IMpressão digital
Memória

Maria de Lourdes Pintasilgo: espólio será disponibilizado na internet

Quatro anos depois da sua morte, a Fundação Cuidar O Futuro, concebida em 2001 por Maria de Lourdes Pintasilgo (1930-2004), coloca na Internet um arquivo com mais de 10 mil documentos e uma centena de fotografias que registam e testemunham a vida estudantil, profissional, política e religiosa da primeira e única mulher que chefiou um Governo em Portugal.

A apresentação pública do arquivo, denominado Memória na Internet de Maria de Lourdes Pintasilgo, será feita na sede da Fundação Gulbenkian, no próximo dia 23 de Janeiro, às 18 horas, momento a partir do qual o acervo documental - cerca de um quinto do total já tratado e à espera de financiamento, público ou privado - fica disponibilizado em www.arquivopintasilgo.pt.

Na sessão, as facetas política, eclesial e de género de Pintasilgo serão desenvolvidas pelo general Pezarat Correia, o dominicano Bento Domingues e a antropóloga social Teresa Joaquim.

As actividades e iniciativas de Lourdes Pintasilgo enquanto dirigente da Mocidade Portuguesa Feminina (MPF) e da Juventude Universitária Católica Feminina (JUCF), e o seu envolvimento na acção política, quer antes quer depois do 25 de Abril de 1974, constituem o grosso da documentação.

Esta inclui, ao lado de discursos, comunicações, entrevistas, artigos (três dezenas deles inéditos), numerosas notas manuscritas à margem, bem como rascunhos e apontamentos para intervenções, por exemplo, em conselhos de ministros ou em sessões internacionais.

Do espólio fazem parte também um rascunho (não emendado à mão, o que faz presumir tratar-se de uma proposta do seu gabinete de campanha) do discurso que deveria proferir caso tivesse ganho as eleições presidenciais de 1986 e uma série de reflexões, em estilo diarístico, sobre os caminhos da Revolução, com os quais não se identificava no início do chamado Verão Quente de 1975.

O arquivo contém ainda testemunhos dos tempos de infância; da sua passagem, entre 1954 e 1961, pela CUF - a maior empresa industrial existente ao tempo em Portugal, em cujos quadros técnicos superiores foi a primeira mulher a entrar; do seu mandato como embaixadora da UNESCO (1975-80); das actividades que desenvolveu na Pax Romana, de que foi presidente; na Associação Graal, de que foi fundadora com Teresa Santa Clara Gomes e de que foi vice-presidente, no plano internacional; da pertença ao Conselho de Interacção de ex-chefes de Governo, de que foi vice-presidente, e, entre outras organizações de âmbito mundial, ao Clube de Roma, um “think tank” de peritos internacionais criado em 1968; e da sua passagem pelo Parlamento Europeu, onde integrou, como independente, a bancada socialista.

 

Padre analisa diário

Em contraste com a abundância de documentos nesta área, é escassa a correspondência com amigos portugueses e estrangeiros, entre os quais se contavam figuras cimeiras da política e do pensamento na viragem do século.

Pouco, aliás, poderá ser encontrado neste arquivo – desenganem-se desde já os mais curiosos – sobre a sua vida privada, se por esta entendermos afectos e intimidades.

Embora haja registos fotográficos do casamento dos pais, Amélia e Jaime, e dos seus primeiros anos de vida, não há ou não foram disponibilizados documentos que refiram ou comentem o abandono do lar por Jaime. A pedido de Maria de Lourdes, a mãe nunca se divorciou do marido. Pouco antes da sua morte, em 1959, Jaime, embora sem voltar a encontrar-se com a mulher, aproximar-se-ia dos filhos (além de Maria de Lourdes, José Manuel, um jornalista que viria a ser saneado na sequência do 25 de Abril por ser um dos responsáveis do jornal Época, propriedade da União Nacional, e a quem a irmã teve como organizador dos recortes de imprensa do seu gabinete no Governo).

Estes episódios bem como a falada paixão, não correspondida, por um colega do Instituto Superior Técnico (IST), que pode ter tido influência na sua decisão de permanecer solteira, são referidos no livro Uma História para o Futuro, de Luísa Beltrão e Barry Hatton (Tribuna da História, 2007).

Não se sabe, contudo, se constam do diário que deixou escrito e que está na posse do padre e psicanalista francês Jacques Durandeaux, por vontade testamentária da autora, que o encarregou de escolher o que deve e o que não deve ver a luz do dia.

Ninguém mais, nem sequer as três testamentárias do Graal, conhece o conteúdo do documento. Este não determina qualquer prazo para a decisão. Fátima Grácio, sucessora de Pintasilgo à frente da Fundação Cuidar o Futuro, julga saber que a transcrição está praticamente acabada e que Durandeaux já começou a fazer a selecção dos textos, "de acordo com o critério dele".

