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Evocação

O adeus jubiloso do padre Lucien Deiss (1921-2007)

No passado dia 9 de Outubro morreu o padre Lucien Deiss, membro da Congregação do Espírito Santo, depois de um longo período de doença que o incapacitou na recta final da sua história entre nós. Este padre espiritano permanecerá como um dos símbolos da renovação musical litúrgica que, no campo católico, precedeu, acompanhou e realizou o reformismo do II Concílio do Vaticano – poucos católicos em Portugal não conhecerão o seu «Povo de Reis». Lucien Deiss encontra-se na convergência de dois dos principais dinamismos de renovação no catolicismo contemporâneo, o «movimento bíblico» e o «movimento litúrgico».

Nasceu em Eschbach (Alsácia), no dia 2 de Setembro de 1921. A família fixou-se em Estrasburgo quando tinha dez anos. Os seus primeiros interesses musicais remontam, seguindo a sua memória, a esse período: «O coro da paróquia era dirigido pelo Sr. Irr, profissional coadjuvado por três organistas. Na Sexta-Feira Santa o coro cantava o «Stabat Mater» de Nanini. Nunca mais o esqueci. Gravei-o mais tarde com o meu coro de Chevilly»*.

A sua trajectória de formação e aproximação à Congregação do Espírito Santo começou com a admissão na Escola Saint-Florent de Saverne, percurso que culminou nos estudos teológicos realizados no Seminário Maior de Chevilly e em Roma. A sua preparação musical foi apurada no Instituto de Música Sacra, em Roma: «Tive a sorte de ser aluno do mestre Ferrucio Vignanelli e de encontrar Dom Sunol, grande especialista no gregoriano». Na sua memória guardava o som daquele Merklin com três manuais, instalado na Igreja de S. Luís dos Franceses, que ele tocava na missa das onze horas aos Domingos.

Foi ordenado em 1945 e partiu, em 1947, para Brazzaville (Congo) para fundar, com outros colegas, o Seminário Libermann. Um problema de saúde fê-lo regressar a França, um ano passado, assumindo o cargo de professor de Sagrada Escritura no Seminário de Chevilly.

Lucien Deiss falava do seu despertar para a criação musical litúrgica sob o signo da contingência, mas com uma aguda compreensão dos desafios do tempo: «Tornei-me compositor quase por acaso. Na pequena paróquia do Bom Pastor quis que o coro cantasse gregoriano. Um fracasso! Observando quanto os meus paroquianos ignoravam a Bíblia, disse para comigo: porque não utilizar a música para memorizar os textos essenciais da Bíblia? […] Em vez das palavras de fogo dos profetas, propunha-se aos fiéis a água morna dos catecismos da época. Em vez dessa chuva de estrelas que são, no céu da revelação, os salmos, oferecia-se-lhes pequenas velas de devoção. Era necessário substituir a água do cântaro pela água viva das fontes bíblicas».

Assim começou e se projectou uma notável actividade de criação musical litúrgica. Como outros compositores de música litúrgica em diversos contextos nacionais, Deiss tinha à sua frente um enorme desafio. De facto, a acção celebrativa católica romana privilegiava há muitos séculos o uso de uma língua litúrgica. A expressividade musical estava, assim, marcada pela história de uma forte relação de compromisso entre uma arquitectura linguística e os idiomas musicais transmitidos. Lucien Deiss é, por isso, um dos actores da reinvenção de uma memória respondendo, então, ao desafio da integração (inculturação), com plena cidadania, das línguas dos povos na comunicação litúrgica das assembleias católicas.

