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400 anos

A herança do Padre António Vieira

Aquele dia é como se fosse o hoje em que o lembro. A tarde estava no fim e eu tinha chegado da escola. Agarrei o livro que me haviam recomendado, abri-o e comecei a ler. Aquela avassaladora onda de palavras ergueu-se: a sua forma é a sua força; o seu ímpeto é o seu sentido; a sua altura é a sua verdade; a sua perfeição é o seu poder. Quando cheguei à passagem que diz: “Arranca o estatuário uma pedra dessas montanhas, toca, bruta, dura, informe; e, depois que desbastou o mais grosso, toma o maço e o cinzel na mão, e começa a formar um homem – primeiro membro a membro, e depois feição por feição, até a mais miúda: ondeia-lhe os cabelos, alisa-lhe a testa, rasga-lhe os olhos, afila-lhe o nariz, abre-lhe a boca, avulta-lhe as faces, torneia-lhe o pescoço, estende-lhe os braços, espalma-lhe as mãos, divide-lhe os dedos, lança-lhe os vestidos; aqui desprega, ali arruga, acolá recama; e fica um homem perfeito…”, o ritmo do meu coração lia comigo. Como avança o cavaleiro sobre o cavalo a galope, assim eu me fundia com aquele movimento verbal, que tem o som dos grandes fenómenos da natureza. Nesta escrita-dita, ao mesmo tempo ordenada e tumultuosa, eu vi que a língua não tinha medo de si, nem da sua audácia.

Os “Sermões” e as “Cartas” do padre António Vieira são dos grandes textos da vida de quem os lê. as suas palavras altas, rápidas e sonoras regressam como uma música que nos persegue. Tornam-se a outra voz: a que nos falta e a que nos fala. A que temos, não tendo. Vieira leva a língua aos limites, fá-la delirar, alucina com ela a realidade. No seu discurso, há a majestade dos grandes repousos e das grandes fadigas, a elevação solene das montanhas e a vertigem horizontal das planícies, a altivez dos mitos e a desmesura dos vazios. Mas é uma voz sem silêncio, que tem o clamor do trovão e o clarão do relâmpago. Nesse vaivém de palavras plenas, há voracidade e veemência, afirmação e negação, fogo e fervor, diferença e repetição, imprecação e pedido. Há vontade e persuasão, silogismo e sofisma, argumento e visão, pena e absolvição, razão e loucura, alvo e seta, fúria e medida. Este jogador compulsivo do grande casino das palavras aposta tudo no seu jogo: o tempo e a eternidade, Deus e os homens, os reis e os escravos, a terra e o céu, os santos e os pecadores, os vivos e os mortos, as pedras e os peixes, os ventos e as searas, o passado e o futuro.

Aquela hora é como se fosse a de hoje, em que a recordo. Era a meio da noite, eu tinha acordado e a minha insónia tinha o desejo de ler. Tomei o “Livro do Desassossego” e abri-o. Estava lá escrito: “Li pela primeira vez numa selecta o passo célebre de Vieira sobre o Rei Salomão (…) E fui lendo, até ao fim, trémulo, confuso; depois rompi em lágrimas felizes, como nenhuma felicidade real me fará chorar, como nenhuma tristeza da vida me fará imitar. Aquele momento hierático da nossa clara língua majestosa, aquele exprimir das ideias nas palavras inevitáveis, correr de água porque há declive, aquele assombro vocálico em que os sons são cores ideais.” O Vieira de Bernardo Soares é o meu Vieira: aquele que arrebatou a Deus a palavra em que o diz.

 

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Padre António Vieira na agenda

 

José Manuel dos Santos

in Expresso, 02.02.2008

Publicado em 06.02.2008

 

 

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