A Bíblia e a legibilidade do mundo
Os varões trazem a “maçã de Adão”. O nome “Eva” tornou-se um endereço recorrente do universo feminino. Os infortúnios de todos os tempos lembram-nos que é “a leste do paraíso” que vivemos. Para descrever a diversidade recorre-se à metáfora da “arca de Noé”. O filho mais novo de todas as famílias é o seu “Benjamim”. As “cebolas do Egipto” persistem como símbolo das coisas por que choramos em vão. A força física faz do seu possuidor um “Sansão”. O homem pobre e sofredor diz-se “como Job”. Todo o céptico sabe, como Coeleth, que “nada há de novo debaixo do sol”. Alguém que do presente olhe o futuro recebe o epíteto de “profeta”. O princípio é sempre o “Génesis” e o final um “Apocalipse”. Jesus tornou-se tão singularmente paradigmático que há quem o veja espelhado nos ícones das várias épocas: seja São Francisco de Assis ou Che Guevara, seja Mahatma Gandhi ou Kurt Cobain (1).
A Bíblia aparece-nos assim disseminada pelo pensamento, imaginação e quotidiano. Ela continua a ser um texto, claro. Mas também, e de um modo irrecusável, a Bíblia constitui hoje um metatexto (2), uma espécie de chave indispensável à decifração do real. Da filosofia às ciências políticas, da psicanálise à literatura, da arquitectura explícita das cidades ao desenho implícito dos afectos, da arte dita sacra às formas da expressão que enchem, por toda a parte, galerias, museus, escaparates: a Bíblia é um parceiro, voluntário ou involuntário, nessa comunicação global. O mundo constrói-se na intertextualidade. Como outrora se falava do palimpsesto, temos hoje o zapping, o link, o corta e cola. O texto bíblico participa na construção do mundo, ao mesmo tempo que viabiliza a sua legibilidade.
Tem-se tornado justamente famosa a anotação de William Blake que chama às Escrituras judaico-cristãs “o grande códice” (3), reconhecendo quanto a actividade simbólica e cultural do Ocidente foi ininterruptamente fecundada pelo texto e pela simbólica bíblicas. Sem a chave bíblica, o recheio pictórico da Capela Sistina, diariamente frequentado por milhares de pessoas, seria mais intrigante e impenetrável que as misteriosas estátuas da Ilha de Páscoa. Mas também os grandes museus nacionais, pelo menos os da Europa, tornar-se-iam num arsenal de objectos sem razão e sem nexo.
A Bíblia representa uma espécie de “atlas iconográfico”, “estaleiro de símbolos” ou “imenso dicionário”, como Claudel lhe chamou. É um reservatório de histórias, um armário cheio de personagens, um teatro do natural e do sobrenatural, um fascinante laboratório de linguagens. Desconhecer a Bíblia não é apenas uma carência do ponto de vista religioso, mas é também uma forma de iliteracia cultural, pois significa perder de vista uma parte decisiva do horizonte onde historicamente nos inscrevemos. Compreender a Bíblia é compreender-se, já que, como escreve Giombi, “a Bíblia participa de modo determinante no circuito das relações que ligam experiência religiosa e consciência civil na Europa Moderna, a ponto de poder iluminar a própria identidade europeia” (4).
A natureza cultural e literária da Bíblia
Se pensarmos em algumas das definições de “clássico” que Italo Calvino propõe (“Os clássicos são livros que exercem uma influência especial, tanto quando se impõem como inesquecíveis, como quando se ocultam nas pregas da memória…”; “Um clássico é um livro que nunca acabou de dizer o que tem a dizer”; “Os clássicos são livros que quanto mais se julga conhecê-los por ouvir falar, mais se descobrem como novos, inesperados e inéditos ao lê-los de facto”; “É clássico o que tiver tendência para relegar a actualidade para a categoria de ruído de fundo, mas ao mesmo tempo não puder passar sem esse ruído de fundo”; “É clássico o que persistir como ruído de fundo mesmo onde dominar a realidade mais incompatível” (5), dificilmente será negado à Bíblia o estatuto de super-clássico.
