O real e a ficção na "Manhã Submersa" de Vergílio Ferreira
Em 1954 foi publicado pela primeira vez o conhecido romance Manhã Submersa de Vergílio Ferreira. A obra vegetou durante quase vinte anos até que se tornou bastante conhecida após o 25 de Abril de 1974. Para isso contribuíram três factores fundamentais: a consideração e fama do autor, o filme realizado por Lauro António e o aproveitamento politico da obra como um ataque à Igreja e à educação nos seminários.
A Manhã Submersa recorda a vida passada por António Lopes, o alter-ego de Vergílio Ferreira, no pequeno Seminário da Diocese da Guarda, situado junto às Donas e ao Fundão. O narrador foca um passado vivido com tal intensidade que se torna presente em direcção a um futuro. Não se trata de uma memória qualquer, mas de uma memória interrogativa, angustiante, por vezes trágica, analisando a consciência como Dostoievski, dando menos valor à visão sociológica tão querida por Balzac. A memória vive entre a realidade e o imaginário.
Ora a distinção entre o real e a ficção não é fácil, pois não sabemos muito bem onde está a diferença entre os dois. Francois Mauriac notava que quando numa obra sua tinha factos inspirados no real, os leitores descobriam uma maravilhosa ficção. Pelo contrário, quando determinadas acções eram para ele efabulação, os leitores afirmavam ver aí cópia do real. Paul Ricoeur chegou a escrever que a ficção era mesmo um supra-real. Vergílio Fcrreira, por sua vez, afirma que “o real é uma vigarice” e fala mesmo da insensatez da realidade em literatura. Entendo por real a vida original, autêntica, conhecida, vivida pelos jovens no Seminário do Fundão e de modo particular por António Lopes, o alter-ego do autor. Associo ficção à procura do belo, à interiorização, à transfiguração, à forma poética de transmitir essas mesmas realidades. Ao analisar o real e a ficção tentaremos percorrer os lugares que o autor desvendou, identificar as pessoas com quem viveu, trilhar os caminhos da educação, chorar a evidência da morte, aprofundar o mistério do transcendente.
Os espaços e os tempos
A acção do romance ocorre na Beira Alta, num espaço que o autor conhece e sente muito bem. Vergílio escreveu de si mesmo: “Levo a província comigo e me instalo nela”. Tudo se passa na aldeia de nascimento do protagonista, no Seminário e durante as viagens da ida e vinda de férias. Reencontramos cidades e vilas reais, como Celorico da Beira, Trancoso, Guarda, Belmonte, Covilhã e Alcaria. A Guarda, capital do distrito merece particular destaque sobretudo com um episódio passado numa pensão (63-68) [As páginas mencionadas neste artigo pertencem à edição da Livraria Bertrand, 1979]. Também a Covilhã se revela com algumas particularidades geográficas e atitudes anti-clericais, pois nessa terra os seminaristas são comparados aos corvos. Curiosamente a aldeia de origem, Melo, aparece com o nome de Castanheira. Que motivos teriam levado o autor a escolher este nome? Talvez o facto de ver os castanheiros como símbolo de permanência, factor de identidade e força económica, Ele os descreve “esguios, subindo tristemente pela colina, no silêncio frio da manhã” (27), repetindo logo a seguir “esguios, errantes pela colina, vagos, desencorajados”. (32) Também na obra de um outro escritor beirão, Aquilino Ribeiro, o castanheiro é eterna presença, chegando a dizer que há “castanheiros que deram sombra aos mouros”. O Fundão é identificado por Torre Branca, talvez por associação com uma casa ilustre que ainda hoje se levanta no lado esquerdo, à saída da vila em direcção ao Seminário e que pela sua estrutura recorda uma torre. Sendo torre é espaço fechado, sendo branca é claridade.
