Eis o Homem
«Eis o Homem»

Extractos da intervenção do Eng.º António Guterres durante a 2.ª sessão («O Bem»)

Sé Patriarcal, 10 de Maio de 2007

A encíclica «Populorum Progressio», a encíclica do desenvolvimento, mas do desenvolvimento que me permito qualificar - repetindo as palavras do Dr. José Luís Ramos Pinheiro e também sublinhadas pela Dr.ª Isabel Jonet - não apenas económico, mas o desenvolvimento integral da pessoa humana e o desenvolvimento como novo nome da paz.

Desde logo uma questão central: o desenvolvimento só será o novo nome da paz se for assente na justiça: justiça entre as pessoas, justiça entre os Estados, e agora também, quarenta anos depois e cada vez mais, justiça entre gerações, se olharmos para os problemas e para as ameaças em matéria ambiental e de clima.

Mas uma paz que, para além da justiça e do desenvolvimento, exige a tolerância; e não deixa de ser extremamente interessante que a «Populorum Progressio» tenha feito há quarenta anos, por Paulo VI, um apelo ao diálogo entre as civilizações e uma condenação quer do nacionalismo quer do racismo.

Uma pequena nota: gostaria de ver a palavra “tolerância” não no sentido da indiferença, mas no sentido de uma antecâmara para algo mais intencional que é o próprio amor. Porque só assim é que a paz se verá profundamente sustentada.

Paz sem desenvolvimento justo será sempre uma paz precária. E penso que a noção de Bem que a «Populorum Progressio» nos faz alimentar assenta nestes dois pilares: o desenvolvimento com justiça e a paz com tolerância, se possível com amor.

Gostaria de dizer apenas algumas palavras sobre o que num documento que se mantém hoje perfeitamente actual - como foi sublinhado [na intervenção anterior da Dr.ª Isabel Jonet] - me parece ser mais relevante na evolução internacional destes últimos quarenta anos, modificando o contexto em que esta encíclica deve ser lida hoje, sem modificar a sua actualidade e a sua importância.

Em primeiro lugar o fim da Guerra-fria e a dissolução do Império Soviético. Em segundo lugar a assimilação do processo de globalização, com o seu impacto múltiplo sobre as economias, os mercados, a informação, a comunicação. Em terceiro lugar a evolução para um novo paradigma das economias e das sociedades, baseadas cada vez mais no conhecimento. E, finalmente, em quarto lugar a consciência crescente de que o modelo de desenvolvimento que temos não é sustentável e que há uma ameaça fundamental ao nosso futuro e às gerações futuras, que tem a ver com as alterações de natureza ambiental, e em particular das alterações climáticas.

Neste contexto eu penso que nos últimos vinte anos se assistiu a uma evolução da sensibilidade.

De uma primeira fase assente num certo optimismo, na convicção de que, no fundo, a globalização acabaria por tornar-se num factor não apenas de crescimento económico, mas também de acesso de todos aos bens do progresso e da civilização.

Da ideia de que uma economia e uma sociedade baseadas no conhecimento estavam assentes num recurso que, ao contrário dos outros, pode ser partilhado. Se eu tiver dez euros, outros aqui presentes não têm os mesmos dez euros; se eu gastar um litro de gasolina, os outros não o podem gastar; mas se eu gerir a minha empresa ou a minha instituição com o conhecimento de como isso se faz, qualquer outro pode gerir a sua empresa ou a sua instituição com o mesmo conhecimento. O conhecimento pode ser partilhado, e por isso pode tornar-se um factor de justiça; e se uma sociedade se baseia no conhecimento, isso facilita a justiça, elemento fundamental do optimismo que se gerou nos anos 90.

Uma outra percepção foi a ideia de que a evolução tecnológica permitiria dar resposta a muitos dos problemas com que nos defrontamos, nomeadamente os problemas de natureza ambiental e de solidariedade entre as gerações – o que porventura serviu como pretexto para a manutenção de uma atitude egoísta em relação ao presente.

