A oitava palavra sobre a Cruz
«As últimas sete palavras do nosso Redentor sobre a Cruz» configuram uma artificiosa montagem, tomando os relatos da Paixão dos quatro Evangelhos canónicos. Estas sequências bíblicas mantêm, entre si, linhas de continuidade narrativa (para simplificar: perspectivam, segundo a mesma fé, uma história comum), mas fazem-no sem abdicar de uma estratégia literária e teológica diferenciada, a ponto de ser reconhecível a voz, e o timbre da voz, de cada evangelista. Em Marcos, por exemplo, a cruz é o momento da revelação do segredo messiânico de Jesus, mantido a custo, mas mantido, ao longo de toda a narrativa. Contudo, o centurião romano que ali declara, como elocução culminante, «este homem era verdadeiramente filho de Deus», em Lucas profere algo que diz o mesmo e outra coisa: «este homem era verdadeiramente justo». Lucas escreve para judeo-cristãos, mas também para cristãos vindos do paganismo, e aquele “verdadeiramente justo” tem uma duplicidade semântica que visa o seu heterogéneo auditório: Jesus é tanto o inocente, vitimado pelos aparelhos religioso e político (coisa que um grego ou um romano poderiam entender), como é o «justo sofredor», essa figura atravessada por referências profético-messiânicas, que alguém de cultura judaica certamente decifraria.
As composições litúrgicas medievais, ou boa parte do teatro sagrado coevo e posterior, mostram-se, porém, mais interessados em retirar um argumento dramático coeso, do que propriamente iluminar destrinças. Daí irrompeu uma tradição. O próprio Franz Hayden o testemunha, descrevendo cenograficamente a liturgia para que acedeu compor, corria o ano de 1786:
«Ao meio-dia, as portas da Igreja eram fechadas e a cerimónia tinha início. Após um prelúdio estipulado, o bispo subia ao púlpito, proclamava a primeira das sete palavras e pronunciava um sermão acerca dela. Tendo terminado, descia e prostrava-se diante do altar. Esta pausa era preenchida com música. Depois o bispo pronunciava a segunda palavra, a terceira, e assim por diante, enquanto que a música sucedia às respectivas prédicas».
«As últimas sete palavras» constituem uma meditação sobre a morte de Jesus. Num texto que escreveu sobre a sequência da Páscoa (e que intitulou - justamente! -, “Uma das mais belas histórias do mundo”), a romancista Marguerite Yourcenar diz que o estatuto destas derradeiras palavras nos obriga, talvez, a aproximá-las das breves recomendações, comovedoras mas afinal muito frequentes, que, por exemplo, jovens soldados trocam entre si diante do perigo ou murmuram a um companheiro antes de fechar os olhos para sempre: um pedido para que se cuide da mãe ou se faça chegar a notícia a um irmão querido; uma palavra de encorajamento dirigida aos que restam, um ténue gesto de afecto, quase invisível já de tão extremo. O texto de Yourcenar sublinha, assim, como a morte de Jesus, na sua singularidade, se torna ícone do incontável sofrimento do mundo.
Mas o que as «Sete palavras» declinam não é simplesmente a monodia do drama humano. Há um segredo entre estas palavras. O dispositivo narrativo criado pela colagem dos textos salta de evangelho para evangelho, mas começa e acaba com Lucas («Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem» - Lc 23,24, ao princípio, e, «Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito.» - Lc 23, 46, ao concluir). No desenho inclusivo que os dois momentos estabelecem, percebe-se que o destinatário das palavras de Jesus não é um confidente qualquer: é o próprio Deus. E o modo como Jesus o evoca, chamando-o Pai, confere ao diálogo uma densíssima intimidade, tanto mais paradoxal quanto ele é se encontra na situação de um anátema, prestes a padecer uma morte reservada aos infiéis, e afronta o aparente e inexpugnável silêncio da parte de Deus.
Mas há um segredo. É o da expressão derradeira, já depois de proferidas todas as palavras, e que apenas Marcos e Mateus nos transmitem. Entre as “Sete palavras” inseria-se já um grito: «Meu Deus, meu Deus, porque me abandonaste?» (ou «Meu Deus, Meu Deus a que me abandonaste?», segundo algumas traduções contemporâneas). Mas depois desse, Jesus soltou ainda um outro grito, e então expirou. Perante este último, o véu do templo rasgou-se em dois, de alto a baixo. Isto é, o sagrado perde a sua reserva e desloca-se para o profano mais escandaloso: na carne daquele inocente, no corpo torturado, no lancinante silêncio que sucedeu ao seu grito reside agora a revelação de Deus.
Percebe-se, então, que todas as palavras anteriores se ligam misteriosamente a esta oitava palavra, e todas juntas se elevam diante de nós como uma aporia intransigente e intemporal. Contemplamos o mistério de Deus e o do Homem no mais devastador silêncio que o mundo conheceu. Mas desse, precisamente, partirá o “grande levantamento”, a “radical insurreição”.
P. José Tolentino Mendonça
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