Os espaços são detestados. A casa de D. Estefânia aparece como um claustro. O seminário é asfixiante, como acontece em outros romances onde se fala de formação sacerdotal. Em Le Rouge et le noir podemos ler: “Voilà donc cet enfer sur terre, dont je ne pourrai sortir”. Há no autor uma profunda topofobia. Reais, embora mitológicas e transfiguradas, são as montanhas, a Gardunha com o seu manto verdejante e a Estrela com as suas neves imaculadas. Dela escreveu Vergílio: “Olho a serra e não me canso de a olhar na sua imóvel magnitude”, escreve em Cartas. As viagens têm também algo de simbólico e mítico e são ao mesmo tempo ocasião de encontros e libertação, factor de auto-conhecimento, numa permanente luta entre o eu e o mundo em relação de que fala Goethe. -
Façamos uma breve história do Seminário do Fundão. A Diocese da Guarda mandara construir o Seminário de Nossa Senhora do Rosário, mais conhecido por Seminário do Mondego e que fora aberto em 30 de Outubro de 1904. A direcção dos trabalhos esteve confiada ao Padre Manuel Mendes da Conceição Santos, futuro Arcebispo de Évora. Era Bispo da Guarda D. Manuel Vieira de Matos que veio a ser Arcebispo de Braga. Pouco tempo depois veio a implantação da República e foi confiscado pelos revolucionários. Para a educação dos jovens seminaristas a Diocese consegue no Fundão um imóvel que antes tinha sido uma fábrica. “A antiga casa da fábrica foi doada por António Ribeiro Ferreira”. Inicia as suas actividades no ano lectivo de 1919-1920, após uma certa acalmia trazida por Sidónio Pais. No seminário, que era o liceu dos pobres, se formaram centenas de jovens, até que a Diocese constrói um edifício novo, não muito longe do antigo e que começa a funcionar em Outubro de 1935. E na velha casa que Vergílio Ferreira vai passar cinco anos.
No romance o Seminário é descrito como efectivamente era, um casarão pobre, frio, com janelas rasgadas. No rés-do-chão estava a cozinha, o refeitório e as salas de estudo com as canteiras, o púlpito de vigilância e um olho na porta. No primeiro andar encontravam-se as camaratas, a capela e uma enfermeira que em dia de tempestade ficou destruída. Cá fora e do outro lado da estrada um jardim (163) e para o lado da encosta “a fila de retretes, em frente, acocoradas sobre um rego de água” (23), água desviada da ribeira que desce de Alcongosta e que ainda hoje corre entre arbustos verdejantes.
Se tentarmos verificar os tempos dos acontecimentos não encontramos qualquer indicação. Outros autores como Alexandre Herculano e Stendhal temporalizam as narrativas nas respectivas épocas, ajudando assim a esclarecer os acontecimentos. Alexandre Herculano situa O Pároco de aldeia em 1825 e as Lendas Narrativas têm todas a sua data. Stendhal junta ao título Armance a seguinte informação: ou quelques scènes d’un salon de Paris em 1827. O romance Le Rouge et le noir está completado por: Chronnique de 1830. Se o autor tivesse especificado o tempo da sua estadia no seminário, o leitor de Manhã Submersa poderia ter compreendido melhor a história, os factos, os processos educativos e as reacções das pessoas, Mas ele defende-se dizendo que “todo o grande livro é datado, Mas o que não tem data é o que sobra dessa data. Sobra alguma coisa de Manhã Submersa”. O autor nota ainda que não seguiu uma ordem temporal. “Impossível seguir, na minha narrativa, uma cronologia continua” (123).
Vergílio, ao suprimir o tempo, pensou numa mensagem para além do tempo, numa obra para a imortalidade ou se preferirmos à beira do intemporal. Em Os Lusíadas também Camões eliminou as referências temporais, deixando na sua epopeia somente uma, a data da partida para a Índia:
“Cursos do Sol catorze vezes cento
Com mais noventa e sete, em que corria
Quando no mar a armada se metia”. (V-2)
O autor tem, no entanto inúmeras referências ao tempo, ou melhor à temporalidade. Deixa-se impressionar pelas sombras da tarde, o nevoeiro que desce a montanha, o frio de Inverno, a noite limpa. Normalmente a suas obras começam por falar do tempo, dos meses, do frio e do calor, como no romance Até ao fim. O romance Para sempre começa deste modo: “Para sempre. Aqui estou, E uma tarde de verão, está quente. Tarde de Agosto”. O autor que viveu obcecado pelo tempo prefere à cronologia uma simples cronografia, Para ele o tempo era insondável, por isso se fixa nos tempos atmosféricos ou nas vivências das personagens. Ora é nestes espaços e tempos que se movimentam as pessoas, cuja existência real objectiva vamos tentar desvendar.