E, finalmente, optimismo na medida em que no quadro internacional se verificava uma crescente consciência de que para além da soberania dos Estados, havia que ter em conta a soberania da pessoa humana, o que levou à formulação progressiva do chamado Direito de Ingerência Humanitária, que serviu de base a intervenções da comunidade internacional, como as do Kosovo, ou da Bósnia, ou uma que nos foi muito querida, a de Timor-Leste. Tornou-se mais forte a ideia de que os Estados não se podiam sobrepor às pessoas e que estas mereciam uma intervenção em seu favor por parte da comunidade internacional face ao arbítrio e à opressão estatais.

Isto conduziu à definição de um conceito extremamente feliz, que é o conceito da responsabilidade de proteger, que considerava que o nível de soberania dos Estados lhes confere essa responsabilidade face aos seus cidadãos; mas quando o Estado não é capaz ou não o quer fazer, o Direito de Ingerência Humanitária faz derivar para a comunidade internacional essa mesma responsabilidade de proteger, o que nos levou a mobilizar a intervenção em Timor-Leste. Este era um novo factor, extremamente importante, de humanização das relações internacionais.

A verdade é que este optimismo – que eu próprio senti e vivi na vida política internacional dos anos 90 – acabou, de alguma forma, por dar lugar hoje àquilo que se poderia chamar, em linguagem popular, uma certa ressaca no início do milénio, sobretudo após o 11 de Setembro.

Em primeiro lugar foi-se tornando cada vez mais evidente que se é verdade que a globalização é um enorme factor de aceleração do desenvolvimento económico, do comércio internacional e da própria produtividade, não deixa de ser também e cada vez mais um factor de acentuação do fosso entre ricos e pobres. Entre ricos e pobres à escala de um país, e entre países ricos e países pobres à escala mundial.

É verdade, segundo os últimos relatórios do Banco Mundial, que o número total de pessoas em pobreza absoluta – medindo a pobreza absoluta de uma forma que é verdadeiramente mesquinha: pessoas que vivem com menos de um dólar por dia – estará a ser reduzido hoje, em grande medida por causa do êxito dos processos de desenvolvimento, com todas as suas injustiças, da Índia e da China. Mas este é um mero factor estatístico, dado que se formos a um continente como o africano, é cada vez mais terrível a situação de uma larguíssima percentagem da sua população. Porventura cerca de metade da sua população.

E o fosso entre ricos e pobres acentua-se não apenas entre os povos, mas no interior de cada país, quer no mundo em desenvolvimento quer no mundo desenvolvido. Os últimos números publicados em relação à economia americana, por exemplo, são chocantes, verificando-se que enquanto o nível de vida dos sectores mais pobres da população estagnou nos últimos vinte ou trinta anos, em relação aos sectores mais ricos tem-se verificado um enorme aumento do seu rendimento disponível.

É, portanto, um mundo crescentemente injusto aquele de que nos fomos dando conta cada vez mais nesta primeira década do milénio. Houve uma reacção positiva que a comunidade internacional foi capaz de expressar, nomeadamente com os objectivos de desenvolvimento do milénio aprovados na Assembleia-Geral das Nações Unidas e com a crescente promessa de uma maior ajuda internacional que várias cimeiras, nomeadamente o G7 e o G8, sublinharam. Apesar de tudo isso, quando nós olhamos para o índice de desenvolvimento em 2006, vemos que ele diminuiu em relação a 2005; e em 2007 tudo indica que vá diminuir de novo em relação a 2006. Ou seja, a ideia de que a globalização traria consigo a solução do problema da injustiça no quadro do desenvolvimento, é hoje, claramente, uma ideia não verdadeira.

A própria economia e a sociedade do conhecimento, que permitiram enormes oportunidades em continentes como a Índia, que nela fundaram em grande parte o seu novo ciclo de crescimento económico, não deixaram, no entanto, de cavar novos fossos. O chamado «digital divide» (1) particularmente sensível em continentes como o africano, faz com que o não acesso às novas tecnologias para a generalidade da sua população torne dramática não apenas a constatação da pobreza e da exclusão na situação actual, mas a consciência de que por uma ou duas gerações essa exclusão se vai inevitavelmente repetir, pela ausência de acesso àquilo que hoje os nossos filhos têm no seu quadro educativo e nas tecnologias que lhes estão disponíveis.