Por que se torna importante dizer isto? Porque, de alguma maneira, se está a alterar uma certa conjuntura intelectual que remetia a Bíblia para o estrito domínio da religião, esquecendo que a condição teológica da Bíblia é inseparável da sua natureza propriamente cultural e literária. Na sua obra monumental sobre o realismo na literatura do ocidente, Erich Auerbach, por exemplo, distingue dois únicos paradigmas como fundamentais: o da Odisseia e o da Bíblia (6). E mais: estabelecendo um paralelo entre ambos, ele dá-se conta que, na economia das narrações bíblicas, há uma profunda intencionalidade artística e uma concepção muito elaborada do real, em nada subsidiária daquela alcançada pela literatura helénica.
Nos poemas homéricos, o destino dos personagens está claramente fixado.
Ocorrem as peripécias mais díspares, irrompem paixões violentas, enunciam-se
perturbações e desfechos – mas tudo dentro daquela linearidade simples dos enredos pré-determinados. Basta recordar que a grande viagem do herói grego é uma viagem de regresso à sua própria casa, essa Ítaca sempre perseguida e sempre adiada, onde Ulisses se recolherá, finalmente, para uma velhice feliz, enquanto que a fundadora viagem que a Bíblia narra é para uma terra desconhecida, só divisada pela promessa desmedida de Deus: “Ergue os olhos e olha, do lugar em que estás, para o norte e para o sul, para o oriente e para o ocidente. Toda a terra que vês, eu ta darei, a ti e à tua posteridade para sempre” (Gen 13,14-15). O texto helénico é restrito e estático, e coloca a existência
heróica a desenvolver-se nos limitados confins de um mundo senhoril. Na Bíblia, o
enquadramento social é mais extenso e diversificado. Pela primeira vez são heróis o rei, mas também o servo; o sacerdote, o profeta, mas também a mulher, o guerreiro e o pastor. Todos os componentes da sociedade aparecem representados. E, nela, o sublime tem por expressão um realismo quotidiano, inserido no plano da vida comum.
No começo dos anos 80, Northrop Frye publica “O grande código” (The Great Code), que trazia como subtítulo a Bíblia e a literatura. Representa um original percurso pelos sistemas das imagens bíblicas e das estruturas narrativas. Há constantes imagéticas, anota ele, que funcionam como princípio tipológico unificador, pois as mesmas imagens se repetem nas diferentes situações, embora o seu alcance metafórico não deixe de crescer (7). A terra, a viagem, a mesa, a aliança são algumas delas. Frye mostra como a força narrativa de alguns temas e motivos bíblicos se tornam recorrentes no imaginário colectivo da tradição literária ocidental (8). É impossível ler o “D.Quixote” ou “Os Lusíadas” ou “A Divina Comédia” sem a Bíblia.
E há ainda, só para referir alguns marcos miliares, o manual de Robert Alter. Alter, que antes se tinha dedicado ao estudo da Novela Picaresca e de Stendhal, afronta o universo bíblico com uma obra que fez escola, A arte da narrativa Biblica (The Art of Biblical Narrative) (9). Este livro relança a tarefa do exegeta e do teólogo no amplo território da cultura, pois a partir de agora é impossível abordar a Bíblia num solitário reduto, objectivá-la numa consciência microscópica sem ter em conta a amplidão do contexto cultural que ela ilumina e do qual recebe iluminação.
Recepção estética da Escritura
A Bíblia tem sido objecto de uma apropriação por parte da cultura. Surge não raro como “opera aperta”, acessível à variedade de leituras, disponível para questionamentos interdisciplinares, susceptível de múltiplos níveis de interpretação.
“Numa Europa fortemente descristianizada – avisa Anne-Marie Pelletier – a Bíblia está prestes a sedimentar leitorados para lá das fronteiras do mundo crente” (10). De facto, a circulação contemporânea da Bíblia acontece já fora daquilo que chamaríamos os seus limites naturais ou tradicionais. O estatuto cultural que lhe reconhecem investe-a de uma capacidade inédita de cruzar e aproximar públicos, suscitar amplos entusiasmos, despertar curiosidades inusitadas.
A recepção da Escritura tem conhecido expressões múltiplas na história. Mas a par das dimensões que decorrem da legibilidade da Bíblia, outras decorrem da sua visibilidade. Como escreve Jérôme Cottin há um cristianismo visual fundado sobre uma Palavra vista e contemplada, não apenas lida (11). E esta hermenêutica, que se traduz por procedimentos estéticos, se muitas vezes, erradamente, é tomada como mero adorno ou um suplemento, à maneira das iluminuras que se colocavam à margem do texto, ela é, no entanto, dotada de uma energia fulgurante que testemunha o carácter estético da própria Revelação. Um insuspeito juízo como o de Hans Urs von Balthasar sugere, por exemplo, que a vitalidade do sentir católico se reflectiu mais, no séc.XX, na obra dos grandes poetas do que na literatura clerical (12).