As Pessoas e as personagens
Deixemos de lado as pessoas da aldeia, a Dona Estefânia, a mãe, o tio, os amigos. Fixemos a nossa atenção somente nos padres e seminaristas e de modo particular na vida que Vergílio Ferreira efectivamente passou no Seminário. Alguns padres presentes no romance foram facilmente identificados pelos meus interlocutores e antigos companheiros do autor. O Pe. Lino, professor de latim é o Pe. José Paula Fino que mais tarde foi pároco de Vila Nova de Tázem. O autor só mudou o nome Fino para Lino, pois o patronímico tinha conotações de um certo agrado que não se cooadunavam com a personagem. O autor caracteriza-o como funesto, agressivo, “de olhares curtos como bicadas”. Analisa-o mesmo como “Meio padre de Deus, meio padre de bruxas e do Demónio” (174). Era terrível com a palmatória e o Lopes receia que o “Pe. Lino me desfizesse à pancada” (187). O Pe. Tomás, muito presente no romance era o professor de português, pouco simpático pois “que sofria do fígado, malhou neles paternalmente” (111). Surge como “vasta sombra que se projecta em todo o seminário, irascível e temível”. O Pe. Tomás faz recordar o Pe. Gustavo Adolfo Ribeiro de Almeida que era na realidade professor de português. Mais tarde teve responsabilidades directivas no Grupo das noelistas e paroquiou uma conhecida freguesia de Lisboa. Os dois padres eram ferozes, temíveis e os alunos ainda vivos guardam deles tristes recordações.
Geralmente os padres não são muito simpáticos: “Rememoro o humor frisado e agressivo do Pe. Lino, a vasta sombra do Pe. Tomás nos corredores, a feminilidade nervosa do Pe. Fialho, o grosso Raposo, o Pe. Martins de pau, o melancólico Pita, o Silveira, o Canelas, o Reitor” (124). Noutra ocasião tenta completar os retratos dizendo que o Pe. Canelas “cobria-nos de agoiro” (32), o Pe. Raposo é “carrancudo”; o Pita tem “olhos escorraçados” (32); o Pe. Martins tem um carácter “frio e desumano” e mostra-se “exacto e magro como um artigo de Regulamento” (33).
Só o Padre Alves se salva. Com a sua “fronte de gigante” era um “bom varão que me tratava por filho” (39). Mostrava-se “verdadeiro e humano” e envolvia-o uma lenda de “coragem e de glória”. Iluminava o seu rosto um “olhar silencioso e compassivo” (178). Os antigos alunos vêem no retrato deste Pe. Alves o confessor e pároco das Donas, Joaquim Alves Brás que depois seria director espiritual no Seminário Maior da Guarda e fundador da Obra de santa Zita. O reconhecimento geral das suas virtudes faz com que decorra presentemente o processo da sua beatificação.
Numa análise cuidada é fácil reconhecer que um dos retratos menos verídico e exacto é o do Reitor, Monsenhor António dos Santos Carreto natural de Aranhas. Na realidade, como pessoa, O Reitor era muito diferente da descrição elaborada por Vergílio. Descreve-o fisicamente assim. “Não era um homem alto, nem rude, nem agressivo. Tinha uma fala doce, vagarosa, levemente nasal. E, que eu saiba, nunca aplicou a nenhum aluno qualquer castigo violento” (34).Mas logo a seguir o autor diz que o recorda “como o símbolo mais perfeito do terror2 (35). “O terrorismo dele era puro de silêncio” (35). No fim do encontro com o Reitor confessa que não foi castigado e teve “o desejo de clamar, para a lonjura dos salões, a bondade do Reitor, a sua grandeza de Senhor” (44). A maior parte dos antigos seminaristas reconhecem no seu antigo Reitor, Monsenhor Carreto altas qualidades de pedagogo. Há, no entanto, um pormenor que devemos salientar. Todos os padres têm nomes, adaptados ou fictícios. O Reitor não tem nome. Em Gil Vicente também encontramos personagens que não têm nome e por isso são tipos porque síntese de outras pessoas com a mesma função. O Reitor não é mais do que o símbolo do poder. Ao criticá-lo o autor critica o poder dos directores escolares, como faz em Aparição, quando o Dr. Alberto vai ao Reitor e diz: “Eu ali, eterno réu perante o mundo e a vida”.
Também alguns seminaristas, “os fatos pretos” como o autor repete frequentemente, apresentam nomes que antigos colegas reconhecem, como seja o Taborda e o Henrique. De outros é feito um retrato, mas com nomes diferentes. Alguns condiscípulos reconhecem facilmente em Gaudêncio o Brigas que veio a morrer vitimado pela epidemia que grassou no Seminário do Fundão e que fez com que a casa estivesse fechada quase um mês, ficando os alunos em casa dos pais (196).
Para Vergílio Ferreira as pessoas não são mais do que meios utilizados para explicar a existência, desvendar o mistério das coisas e ouvi-las para saber interrogar-se. Ao falar das pessoas, reconhecemos que o autor vive entre o absoluto e a medida, o real e o sonho, a noite e a claridade.
