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Três vezes Deus

Prefaciado por José Tolentino Mendonça, “Três Vezes Deus” é um pequeno livro que reúne composições de três poetas. São vozes distantes que transportam para o interior dos versos o problema de Deus, não com formulações categóricas mas como quem balbucia procuras, sem se esquivar aos incómodos inerentes à equação deste insondável mistério. Cada autor preenche uma parte do livro com uma selecção de poemas, tantos quantos as letras do alfabeto. Essa contagem, cujo arrumo artificial não será inocente, sugere o ressumar dos versículos do Apocalipse que nos apresentam Cristo como o “alfa” e o “ómega”.

“Silêncio de Deus” titula a primeira colectânea, da autoria de Ana Marques Gastão. A expressão dá justificada consistência ao subtítulo, tendo em conta a frequência de outras afirmações, com ela semanticamente convergentes, que se disseminam pelos poemas. “deus emudeceu”, “deus sem rosto”, “deus, água no labirinto”, “perda de deus”, “Deus, feto do cansaço”, “rasto de deus”. Por aqui se vê que nestes versos não há a afirmação triunfante de Deus, apenas o pressentimento da presença da sua ausência, gerando, em vez do descompromisso da indiferença, uma melancólica “nostalgia” (p. 30).

O silêncio problematizado nesses versos tanto pode sugerir a sombra de sentido como traduzir a busca de uma verdadeira significação, a avaliar pela irradiação polissémica inscrita nas palavras seleccionadas para a construção dos poemas. Esta suspeita torna-se mais verosímil ao verificarmos, em várias das formulações poéticas de Ana Gastão, uma convergência com conhecidos textos místicos que acentuam a ideia de que o sentido do absoluto é apenas apreensível pela linguagem do silêncio, como fica registado nesta composição:

O mundo – ténue
círculo; e deus
sopro entre
mais um dia
e a noite escura. (p. 35)

Não terá sido casual a expressão escolhida para remate deste poema, que evoca a noche oscura com que S. João da Cruz hiperboliza a escuridão da fé. Recupera-se, através desta intertextualidade, a insinuação de que o sentimento de ausência se inscreve na suspeita de uma presença, a avaliar pelo que se sugere neste outro poema:

Noite dos sentidos
ao espírito, és
morada onde
às vezes esqueço
o cinzento dia. (p. 27)

O silêncio de Deus é poeticamente vivenciado como uma experiência de despojamento que põe à prova os “místicos cépticos”, conforme se adverte num segmento do último poema que parafraseia um versículo da 1.ª Carta de S. João: “Porque ninguém jamais te viu” (p. 38). Esta leitura poderá ser confirmada por uma outra intertextualidade contida na apóstrofe “Eloi, Eloi” repetida em duas composições, sugerindo uma pungência que, à semelhança do grito de Cristo na Cruz, coexiste com uma abertura à confiança. Na verdade, a noite da fé insinuada nos versos de Ana Gastão não fecha as frestas de luz, como fica exemplificado nalguns segmentos (“no incurável mundo/ só deus é”; “Deus – possibilidade de existência na ordem do espírito”) e sobretudo no último verso da derradeira composição, onde se recupera o eco de um versículo do Apocalipse: “No princípio eras Tu, no fim Tu serás” (p. 38). O que parecia ser um ocaso sem retorno, afinal aponta a direcção para a primordial manhã. Esta evolução circular, fazendo coincidir o início e o fim, é um conhecido processo literário para simbolizar a plenitude. Tal como na aventura de Ulisses, atingir-se-á a meta da incerta viagem quando se der o regresso definitivo á casa acolhedora do princípio. Num dos poemas anteriores tinha-se já afirmado que os justos “perdidos e sobrevivos/ no tormento, não são/ mais do que atletas/ na senda de deus” (p. 29). Agora, no verso em apreço, confessa-se que será um “Tu” que nos espera no termo de um tal percurso. Sintomático que o pronome pessoal seja grafado com maiúscula, quando em todas as composições da colectânea o vocábulo “deus” é sempre registado com minúscula.

É o signo de uma inquietação ainda mais cerrada que se detecta nos poemas de António Rego Chaves, ocupando a segunda parte do livro. Estas composições agrupam-se sob o título “A morte de Deus”. Como se sabe, tal expressão fez fortuna nos anos setenta do século passado, quando o desenvolvimento da crítica textual aplicada aos textos bíblicos estava a fazer razias nas certezas do que se fixavam nas figurações tradicionais do dino. Os leitores mais velhos estarão ainda recordados da popularidade do livro Honest to God, escrito pelo pastor protestante A. T. Tobinson (editado em português pela Moraes com o título Um Deus Diferente), que alimentou acesas polémicas à volta da necessidade de desmitologizar as representações de Deus. A chamada teologia da morte de Deus, de que este livro era tributário, visava despir os conceitos teológicos das roupagens míticas, que se tinham tornado irrelevantes para a cultura racionalista da época.

António Rego Chaves situa a sua reflexão poética num registo que faz evocar os debates destas ideias, sob o estímulo das investigações teológicas de Bultmann. Na verdade, perpassam pelos seus versos diversificadas desconstruções das figurações tradicionais do divino. Ironiza-se com a ideia de Deus “infinitamente só” (p. 42) identificado como “um infinito de eus” (p. 60); escalpeliza-se a figura de Deus “coisa imóvel e fria” (p. 50) que não tem dó do nosso medo de morrer, que consente o destino fatídico das doenças e opressões ou que legitima a lei da morte; esconjura-se a concepção de um Deus que é travão da mudança ou legitimação para amontoar “metodicamente os cadáveres” (p. 45); subverte-se o conceito da omnipotência divina, pois faz “tudo errado” (p. 62); parodia-se o versículo bíblico do Génesis: “Dizia: sofrei/ e multiplicai-vos! Adeus. Como se fosse Deus” (p. 59). São também visados aqueles que converteram as religiões do livro num “amontoado trocado/ mesmo virado do avesso baralhado”, assim asseptizando a mensagem dos profetas Moisés, Jesus e Maomé, “três lunáticos/ sem sentido das proporções” (p. 47). À mistura com a desconstrução das figuras do divino, o poeta retoma o tópico do silêncio de eus que havíamos encontrado em Ana Marques Gastão, como se pode verificar neste poema onde ecoam evocações textuais de um poema de Fernando Pessoa:

Apontava para o moreno palestiniano
filho de Maria menino de sua mãe
e revelava-lhe o seu futuro terreno.