Num outro domínio particularmente significativo, creio que é também evidente que a partir do 11 de Setembro a tolerância nas relações internacionais tem vindo progressivamente a ser afectada pelo crescente sentimento de insegurança, e em muitos casos por uma crescente hostilidade entre as diversas comunidades, diversos grupos ou diversas formas de estar no mundo; e até, inclusivamente, no plano religioso.

Esta é uma questão particularmente preocupante para todos nós. Vivemos num mundo em que cada vez mais as pessoas se movem. O século XXI será seguramente o século do movimento dos povos. Dizia um conservador italiano, ao falar do afluxo de imigrantes à península italiana, que estamos perante movimentos bíblicos. E é verdade. Quando olhamos para o que hoje se passa no mundo – em vários pontos do Mediterrâneo, na África, nas Caraíbas, à volta da Austrália e por toda a parte – vemos fluxos gigantescos de pessoas, na sua esmagadora maioria emigrantes que procuram uma vida melhor; mas também, no meio delas, pessoas vítimas de tráfico, pessoas que são refugiadas ou requerentes de asilo, pessoas que têm necessidade de protecção internacional. E a verdade é que o sentimento de insegurança e o crescente egoísmo de muitas das sociedades modernas têm vindo a encarar esses movimentos de uma forma particularmente negativa e a negar a protecção àqueles que dela efectivamente necessitam.

Creio que aqui é particularmente chocante a atitude das sociedades dos países desenvolvidos, nomeadamente os da Europa dita ocidental. Se nós fizermos um inquérito de opinião por essa Europa fora e perguntarmos: “Quer ter mais filhos?”, a resposta, provavelmente – ao contrário do que testemunhou pessoalmente a Dr.ª Isabel Jonet – seria “Não”. “Quer trabalhar no restaurante da esquina?”, a resposta é “Não”. “E quer ter emigrantes no seu país?”, a resposta é também “Não”. E quando damos estes três valores a estas três incógnitas, a equação da sociedade torna-se impossível de resolver.

Esta contradição e este paradoxo convivem connosco e estão na origem de uma grande parte dos problemas dramáticos de ausência de coesão social nos Estados modernos. E curiosamente a globalização, que facilitou a abertura do comércio internacional e que favoreceu ainda mais os movimentos de capitais, tem tentado dificultar o movimento das pessoas. Só que essa é igualmente uma tentativa inglória porque também o mercado de trabalho se transforma num mercado global. E como os outros mercados, todos nós aprendemos - mesmo alguns que tinham umas ideias mais radicais na sua juventude – que a procura e a oferta tendem a encontrar-se. E quando não podem encontrar-se legalmente, encontram-se ilegalmente. E por falta de oportunidades de movimentos legais de população, nós assistimos ao multiplicar de formas ilegais, o que transforma obviamente essa situação em algo que favorece o contrabando e o tráfico de seres humanos, porventura o mais hediondo dos crimes a que hoje podemos assistir, perante a incapacidade dos Estados para lhe dar resposta.

Estamos perante um sentimento de intolerância, num mundo em que a justiça não progride – embora progrida o desenvolvimento em termos meramente economicistas e em termos estatísticos; por outro lado, as promessas de paz e segurança que se seguiram à Guerra-fria não se concretizam – pelo contrário, os conflitos e as contradições de carácter local e regional têm-se multiplicado. É neste mundo que estamos a assistir, no século XXI, e em contraste com a evolução dos anos 90, ao progressivo claudicar da afirmação desse novo conceito, cheio de potencialidade, da responsabilidade de proteger face à reafirmação da soberania dos Estados. E a soberania da pessoa humana está, uma vez mais, a ser progressivamente subjugada no altar da soberania dos Estados. Darfur é o exemplo mais evidente dessa situação no tempo presente.

E o que é mais dramático é que são mesmo os países democráticos - como a Índia, por exemplo, como a África do Sul, como o Brasil - que hoje reagem a esta ideia da responsabilidade da comunidade internacional de proteger as pessoas vítimas de opressão e de violação dos seus direitos humanos. Reagem por uma razão muito simples: porque pensam, sobretudo depois do Iraque, que por detrás do apelo à responsabilidade de proteger, por detrás do apelo à afirmação dos direitos humanos existem agendas escondidas de dominação política por parte das grandes potências, de sujeição económica ou daquilo que hoje se chama mudança de regime.