Mas como era realmente a vida de Vergílio Ferreira no Seminário do Fundão?
O retrato que aqui deixamos é a súmula de informações recebidas dos antigos companheiros. O autor de Manhã Submersa revelava-se muito tímido, talvez por causa da sua educação e das relações com as tias e a avó materna. A agressividade que por vezes encontramos em páginas de Conta-Correntetalvez não seja mais do que um modo de se defender, mais do que atacar. Teve ocasiões em que a sua saúde era frágil, chegando a alimentar-se com a comida dos professores. Mostrava-se por vezes taciturno, um pouco severo, muito observador das regras. As suas notas de comportamento de que dá conhecimento (190) eram excelentes. Todos os colegas desse tempo estão de acordo de que ele era muito inteligente, superior, com excelentes notas (16 a latim no primeiro e no terceiro ano). Em Português revelava já dotes invulgares. Em carta de recomendação enviada para o Seminário do Fundão, datada de 1 7 de Agosto de 1926, o pároco depois de enaltecer a família, as qualidades morais e o gosto de Vergílio pelo violino, afirma: “tenho também verificado que é um espírito penetrante, devendo trazer muito prestígio à Igreja e à classe eclesiástica se tiver a dita de se ordenar”. O seu pároco Pe. António de Jesus Parente mostra um grande poder de observação. Os dotes musicais de Vergílio continuaram pois chegou a tocar flauta na Banda do Seminário e violino na Tuna Académica de Coimbra. Uma outra característica, bem gravada na memória dos colegas, é que Vergílio tinha excelentes qualidades de actor. Recordam-se actuações no drama Tarcísio e na peça Satã em que faz o papel de anjo. Para ele eram reservadas personagens afáveis, de uma certa ternura. Nos estudos de filosofia distinguiu-se de forma relevante, tendo merecido frequentes e rasgados elogios do seu professor Dr. João Mendes Abranches. Enfim era muito admirado por condiscípulos e professores. Como escreveu um antigo aluno do Seminário, Vergílio “Foi apreciado, bem tratado e até amimado”. Não era propriamente um “graxista” (196), pois merecia a consideração que lhe devotavam. Mas a vida dos seminaristas será melhor compreendida se recordamos os processos de educação.
Caminhos da educação
Já vários críticos definiram Manhã Submersa não como um romance sociológico mas de adolescência, e educação. José Rodrigues Paiva confessa que “a preocupação com o social é secundária”, pois nota-se um “mergulho psicológico na consciência da personagem. A educação dos jovens seminaristas faz-se pela vivência e relações quotidianas, a descoberta de si e dos outros e ainda pela aprendizagem de um certo saber.
A vida dos seminaristas encontra-se muito bem descrita na Manhã Submersa que dá a conhecer a vida real de então. Foquemos só alguns factos mais originais da vida passada no Seminário e que descritos não são simples fruto da imaginação do autor, mais reais, autênticos e que perduraram bastante tempo, pois eu mesmo ainda vivi algumas destas situações no novo seminário do Fundão.
Fundão
Os seminaristas tinham fatos pretos, o que leva o autor a empregar muitas vezes esta designação em vez de seminaristas. Na viagem para o Fundão refere várias vezes a entrada de uns tantos fatos pretos. Na vida quotidiana vestiam uma bata de xadrez, com cinto, feito ora do pano da bata, ora de cabedal. O autor conta o episódio um tanto caricato de um cinto que se perde e que serve para um divertimento. Os alunos estavam agrupados em “divisões”, três ao todo, quando antes eram só duas. Na primeira estavam os mais pequenos, na segunda os médios e na terceira os maiores. Antes a ordenação era inversa. Os alunos de divisões diferentes não podiam comunicar entre si. As calças eram tiradas dentro dos lençóis, e acordava-se ao som da voz do prefeito que anunciava: Benedicamus domino a que os jovens ainda sonolentos respondiam Deo Gratias. Era proibido ter qualquer coisa para comer, artigos a que na sua gíria os seminaristas chamavam contrabando. Por isso Lopes fala dos seus queridos figos que defende a todo o custo. Em certos dias do ano havia grandes passeios, as chamadas casas de campo. Normalmente eram cinco, pelos Santos, dia 12 de Janeiro, aniversário do Reitor, dia 18 de Fevereiro aniversário do Bispo, uma pela Páscoa e outra no fim do ano. Havia aulas em que os alunos estavam divididos em dois grupos, dois exércitos, com regras que o autor especifica. Como diversão e entretimento havia alguns jogos, sobretudo o da barra e o da bandeira, Para a formação musical existia uma Banda em que Vergílio tocava flauta e para a educação literária uma Academia que ainda hoje perdura. É evidente que as cartas eram entregues abertas. A vida de piedade seguia as regras e as devoções que encontramos no romance. Tudo como conta o autor. Estamos de certo modo perante uma biografia próxima do real.