Segundo os registos da SACEM («Sociétédes auteurs, compositeurs et éditeurs de musique»), ultrapassou as quatro centenas de títulos. Na década de 50, interessou-se com urgência pela poesia do Livro dos Salmos, nas versões em língua francesa de J. Leclercq, projecto que logo incluiu, uma considerável produção de cânticos marianos, de inspiração bíblica, bem como os hinos, orações e cânticos neotestamentários, com outros fragmentos da literatura paleocristã, fontes que ele, em parte, traduziu – este interesse pelas fontes bíblico-litúrgicas está bem patente nos diversos ensaios e estudos que publicou, traduzidos em diversas línguas, sobre a Eucaristia e a celebração litúrgica. Mais tarde, ele próprio se integrou numa vasta corrente de himnologia que, em França, contou com nomes como Patrice de la Tour du Pin ou Didier Rimaud. Quanto às formas musicais, recolheu-as na experiência da tradição orante e celebrativa cristã: formas responsoriais e antifonais, hinos, litanias, aclamações, orações, todas elas com forte enraizamento nas práticas litúrgicas cristãs. Nessa diversidade, descobrem-se corais muito transparentes, gestos aclamativos vibrantes, recitativos prenhes de interioridade (como não recordar os momentos em que a previsibilidade do desenho melódico é rompida por um rasgo melismático, emblema de uma espiritualidade da jubilação, tão cara a Lucien Deiss, presente na sua música, nas suas fotografias e na sua poesia litúrgica ou orante). O idioma musical revela, com evidência, o acolhimento de uma pastoral centrada nos ideais de participação da assembleia litúrgica cristã, preferindo a clareza da homofonia à superabundância da polifonia.

O registo em vinil e mais tarde em CD de boa parte da sua obra permitiu uma fácil penetração fora de fronteiras – gravou perto de uma centena de discos em França e noutros países que conheceram edições autorizadas da sua obra. São uma referência histórica as gravações com a Schola du Grand Scolasticat de Pères du Saint-Esprit-de-Chevilly e a participação feminina da Chorale Elisabeth Brasseur, contando com a colaboração de uma das mais importantes organistas francesas, Marie-Claire Alain, a voz do tenor solista Maurice Fréchard, espiritano, hoje Arcebispo emérito e Reitor do Sacré-Coeur, em Paris. Aliás, a Schola de Chevilly deixou ainda registo do trabalho de direcção de Deiss no campo da música gregoriana e da polifonia da Renascença, interpretações ainda hoje procuradas por certas sensibilidades audiófilas – longe das estéticas recentes de reconstituição histórica, são testemunhos de uma prática viva de interpretação dessa tradição musical nas comunidades religiosas.

A música de Deiss chegou a todos os continentes. Recriou ou acompanhou a edição da sua música litúrgica em diversas línguas – italiano, castelhano, alemão, inglês, etc. É comovente a leitura da dedicatória que o jesuíta Pau Che’n escreveu numa colectânea de versões em chinês dos seus salmos, cânticos e hinos (Taiwan: Kuanghi Press, 1970): «Para o estimado Padre Lucien Deiss, no outro lado do mundo. O povo chinês junta-se doravante, graças ao seu talento musical e ao seu carisma, ao hino que se eleva para o Senhor». Os EUA revelaram um particular interesse pela música de Lucien Deiss. As duas primeiras recolhas publicadas venderam, cada uma, mais de um milhão de exemplares; mais tarde algumas das edições ultrapassaram os cinco milhões de exemplares vendidos – vários projectos missionários dos espiritanos beneficiaram desses resultados. O seu «Souviens-toi de Jésus-Christ», depois «Keep in Mind», tornou-se o canto de anamnese mais conhecido no mundo católico anglófono. Em 1992, nos EUA, foi-lhe atribuído o Prémio «Pastoral Musician of the Year». O reconhecimento de quem descrevia assim o ofício do compositor na liturgia da Igreja: «vestir as palavras de Deus com a beleza da terra».

 

Escutar Lucien Deiss.

Alfredo Teixeira

Centro de Estudos de Religiões e Culturas, Universidade Católica

 

 

* Os fragmentos citados pertencem a um texto autobiográfico publicado em «Pentecôte sur le Monde» (Março-Abril, 2007).

 

 

Publicado em 17.10.2007

 

 

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