É impressionante constatar, como a Bíblia alumiou e alumia, com a faca tremeluzente do seu brilho (melhor diria, da sua verdade), algumas das leituras criativas mais fascinantes de cada tempo, inclusive o nosso (13). Se pensarmos nessas paráfrases arrepiantes, e tão diversas, ao salmo 51 que são o ‘De profundis’ de Oscar Wilde, o de ‘De profundis. Valsa lenta’ de Cardoso Pires ou o poema, com esse título, de Vitorino Nemésio:
“....................................................
Sim, daqui, deste abismo trivial
A que só as palavras dão fundura,
A ti clamo.
Abre o meu pedernal,
Que a seca estéril rege;
Monda o vil coração com que te amo
E, ainda que eu fraqueje,
Cava-me até ao fio de água pura.
Abre os seios dos meus ossos
E a cerração tenaz dos meus tendões:
Assim se abrem os poços
Que dão de beber aos leões” (14)
Se pensarmos, cinematograficamente, no que representa a encenação da Ressurreição feita por Carl Dreyer em ‘Ordet’ ou nas Bem-Aventuranças gritadas pelo Jesus do ‘Evangelho segundo S. Mateus’ de Pasolini ou a pulsão escondida da voz de Deus que Manoel de Oliveira aborda através da figura de Job, no filme ‘O meu caso’. O cinema, por exemplo, recorre continuamente ao paradigma Jesus, Servo Sofredor, para falar do incontável sofrimento do mundo. São crísticos os abandonados na câmara de Bresson, mas também na de Tarkovski, na de João César Monteiro ou de Fellini, que filmou os olhos enganados de Cabiria como se esses olhos, canta Caetano Veloso, “fossem o coração de Jesus”.
Ou, como esquecer, a extraordinária teologia que emana a pintura de Chagall, de Rouault, a transcendência que invade a matéria nos objectos de Morandi, a meditação das Escrituras que acompanha a violência do pincel de Kiefer ou essas inesquecíveis superfícies que Mark Rothko pintava com as cores que Iahwé prescreveu a Moisés para a edificação do Tabernáculo!
Ou a exegese rigorosa da paixão que percorre os textos de Anna Akhmátova ou Clarice Lispector:
“Os céus fundiram-se em fogo e um coro
de anjos glorificou a grande hora.
Disse ao Pai: ‘Por que me abandonaste?’
E à Mãe: ‘Não chores por mim, não chores...’
Madalena convulsa se agita.
O discípulo dilecto está de pedra.
Mas olhar aonde se pousa a Mãe,
Silenciosa, ninguém se atreve” (15)
“Nem todos chegam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a altura de poder cair... É exactamente através do malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a própria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como a possível linguagem. Só então minha natureza é aceita, aceita com o seu suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos. E é aceita a nossa condição como a única possível, já que ela é o que existe, e não outra. E já que vivê-la é a nossa paixão. A condição humana é a paixão de Cristo” (16). Ou ainda o diálogo poderoso que a música de Messiaen estabelece com o Novo Testamento, mas também a arquitectura de Siza Vieira e de Barragan.
A inapagável identidade da Palavra Bíblica
É claro que a abordagem cultural não está isenta de riscos, e desses é necessária uma precisa consciência. Há anos atrás, reflectindo sobre o processo que levou, no séc. XIX, o “folclore” a tornar-se disciplina de estudo, Michel de Certeau reflectia sobre a perversidade de certos mecanismos do sistema cultural. O Folclore só se desenvolveu como campo de estudo, porque a cultura declarou oficialmente a sua morte. Quando os usos, a língua e os saberes de um tempo perdem irremediavelmente a sua capacidade ou possibilidade de operar (e isso também pela avalanche de homogeneidade para a qual a cultura tende), então a cultura vigente assume a tarefa de inventariar e guardar uma memória. É a “beleza do morto”, explica Certeau (17), que motiva esta forma secular de canonização.