Fora do Seminário atormentava os alunos o Mão Negra (112), um bandido que os meus interlocutores identificam com o Zé do Telhado e que chegou a ocultar-se numa roda de lagar, conseguindo deste modo fugir à policia. Eram tempos de dificuldade, com carências de toda a ordem, compulsivamente vividos por jovens em plena adolescência. Havia pois ânsias de sair, de fugir, de procurar a liberdade (105). Um outro caminho do desenvolvimento pessoal passava pela descoberta da vida que despontava, pela invocação ao corpo.
No Seminário começa o adolescente a ter a vivência, a escutar as vozes do seu corpo em transformação. Muitos anos mais tarde Vergílio Ferreira escreverá uma obra com este título: Invocação ao meu corpo. Ora se invoca o corpo é porque tem consciência de que o corpo não é seu, embora ele o tenha e o corpo o tenha a ele também. Se Merleau Ponty escrevia Humanisme et terreur e confessava que “eu sou o meu corpo”, Vergílio olhava para o corpo como um mistério, convicto de que como dizia Sófocles, “o maior prodígio é o homem”. Sabia, no entanto, que este homem é uno e é esta unidade que lhe dá sentido.
No seminário os jovens viviam dominados por uma moral cristã que os excitava entre paradoxos e contradições, Por um lado a negatividade, por outro a apregoada sublimação das paixões. Por um lado o recalcamento, o reducionismo, por outro lado uma apregoada vitalidade e personalismo, Por um lado a privação, o assassinato das pulsações, por outro o enriquecimento com valores que se querem imortais. Por um lado a destruição do eu, do mundo, por outro lado a sublimação de nós mesmos, Na vida era forçoso procurar o eclipse de tudo o que se supunha acessório e ouvir as vozes do silêncio para se construir uma personalidade capaz de viver num mundo de castelos e fortificações. Tal programa de vida não impedia o desejo de possuir e de ser possuído, de viver só, mas em comunhão. Trata-se de fazer a aprendizagem do amor ou se quisermos de vários amores sentidos e cantados no mais íntimo de cada um.
Na aldeia de Melo ainda hoje se fala de uma relação amorosa entre Vergilio e a filha de um brigadeiro, amor que nunca se concretizou por oposição do pai da jovem, Por este motivo a jovem morreu tuberculosa e de desgosto, segundo crença do povo. Vergílio confessou um dia a um antigo colega do Seminário que pretendia cantar este amor. Tê-lo-á feito em alguma das suas obras?
Na adolescência é forçoso descobrir a sexualidade que desponta, a sós ou através de revistas. A mulher enche o coração, seja a sedução de Mariazinha, o encantamento provocado pelos seios da Carolina ou o sonho com a irmã do Gaudêncio. O tio Gorra espicaça os sentimentos com a hipótese de uma vida impossível sem mulher No entanto os jovens são levados a um recalcamento, a uma mutilação do seu eu, no aspecto físico, empírico e psicológico. Pregam-lhes que devem amar a Deus, socorrer o próximo, mas não se podem amar o que é profundamente anti-evangélico.
Um outro factor de educação a relação entre a amizade e o ódio. António Lopes vive uma intimidade de situações e sensibilidades com o Gaudêncio e o Gama. Há nestas relações um abrir-se aos outros, uma comunicação de afectividades que procura a plenitude. Mas nestas relações humanas há muitas vezes humilhação e ódio. O Dr. Alberto tenta rebaixá-lo com perguntas sobre a Gramática latina. No comboio é objecto de escárnio. Na estação da Covilhã sente-se fustigado embora sem razão. Nas aulas sofre-se sob a dureza da palmatória. Enfim a sensibilidade é agitada, ferida no que há de mais profundo e sagrado.
Para esta situação contribui imenso o descobrimento da hipocrisia de que Dona Estefânia e o Reitor são os principais protagonistas, sobretudo quando se fala de vocação, Mas não só a vida com a sua dureza ajuda a construir a personalidade.
Também a evidência da morte leva ao jovem a interrogar-se.
