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Música

S. Francisco Xavier evocado por Jordi Savall

Esta é uma viagem iniciática. Que nos leva desde o castelo de Xavier (em Navarra), passando por Paris, Roma e Lisboa, até à Índia, Japão e China. Num outro plano, esta jornada que nos é oferecida por Jordi Savall acompanha a vida de Francisco Xavier, apóstolo do Oriente, e atravessa o fervilhar do humanismo renascentista. A música segue a par de “O Elogio da Loucura” de Erasmo de Roterdão, “O Príncipe” de Maquiavel, a “Utopia” de Tomás Moro, e as 95 Teses de Wittenberg, redigidas por Lutero, que romperam a unidade decadente da Igreja no Ocidente. Descobrimos ainda o movimento da Contra-Reforma, a regra da nascente Companhia de Jesus, as religiões poliédricas de África e da Índia, os cristãos esquecidos de Cochim, o islão do Oriente, o budismo e as religiões japonesas. Tudo isto em apenas dois discos? Muito mais: as referências culturais, oferecidas no livro, cruzam-se de forma perfeita com a música que só Jordi Savall poderia seleccionar desta forma delicada e preciosa. A poesia da música europeia (do gregoriano a Escobar, Narváez, Isaac ou Morales, entre outros) junta-se à intensidade dos ritmos africanos e ao exotismo dos sons orientais para nos dar uma obra-prima e indispensável. (António Marujo)

 

O projecto, por Jordi Savall

Se é verdade que a extraordinária epopeia de Francisco de Xavier nos interessava desde há muitos anos, a ideia inicial para a realização deste projecto começou a tomar forma na Primavera de 1996, a partir do convite que recebemos do Festival de Saint Florent le Vieil para executar um concerto com as músicas hispanas e japonesas do tempo da chegada de Francisco de Xavier ao Japão. O concerto com o título "1549 - Rituais e Profecias: Japão e Espanha em tempos de Francisco de Xavier" foi interpretado em 10 de Julho de 1996 na Abadia de St. Florent, com a participação de Montserrat Figueras, os solistas da Capella Reial de Catalunya e os membros de Hespèrion XXI, assim como dos músicos japoneses Yumiko Kaneko, Ichiro Seki e Masako Hirao. Este programa foi apresentado alguns meses mais tarde em Tochigi, Kioto, Yamaguchi eTóquio. Dez anos mais tarde, em 2006, a maioria dos cantores e músicos espanhóis e japoneses reencontrarm-se para celebrar o quarto centenário do nascimento de Francisco de Xavier, e nós aproveitámos a ocasião para realizar mais alguns concertos e preparar a gravação deste novo e fascinante livro-CD.

A celebração dos aniversários da chegada e Francisco Xavier ao japão e da sua morte foram as primeiras motivações para iniciar este projecto, mas a ideia fundamental que inspirou este programa nasce do fascínio e da admiração ante a incrível epopeia e, especialmente, a dimensão espiritual e humana de Francisco de Xavier. O seu surpreendente trajecto é o de um homem que viveu muito intensamente as suas crenças e que praticou rigorosamente todas as regras fundamentais da sua nova Companhia de Jesus, regras de pobreza, de caridade, de renúncia e sacrifício em favor dos mais humildes e dos deserdados. Um verdadeiro apóstolo da sua fé que, em menos de doze anos, e apesar dos meios escassos do seu tempo, percorreu mais de cem mil quilómetros, ajudado apenas pela força das suas crenças e confrontando com valentia as situações mais perigosas, assentando os alicerces das novas comunidades cristãs desafiando o poder e o orgulho dos bonzos japoneses.

Fé cristã no Japão
Luca Hasegawa, 1950, Museu Missionário Etnológico, Vaticano

Francisco de Xavier, acompanhado por missionários japoneses, desembarcou em Kagoshima em 1549. Ao largo da rota que o levava à ilha de Hirado, onde se havia estabelecido uma comunidade de ocidentais, tinha o costume de andar pelos caminhos entoando salmodias religiosas, fascinando assim a população local que, vinda de longe em grande número, esperava ver passar diante dos seus olhos os altos responsáveis jesuítas. Mas será necessário esperar até 1605 para que se publique o "Manuale ad Sacramenta" com dezanove destes cantos religiosos (entre os quais “Gloriosa Domina”), por meio de um editor japonês de Nagasaki. Esta data marca o início da difusão da música ocidental no Japão. Esta difusão foi efémera, já que em 1613 o cristianismo foi proscrito no Japão e, somente graças à prática mantida em algumas comunidades cristãs clandestinas nas ilhas próximas de Nagasaki, o "Manuale ad Sacramenta" se transmitiu até aos nossos dias sob o nome de "Oração".

Os 47 anos de vida Francisco de Xavier decorrem num momento histórico crucial para a civilização ocidental e, especialmente, para o cristianismo. Um meio século marcado por acontecimentos transformadores e decisivos: a consolidação do Renascimento, o auge do Humanismo, a Reforma e a Contra-Reforma, com a consequente fundação da Companhia de Jesus. Um período que vê aparecer obras literárias e filosóficas originais e profundamente críticas face ao funcionamento e aos responsáveis das instituições políticas e religiosas do tempo, como o "Elogio da Loucura", de Erasmo, dedicado ao seu amigo Tomás Moro, que, por sua vez, publicou a "Utopia", um texto extraordinário sobre a concepção do mundo ideal, sem esquecer as noventa e cinco teses de Martinho Lutero, nem o "Princípe", de Maquiavel. Ao mesmo tempo, durante a sua viagem para o Oriente, Francisco de Xavier entra em contacto com todas as principais crenças do mundo oriental: islão, budismo, hinduísmo, confuncionismo e cristianismo nestoriano. Quisemos, portanto, deixar um testemunho da maioria destes textos e credos que marcam este meio século extraordinário com uma selecção e apresentação realizadas pelo investigador e poeta Manuel Forcano.