As Escrituras judaico-cristãs não podem perder o seu enraizamento original. Nem o cristianismo pode aceitar ser simplesmente encrostado no anuário religioso mundial, reinterpretado em função dos fantasmas e da agenda do momento. Há um poder contestador, chamemos-lhe assim, que é inerente à experiência cristã e que ela é chamada a exercer face às construções de cada presente, suas derivas imaginárias, suas satisfações mitológicas. A cultura tem de representar uma mediação, e uma mediação a descobrir e a privilegiar, e não um absoluto. Como escreve Robert Scholtus, num discurso teológico bem temperado de humor, o cristianismo é por sua natureza insolente, paradoxal e tem-se tornado pior com o tempo: acontece que hoje o testemunho cristão é mesmo chamado a inscrever-se como enigma na paisagem humana, mais até do que como inteligível testemunho (18).
O mesmo defende Pelletier a propósito da Escritura: “a Bíblia tem de permanecer um livro perigoso” (19). Facto que de maneira nenhuma é incompatível com uma inscrição autêntica na cultura. Como ela própria testemunha: “Há uma outra história da Bíblia na época contemporânea. Que não é a das querelas exegéticas, nem a da dissolução do cristianismo no caldo cultural que nos rodeia. A literatura e a arte deste século dão-nos a ver uma história profundíssima para medirmos quanto a Bíblia surge comprometida com as questões insistentes da condição humana, ou toma parte nos grandes debates com que as tragédias do século assinalaram a história e o futuro da humanidade” (20).
(1) Ainda agora, na promoção do filme de Gus Van Sant, “Last Days – Últimos dias”, vem escrito: “Para os que viveram o movimento grunge do início dos anos 90 como uma religião, Last Days é a “Paixão de Cristo” a que têm direito”. PÚBLICO, 21 de Outubro de 2005, 27.
(2) Cf. Maria Augusta BABO, A escrita do livro, Lisboa, 1993, 53.
(3) William BLAKE, Complete writings, Oxford, 1972, 777.
(4) Samuele GIOMBI, La Bibbia nella storia del Cristianesimo e della cultura occidentale in Samuele GIOMBI (ed), La sorgente e il roveto: la Bibbia per il XXI secolo fra storia religiosa e scrittura letteraria, Manziana, 2002, 9.
(5) Italo CALVINO, Porquê ler os clássicos?, Lisboa, 1994, 7-13.
(6) Cf. AUERBACH, E., Mimesis. Il realismo nella letteratura occidentale (Mimesis. Dargestellte Wirklichkeit in der abendländischen Literatur, Bern, 1946), Torino, 2000, 3-29.
(7) Cf. Northrop FRYE, Il grande codice. La Bibbia e la letteratura (The Great Code. The Bible and Literature, New York, 1981), Torino, 1986, 286.
(8) Cf. Northrop FRYE, Il potere delle parole. Nuovi studi su Bibbia e letteratura (Words with Power, San Diego, 1992), Firenze, 1994.
(9) Cf. Robert ALTER, L’art du récit biblique (The Art of Biblical Narrative, New York, 1981), Bruxelles, 1999.
(10) Anne-Marie PELLETIER, Lectures culturelles de la Bible: un malentendu? in Samuele GIOMBI (ed), La sorgente e il roveto: la Bibbia per il XXI secolo fra storia religiosa e scrittura letteraria, Manziana, 2002, 228.
(11) Cf. Jérôme COTTIN, Jésus-Christ en Écriture d’images, Genève, 1990, 7-12.
(12) Cf. Hans Urs von BALTHASAR, Gloria. Una estetica teologica (Herrlichkeit. Eine Theologische Ästhetik, Einsiedeln, 1961-69), Milano, 1975, Vol. I, 78.
(13) Cf. Paul POUPARD, (ed.), La poetica della fede nel’900, Firenze, 2000.
(14) Vitorino NEMÉSIO, De Profundis in Eugénio de ANDRADE, Antologia pessoal da poesia portuguesa, Porto, 1999, 414-417.
(15) Anna AKHMÁTOVA, Só o sangue cheira a sangue (trad. port. Nina e Filipe Guerra), Lisboa, 2000, 103.
(16) Clarice LISPECTOR, A paixão segundo G.H., Rio de Janeiro, 1988, 175.
(17) Michel de CERTEAU, La culture au pluriel, 10/18, Paris, 1974, 55.
(18) Cf. Robert SCHOLTUS, Petit christianisme d’insolence, Paris, 2004.
(19) Anne-Marie PELLETIER, Pour que la Bible reste un livre dangereux in Études 4(2002), 341.
(20) Anne-Marie PELLETIER, Pour que la Bible reste un livre dangereux, 339.
P. José Tolentino Mendonça
© SNPC - 14.02.2008
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