Para esta educação havia uma certa pedagogia apoiada no regulamento implacável que impunha respeito, sofrimento e sentido de culpabilização. O importante não era amar a vida, mas preparar-se para a grande missão sacerdotal. Pregava-se a sabedoria, a prudência, a tolerância, a disciplina, a lealdade, a confiança. Sempre a necessidade do silêncio interior e exterior. A exemplaridade funcionava como missão. Para isso era necessário descobrir, criar, transmitir, com acção, responsabilidade e liberdade. Ora estes elementos tão pregados faltavam na pedagogia do Seminário, neste desenvolvimento evolutivo, físico, mental e moral dos seminaristas. Sentia-se, paradoxalmente, uma boa pedagogia nas intenções, mas ao mesmo tempo uma anti-pedagogia nos processos. Não se procurava tanto o sentido critico, mas uma grande emulação, um empenhamento individual.
Afinal sendo um romance de educação, a Manhã Submersa é também um romance de desencanto e de destruição que se encontra sobretudo na morte.
A evidência da morte
O adolescente vê-se já diante de algumas mortes, sobretudo do Gaudêncio. Descobre que a vida é breve, que a existência passa e que há um constante caminhar. Vivemos um eterno retorno para este mundo original.
Quando o Pe. Pita confessa que tinha morrido o Gaudêncio, António Lopes confessa: “Fiquei assim longo tempo, aturdido, olhando o Padre, olhando as sombras da noite, até reconhecer enfim que havia morte no mundo. E repetia baixo: “Morreu, morreu” (201). Este Gaudêncio é visto pelos meus informadores como encarnação de um companheiro de Veríilio, o Brigas que realmente veio a morrer por causa da epidemia que grassou no Seminário e que é relatada na Manhã Submersa. Há depois a cerimónia do enterro do jovem, onde se ouvem os ofícios cantados e cada um fica atormentado, reconhecendo que “se falava de uma ira final, do fogo e das cinzas de um dia de horror” (204).
A morte, como “o único problema do homem” é um tema constante na obra vergiliana, sobretudo em alguns romances e volumes da Conta Corrente onde escreve: “A morte é o absurdo da vida” e “é tão difícil morrer, tão absurdo morrer”. Afinal tudo é e nada é. Nos seus romances as personagens são seres limites que morrem. Em Alegria Breve Jaime enterra Águeda e depois como que tenta levantar-se à face do universo. Mário de Cântico final procura na morte a essencialidade. Até as aldeias aparecem destruídas e funcionam como símbolos do mundo. Há uma constante experiência da morte. Poderíamos dizer que é tal a presença da morte que estamos perante uma escrita circular, como recorda Gaston Bachelard. Ao falar da morte muito fica por dizer pois o que se sente é indizível, não restando mais do que o silêncio.
Antes da morte, o homem vê-se por vezes destroçado, desintegrado, balouçando entre o ser como fundamento que procura pela racionalidade e o ser como emoção que procura pelo sentimento. Vive como clandestino num mundo que não é seu, mas absurdo, como recorda Brecht. Talvez já em tempos de adolescente Vergílio pensasse continuamente na mensagem de Sófocles que em Antigona fala do túmulo como «retraite soutérraine, ma prison à jamais”.
Mais tarde as mortes dos familiares de Vergílio vão ferir profundamente a sua sensibilidade e levantar muitas questões. Na Conta-Corrente não deixa passar sem notação a morte de uma tia. “Regressei ontem de Melo, No dia 15, pela manhã, morreu a tia Quina [...] disse que sim à morte”. Quando a irmã foi enterrar pensou que muito provavelmente só voltaria à aldeia para aí ser enterrado também. E em 2 de Março de 1996 là ficou no cemitério da terra que o viu nascer, voltado para a serra que um dia deixou, mas à qual ficou ligado para sempre. “Era a grande montanha a oriente, a sua liberdade espacial, era o bafo quente de um amor perdido, a flor original de uma alegria morta” (13).
Em Alegria Breve diz que “Amanhã será um dia novo”, mas lá no fundo talvez pense com Marco Aurélio que amanhã cada um será um simples nome. Perante este desfazer total que resta ao homem senão recusar o esperar as coisas, para viver na esperança do inefável. E amparar-se na fé que procura, procurando a eternidade através do eterno problema de Deus.
A fé e a crença
Muito se tem escrito sobre a fé de Vergílio Ferreira e sua apregoada morte de Deus. Em Manhã Submersa não falta uma grande interrogação sobre Deus, a grande questão metafísica sobre a existência do Criador, formulada por Gaudêncio: “E se Deus não existisse?” (192). Esta inquietação é partilhada pelo António Lopes que se interroga entre angústias e sofrimento sobre a luz simples da vida, o impossível, o transcendente.