Mártires do Japão
Mártires do Japão, Escola Portuguesa, séc. XVII-XVIII, Col. Arq. João Teixeira

Como dizia Elias Canetti, "a música é a verdadeira história vivente da humanidade, todos aderimos a ela sem resistência, pois a sua linguagem provém do sentimento e, sem ela, não seríamos mais que fragmentos mortos" (La Provincia del hombre, Die Provinz des Menschen, Aufzeichnungen 1942-1972, Carl Hanser Verlag, Munic-Viena 1973). Todos estes textos, todas estas histórias fascinantes, não estariam verdadeiramente vivos sem as suas músicas. recordar apenas em 160 minutos de música (devido ao espaço disponível em dois CDs) as etapas fundamentais da vida de Francisco Xavier e, ao mesmo tempo, referirmos os momentos transcendentais da nossa história moderna, são objectivos que não podemos alcançar se não através das músicas mais significativas que, cremos ou imaginamos, os protagonistas desses tempo puderam escutar e amar. Não são músicas descritivas, são as músicas da corte feitas em Navarra, em Espanha, em Paris, na Itália, músicas religiosas ou profanas que nos falam de acontecimentos históricos (Navarra, Pavía, Wittenberg), ou que mostram o espírito e o ambiente da corte (Henrique VIII), das cidades (Veneza, Paris, Roma, Goa) ou dos países (de África, Índia e Japão). A grande riqueza dos Cancioneiros do Século de Ouro e de Portugal, contemporâneos de Francisco Xavier, permitem-nos reencontrar obras religiosas de Joanes Ponce, Juan del Encinar, Cristóbal de Morales e de autores anónimos, em espanhol, latim e português que ilustram e que correspondem maravilhosamente ao misticismo e espiritualidade intensas de S. Francisco Xavier.

"O mundo é um livro e aqueles que não viajam só lêem uma página", dizia Agostinho de Hipona. Francisco Xavier foi um grande apóstolo, mas também um leitor do mundo. O seu desejo era saber, conhecer e, para o levar a cabo, tomou sem nenhum temor a rota do Oriente, os caminhos para o Levante: "ex Oriente lux", a luz vem do Oriente. A sua rota é a de um grande périplo que o levaria até África, do continente negro até à Índia, e do subcontinente indiano até ao Extremo Oriente do misterioso Japão primeiro, e da China inacessível depois. A energia que o impulsionava, a força e a decisão que lhe permitiam avançar até cumprir os seus objectivos sem desfalecer eram os seus princípios, a sua fé, a vontade de aprender e ensinar. E nada o desanimava: "Se não encontro uma barca - disse uma vez - irei a nado". Por onde passava, Francisco Xavier aprendia a língua dos nativos para poder comunicar com eles, para rir com eles, para cantar com eles, para ser eles.

Selo com imagem de S. Francisco Xavier
Selo dos Correios de Espanha

Os territórios do Oriente que o acolheram foram, principalmente, as colónias portuguesas das costas da África Oriental, da Ínidia, de Ceilão e das ilhas da Indonésia. Ali descobriu os abusos da colonização, a injustiça do amo que explora e humilha os seus escravos, todos os agravos que sofrem os deserdados. E não duvidou em denunciá-los e a dar-lhes remédio, enfrentando, se fosse necessário, as próprias autoridades para que fossem respeitadas a dignidade e os direitos dos nativos: "Os índios têm os mesmos sentimentos que nós". Incansável e firme nos seus propósitos, nenhum limite ou dificuldade o detiam: movido pelo desejo de levar a palavra de Jesus aos países mais fechados do Oriente, percorreu os mares até ao Japão e tentou passar furtivamente as portas da China, país totalmente interdito aos estrangeiros. Levar o consolo de uma crença que prometia a salvação da alma foi a meta das suas viagens; a sua presença e as suas palavras naqueles lugares e civilizações longínquas conseguiram convencer milhares de homens e mulheres de todas as condições. Ele atreveu-se a recordar aos reis as palavras de Jesus tantas vezes citadas por Inácio de Loyola, que também fez totalmente suas: "De que serve a um homem possuir o mundo, se perde a sua alma?" Todavia, hoje é recordado e venerado como "o conquistador de almas". E fizeram-no santo.

Com este Livro-CD que apresenta a sua epopeia - desde a Velha Europa ao País do Sol Nascente -, os extractos das suas cartas, os textos mais representativos do seu tempo, e algumas das páginas musicais da sua época e das culturas musicais (ainda vivas hoje em dia) que encontrou ao longo da sua rota do Oriente, queremos render a nossa homenagem mais sincera. Se o mundo é um livro, Francisco de Xavier leu todas as suas páginas. (Jordi Savall, Outono de 2007)

 

Título:
Francisco Javier, La Ruta de Oriente

Intérpretes:
Jordi Savall (dir.), Hespèrion XXI, La Capella Reial de Catalunya e outros

Edição:
Alia Vox, 2007

Contacto:
vgm@plurimega.com

António Marujo, Jordi Savall

18.02.2008

 

 

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Capa do CD duplo






























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