Dizia: este é o teu tempo de sofrer.
Depois virá o teu tempo de morrer.
Entre os dois apenas o meu silêncio.
Como se fosse Deus (p. 48).

É, todavia, nas últimas composições que se torna mais dominante a ideia de Deus que se cala: “Dizia: já não existo./ Como se fosse Deus” (p. 61); “Emudecia. (...)/ Como se fosse Deus” (p. 63); Dizia:/ quero/ ser Nada./ Como/ se/ fosse/ Deus.2 (p. 64). Anote-se neste último extracto que o vocábulo “Nada” é grafado com maiúscula, ajudando a acentuar a ideia de um apagamento absoluto.

Como se vê, esta poesia de António Rego Chaves é uma provocação feita às ideias arrumadas sobre Deus, talvez até uma advertência, sob modo poético, àqueles que evocam o seu nome em vão.

A expressão “Barulho de Deus”, escolhida para titular a última colectânea de poemas, escritos por Armando Silva Carvalho, parece contrapor-se à opção da primeira e segunda partes que, como se viu, têm os seus títulos estribados nas palavras “silêncio” e “morte”. Abundam na terceira parte, ora sugestões eróticas associadas aos impulsos da vida, ora linguagem relacionada com a música ou expressões que metaforizam as vicissitudes do amor, com o seu reverso de morte, mostrando-nos, por exemplo, um eu poético que se confessa “um ser criado no barulho da cama,/ no prazer da ruína” (p. 68). As imagens que parecem conduzir-nos a uma captação mais sensorial da problemática da fé acabam, todavia, por situar-se num registo de secura, por meio de expressões semanticamente referidas à ideia do ocultamento:

Olho o significado e não vejo. Persevero.
Tantos sinais do tempo, tantos filhos da glória se consomem
e eu com as mãos sujas de sono
não os reconheço. (p. 73).

Avalia-se, assim, a inutilidade do esforço de captar o barulho de Deus porque este “não se ouve, vem da pista da crença” (p. 72), restando apenas plausibilidades deixadas em aberto por sucessivas interrogações: “E o pai é infinito?” (p. 72); “A misericórdia dos vermes é um canto do chão/ ou o celebrar de uma epifania?” (p. 74); “Como pode a natureza andar de pé na vida?/ Como pode a vida andar no chão da natureza?/ Só o Filho do Homem, dizem.” (p. 83).

Como se pode ver pela alusão, neste último verso, à figura redentora de Cristo que se abaixou até à nossa miséria para nos elevar à dignidade de filhos de Deus, aflora igualmente nesta poesia (por entre a negrura da dúvida e o recordar da ruína da condição humana) a vontade de desdramatizar o clima das nossas procuras, conforme se confessa neste segmento de uma outra composição: “O céu não é nenhuma tragédia./ Está muito para além do teu bem/ do teu mal” (p. 82).

Não nos admiremos que estas três vozes poéticas não consigam mais do que um tacteio daquilo que Tolentino Mendonça designa por “encontro improvável de Deus” (p. 11). Prisioneiros das nossas representações do divino, vejamos nestes poemas um estímulo à procura, pois Ele pode estar onde nós menos o esperaríamos. Tenhamos como guia a própria Sagrada Escritura, onde se dá conta de experiências crentes que não estranharam a aparente ausência de Deus: “De noite, procurei aquele que meu coração ama. Procurei-o, mas não o encontrei.2 (Cântico dos Cânticos, 3,1). A fé, como toda a experiência de relação, implica reajustamentos que passam muitas vezes pela “escuridão” das nossas buscas. A Carta aos Hebreus insiste na ideia de um esforço de procura como se víssemos o invisível, lembrando-nos que a fé “é a maneira de conhecer as realidades que não se vêem” (11, 1-2). A literatura patrística retoma este mesmo registo, ao insistir, como faz Gregório de Nisa, que o verdadeiro conhecimento de Deus consiste em compreender que ele transcende todo o conhecimento. Um tal percurso, por muito rude que nos pareça, tem pelo menos o mérito de nos tornar mais humildes, prevenindo-nos contra a usura dos discursos fáceis, pois, como se reconhece num verso de Fernando Echevarria, “a palavra perturba a transparência”.

Será um exercício espiritual muito salutar ler estes três autores, nomes não muito badalados. Mas a nossa comunicação raramente concede espaço generoso aos poetas, nem sequer aos mais consagrados. Valha-nos, ao menos, a persistência de algumas editoras como a Assírio & Alvim para nos permitir o acesso a estas palavras restituídas à sua condição de balbuciamento das realidades mais decisivas da vida humana.

Manuel António Ribeiro

in Viragem, n.º 58 (Janeiro-Abril 2008)

04.07.2008

 

 

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Capa

Três vezes Deus

Autores
Ana Marques Gastão
António Rego Chaves
Armando Silva Carvalho

Editora
Assírio & Alvim

Ano
2001

Preço
€ 8,00

ISBN
972-37-0667-9

































































































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