Mas antes de falar da fé em Deus é bom analisar a relação de Vergílio com Jesus Cristo. Jesus Cristo está praticamente ausente em Apelo da Noite, Estrela Polar, Rápida, a Sombra. No entanto está presente em Cântico Final, Alegria Breve, Nítido Nuno e Signo Sinai.
Em vez de analisar as suas proposições reflectidas sobre o transcendente e que muitas vezes são herança de certas formas de pensar de alguns filósofos, sobretudo franceses, prefiro voltar-me para alguns aspectos da sua vida, que podem ser muito mais esclarecedores.
O romancista nasceu numa aldeia e numa família profundamente cristãs. Tinha uma tia religiosa, soror Eduarda e um tio padre que foi pároco de Melo. Sua mãe era muito crente e a imagem de Nossa Senhora de Fátima que está na Igreja paroquial tem na peanha: “Oferecida por Dona Josefa O. Ferreira”, como recordou o pároco de Melo no funeral de Vergílio Ferreira. Seu irmão César, sepultado no dia anterior, tinha uma fé simples e profunda muito louvada pelo pároco na missa exequial do autor de Manhã Submersa. O ambiente que envolveu Vergílio na sua meninice a adolescência estava marcado por tradições e sensibilidades características do mundo cristão.
No Seminário continuou a viver nesta atmosfera cristã como se impunha e nos é dado verificar na Manhã Submersa. A oração preenche vários momentos da vida diária, desde o despertar com o Pe. Tomás a entoar o Benedicamus domino, a oração da manhã (163), a meditação seguida de perguntas sobre cada ponto, a missa, a visita ao Santíssimo Sacramento, a reza do terço, o mês de Maria, (163), a oração da noite, as preces antes de comer e antes das aulas, as três Ave-Marias ao deitar. Não faltam as orações em tempo de férias. Que lhe ficou desta prática de criança e adolescente? Talvez muito, sobretudo no inconsciente, nessa zona onde há a verdade essencial. No seu Diário fala muitas vezes do Natal e dos cânticos ouvidos na Igreja e que são transcritos com fidelidade.
É bom recordar o que já contei em outra ocasião. O escritor vinha por vezes a França, cujos escritores conhecia muito bem, nomeadamente Sartre, Camus, Malraux. Sabendo que o escritor, o narrador e a pessoa são de certo modo diferentes, pus a Vergílio Ferreira a questão da sua fé em Deus. Olhou para mim e “respondeu que quem foi baptizado ficou marcado para toda a vida como os touros das corridas. E precisou a ideia, justifica do que os touros só deixam de ter a marca, quando lhe arrancam a pele”. Depois de um breve silêncio acrescentou que se alguém quer ter certezas o melhor é interrogar o próprio Deus, pois ele é que sabe. O pároco actual de Melo, colega de Vergílio desde o primeiro dia no Seminário do Fundão contou-me que no dia do funeral da irmã do romancista, de regresso do cemitério perguntou ao seu amigo de infância: - Vergílio, quando é que voltas a ter fé? Vergílio, voltando-se, respondeu: - Quando ela vier ter comigo eu aceito-a, Mas não dizeis vós que a fé é um dom gratuito? E repetiu: se vier eu aceito-a. Não será esta ausência inquieta um forma sublime de possuir?
A semelhança de Erasmo c Gil Vicente, Vergílio rejeita sobretudo uma certa forma de estar e de viver a fé. Em Até ao fim satiriza uma celebração de domingo: “É a missa chique da cidade, fala o Carlos da Ascensão. É a missa mundana, Deus entremeado ao requinte aos olhos do mundo”. Para ele o transcendente estava para além das formalidades, das vaidades humanas pois encontrava-se na simplicidade das coisas, num certo modo franciscano de olhar a beleza da vida e da natureza.
É certo que Vergílio se confessou várias vezes agnóstico. Em entrevista dizia: “É extremamente difícil saber o que significa Deus para mim. Ele não significa nada [...], mas logo reconhece que a “ausência ainda me perturba”. “0 seu ateísmo/agnosticismo [...] não é uma atitude pacifica ou indiferente”. O que ele faz é questionar-se, interrogar-se, não para obter uma resposta, mas para aprofundar o problema. Ele não cessa de tentar intuir a existência, descobrir o milagre do ser, analisar o mistério do homem, sofrer com a evidência da morte, sentir-se pequeno perante o transcendente. Na lógica do seu pensamento associa progressivamente várias mortes: “Morte de Deus, morte do homem, morte da cultura, morte da arte. Ao que poderíamos acrescentar outras mortes conexas ou secundárias”. Entre essas mortes enumera o eu pessoal, a história, o real e até Marx, o que leva à visão do mundo como um “vasto cemitério”. No discurso que fez na Universidade de Coimbra agradecendo a concessão do título de Doutor Honoris Causa, confessou que se Deus morreu, segundo diz Nietzsche, então o homem está a morrer.