E curiosamente, quando olhamos para uma situação como a do Darfur, nós vemos que a comunidade internacional tem assistido – nomeadamente através das repercussões do apoio alimentar maciço (mais de um milhão de dólares por ano através do Programa Alimentar Mundial) – ao drama de quatro milhões de pessoas, das quais dois milhões deslocadas, com violações permanentes dos direitos humanos, das mais degradantes, à escala dessa população. E no entanto a comunidade internacional continua a não ser capaz de intervir para restabelecer o mínimo da dignidade das pessoas na sua protecção e na sua segurança. E continua a não ser capaz de o fazer, na medida em que não é possível fazer aprovar uma intervenção, uma vez que se alimentam contra ela ideias de que pode servir agendas secretas ou desconhecidas, ou intentos de dominação por parte de potências – que infelizmente noutras ocasiões se terão deixado porventura sucumbir a essas tentações.

Creio que é necessário pôr fim a esta crescente injustiça na distribuição da riqueza e do rendimento; é necessário restaurar um clima de diálogo entre as civilizações, um clima de tolerância na relação entre as pessoas, as comunidades e os Estados; é necessário reafirmar o primado dos direitos humanos, o primado da soberania da pessoa humana em relação à respeitável soberania dos Estados. Destes desafios surgem para todos nós enormes interpelações. E por isso, apesar deste quadro sombrio que tracei, não penso que seja a altura de estarmos pessimistas, mas sim, como dizia Jean Monnet, nem pessimistas nem optimistas, mas sim determinados.

Determinados ao nível do que podemos fazer. É particularmente reconfortante ver o dinamismo das sociedades civis neste aspecto: os Bancos Alimentares Contra a Fome, eu diria os Bancos Alimentares Contra as Fomes, que surgem por todo o lado, com as mais diversas iniciativas mobilizadoras das pessoas, no quadro de ideais que são particularmente relevantes face ao mundo de hoje. A capacidade de articular tudo isso em rede através das novas tecnologias e da Internet; hoje temos à disposição a possibilidade de exercer uma verdadeira cidadania global, até com uma intervenção política a esse nível, graças aos meios que a tecnologia nos oferece e à capacidade de trabalhar cada vez mais em rede à escala global.

Tudo isto me faz ter uma esperança de que os valores que a «Populorum Progressio» nos faz alimentar com a sua permanente actualidade e com a sua fortíssima inspiração, são valores que poderão triunfar. E poderão vencer todo um conjunto de enormes obstáculos, que são, no fundo, obstáculos criados pelo egoísmo das pessoas, pelo egoísmo das comunidades, pelo egoísmo das gerações.

Porventura o que para mim é mais paradoxal é esta incapacidade de estabelecer a justiça intergeracional. Todos nós somos dedicadíssimos aos nossos filhos, e todos nós estamos a construir, sem nos darmos conta disso, um mundo em que os nossos filhos terão imensa dificuldade em viver. Mas essa é, de facto, a opção desta geração: usar ao máximo os recursos do planeta e deixar o mínimo para aqueles que se nos vão seguir, por muito que nós os amemos e os procuremos ajudar nas suas vidas concretas, nas suas vidas individuais.

Mas também em relação a isso a sociedade civil cada vez mais se manifesta. E por isso eu creio que este apelo à multiplicação dos Bancos Alimentares Contra as Fomes é um apelo que traz consigo uma encíclica que tem quarenta anos, mas que é hoje mais actual do que nunca. E é também o apelo que eu penso que dá muito sentido à consciência cristã na sua intervenção no mundo de hoje.


(1) Para mais informações consulte www.digitaldivide.org/ (em Inglês).

António Guterres

© SNPC

 

 

Topo | Voltar | Enviar | Imprimir

 

 

barra rodapé

António Guterres
Edição mais recente do ObservatórioOutras edições do Observatório
Edição recente do Prémio de Cultura Padre Manuel AntunesOutras edições do Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes
Quem somos
Página de entrada