiro.
O poema vem como um intermediário, é ele que toma possível que a Poesia não se quebre contra os seus próprios limites. Podemos dizer por isso que o poema é liberdade.
Mas Hölderlin e Rimbaud prosseguiram a sua busca para além do poema. Rimbaud diz;
Non plus ces boissons pures
Ces fleurs d’eau pour verres:
Légendes ni figuras
No me désaltérent.
Entre a Poesia e a sua sede Rimbaud não aceita nenhum intermediário, Escreve ele:
Et j’ai vu quelque-fois ce que l’homme a cru voir.
Hölderlin diz-nos que achou «a estrada para os Deuses». Essa estrada ele a seguirá para além do poema e para além da loucura, quebrando o seu espírito na busca do encontro total.
O poema
O terceiro sentido da palavra poesia é o poema.
É só neste sentido que a poesia é poieia – criar.
O poeta vê a Poesia, vive a poesia e faz o poema.
A Poesia e a poesia não são criação. São realidade e vivência. Porém o poema é criação, é um objecto a mais no mundo, uma realidade entre as realidades.
Mas a finalidade do poeta não é acrescentar objectos à natureza. O mundo não precisa nem de retratos que o repitam nem de ornamentos que o enfeitem.
O poema aparece, porque é necessário à existência do poeta. É por isso que Rilke diz que o único julgamento duma obra de arte está na sua origem.
Linguagem da poesia, o poema é mais do que uma expressão da poesia. É uma realização, uma forma de transformar em coisa o nosso amor pelas coisas.
O poema aparece como um medianeiro. Aparece ao lado da lacuna, que impede a união absoluta com a Poesia. É uma forma de tornar total o que estava incompleto.
Não podendo fundir totalmente a sua vida com a existência das coisas, o poeta cria um objecto em que as coisas lhe aparecem transformadas em existência sua.
Não podendo fundir-se com o mar e com o vento, cria um poema onde as palavras são simultaneamente palavras, mar e vento. Não podendo atingir a união absoluta com a Realidade, o poeta faz o poema onde o seu ser e a Realidade estão indissoluvelmente unidos.
Por isso o poema é o selo da aliança do homem com as coisas.
Sophia de Mello Breyner Andresen
in Colóquio - Revista de Artes e Letras, 8 (1960)
07.11.2008
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