No entanto, reconhece lucidamente, embora talvez com alguma ironia que a religião continua. Utilizando a voz de Laura confessa: “Deus já morreu tanta vez. Veja, acaba sempre por ressuscitar”. E em Invocação ao meu corpo, depois de afirmar que “é absurdo demonstrar a existência de Deus” confessa, no entanto, que “o altar ficou sempre de pé”.
Deus continua a ser uma permanente presença-ausência, como foi para tantos escritores portugueses nomeadamente Junqueiro e Pascoais. Rejeitando o transcendente, o homem encontra-se no absurdo, no labirinto, na angústia.
Resta-nos acrescentar a apreciação que o autor fazia da sua Manhã Submersa. Alguns críticos e estudiosos de Vergilio, como João Palma Ferreira não apreciam muito Manhã Submersa. O próprio autor não amava suficientemente esta obra. Chegou mesmo a confessar: “Oh, não, não gosto muito do livro, mas [...] ninguém diz mal dos seus livros”. Uma vez me disse pessoalmente em Paris que Manhã Submersaera uma simples croniqueta escrita para descanso do trabalho exigido por outras obras mais exigentes. Não era necessário que ele o dissesse para que nós o pensássemos, pois raramente se refere à obra nos Ensaios e no Diário, Na mesma ocasião salientou que Manhã Submersa lhe tinha dado mais fama e proveito que qualquer outra obra.
Sendo um romance, haverá uma mensagem? A este propósito é bom recordar o que escreveu Vergílio: “não há romance de ‘tese’: um romance não demonstra - apenas ‘mostra’. Assim as ideias aí não resolvem um problema: apresentam-no”. O que nos fica é a capacidade de interrogação. Sendo assim Manhã Submersa não é de modo nenhum um romance que defende ideologias, que aponta para respostas, soluções. Talvez por isso é que o autor discordou frontalmente do aproveitamento político que se fez do livro como informa em Conta-Corrente: “Nas minhas declarações no Seminário disse eu que o livro não pretendia combater o regime aí vivido (que era o de todos os seminários e colégios), nem muito menos a religião”. Em outra ocasião escreve que “O que se passava nos seminários passava-se em todas as casas de formação, colégios, escolas, quartéis”. E em outro volume de Conta Corrente esclarece: “Mobilizei toda a minha dialéctica para provar que o meu livro não era um ataque à Igreja [...] O que é desesperante é eu sentir um livro meu umas vezes certo e outras desastrado”.
Também outros o julgam menos feliz, Talvez por oposição e afirmação de uma visão oposta é que o jornal dos jovens do Seminário do Fundão se chama Manhã Radiosa.De qualquer modo lembro-me do começo do conto de Vergílio Ferreira intitulado A deus, “Não lhe pedi que viesse. Pedi-lhe só que às dez da noite, e pela última vez, a sua lembrança me esperasse ao caminho”. O que desejo é que a lembrança deste Colóquio e de Vergílio nos espere ao caminho de cada um.
Depois de analisar cuidadosamente o romance fico a pensar que tipo de obra é Manhã Submersa?Não é uma pergunta que faço, mas uma simples interrogação, É que uma pergunta procura uma resposta e a interrogação não faz mais do que aprofundar o problema, E de Vergílio Ferreira o que podemos dizer? Muito pouco, até porque ao falar dele é talvez de nós que falamos.
Uma certeza nos resta. Sendo da Beira, Vergílio foi um inquieto, vivendo sempre à beira de... à beira da montanha, das coisas, de si mesmo, da religião, do homem, do mundo. Nunca esteve em, paralisado, mas em movimento, à beira de. Também Manhã Submersa éuma obra à beira de, com personagens em mudança, fazendo variadas viagens no espaço e no tempo. Sendo assim também nós ficámos à beira de... à beira do autor à beira das suas ideias. Neste modo de estar reside toda a grandeza de Vergílio Ferreira que pela sua inquietação viverá para sempre à beira do intemporal.
Por tudo isto o melhor que podemos fazer não é interrogar Vergílio, mas simplesmente interrogar-nos.
Júlio Pinheiro
in Síntese, 189 (Março-Abril 2008)
07.03.2008
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