 

Anos 50 por ela própria

O facto de na vida de Maria de Lourdes Pintasilgo se confundirem muitas vezes as esferas pública e privada (a qual das esferas pertenciam, por exemplo, as actividades exercidas no Graal?) permite, contudo, que pelas diferentes secções do arquivo, às vezes as mais inesperadas, perpasse amiúde a faceta pessoal, cruzada com a intervenção pública. Descobrir esse lado mais interior da sua personalidade constitui um dos desafios a quem – investigador ou apenas interessado - nele mergulhe.

Esta escassez de elementos de carácter exclusivamente pessoal torna precioso um documento dactilografado de quatro páginas, sem título nem data, em que Pintasilgo reflecte, em estilo autobiográfico, sobre a década de 1950, período que se estende dos seus 20 aos seus 30 anos.

É o tempo do curso de engenharia química-industrial no Instituto Superior Técnico (IST) – uma de três raparigas, entre 247 rapazes. Da ida para a CUF, o que implica a sua "a independência total em relação à família", aos 24 anos, quando vai morar sozinha (experiência inabitual, na altura). Da descoberta de "que havia outras estruturas de vida comunitária a criar e a inventar", para além da família nuclear. Do "Cristianismo vinculado à vida", que a conduz "a um grande empenhamento social" (é, durante quatro anos, presidente da JUCF, onde se cruza com figuras-chave da sua e da geração seguinte, como Adérito Sedas Nunes, Manuela Silva, João Salgueiro, João Bénard da Costa). Do despertar "daquilo que viria a tornar-se convicção profunda sobre o papel das mulheres na sociedade".

Quer na Acção Social Universitária quer na CUF – onde trabalhou "num quadro de vida que era então de 48 horas de trabalho [semanal], a poluição do bairro operário ao lado das fábricas e, mais tarde, as 3 horas de transporte entre o Barreiro e Lisboa" –, percebe "que as mulheres viviam não só sexualmente discriminadas pelos homens mas dominadas por eles". Este domínio, acusa, passava pela chantagem sexual e por condições físicas de trabalho inaceitáveis: "Os abortos chegavam a atingir 6 ou 7 por cada mulher trabalhando em fábricas – era um sofrimento marcado em rostos envelhecidos de mulheres que ainda não tinham 30 anos."

Mercê da militância católica, que a leva a assumir os mais altos lugares em organismos internacionais laicos da Igreja católica, começa entretanto a viver "às dimensões do mundo": descobre a Europa "próxima e distante, latina e anglo-saxónica"; a África, onde em 1957 conhece N"Krumah num seminário de estudantes no Gana, em que dá sinais de entusiasmo com o movimento independentista das colónias africanas, que ali começara, vindo a ser chamada por isso à PIDE (polícia política); a América Latina e, em particular, os Estados Unidos, onde é seduzida pelo dinamismo intelectual e por "uma das mais radicais e pioneiras propostas de formas alternativas de sociedade", que descobre no movimento do Graal.

Deixa-se fascinar pela "similitude entre os processos que se davam no seio da matéria e os que tinham lugar na sociedade ou mesmo entre duas pessoas" e pelo universo conceptual "para que abriam as equações fundamentais da Física". Começa aí "o pensamento analógico" que a ajuda "a "circular" entre formas diversas do saber" e a "aprofundar a Fé cristã", numa "metodologia interdisciplinar" que desembocará no "entendimento da questão política".

Ao mesmo tempo, embriaga-se (o verbo é seu) de literatura e de música. "Estudava e trabalhava ao som da Emissora 2 (com o primeiro ordenado comprei o pick-up e o primeiro disco: o concerto nº 3 para piano e orquestra de Prokofief) e ficava até altas horas mergulhada na leitura de Gertrude von le Fort, François Mauriac, Paul Claudel, Bernanos, Peguy. (...) Era também o tempo dos Diários de Miguel Torga, das suas poesias e da identidade nacional que ele ia desvendando a percorrer o país, palmo a palmo, e a reconhecer as pedras e as gentes. Para a minha geração, a poesia pontuou acontecimentos, emoções, estados de alma. A Ática publicava a obra poética de Fernando Pessoa. E como podiam jovens engenheiros, a viverem - pensavam... - uma fase nova da vida do país, não se deixarem tomar por esse outro engenheiro que era [o heterónimo] Álvaro de Campos?"

 

Única entre homens

Maria de Lurdes Pintasilgo desempenhou funções de Procuradora à Câmara Corporativa – foi ali a primeira e durante anos a única mulher – no período em que Marcelo Caetano chefiou o Governo (1969-1974), colaborando igualmente como perita no Ministério das Corporações e Previdência Social.

No imediato pós-25 de Abril ocupou sucessivamente os cargos de secretária de Estado da Segurança Social e de ministra dos Assuntos Sociais, nos três primeiros governos provisórios (de novo a única mulher entre os governantes, onde se incluíam numerosos militares do MFA, na altura chamados os "homens sem sono); e de primeira-ministra do V Governo Constitucional, conhecido como o Governo dos cem dias (1979-1980).

Cessadas as funções governamentais em 1975, foi convidada para assumir o cargo de embaixadora de Portugal na UNESCO – outra vez (será necessário enfatizá-lo?) a primeira mulher a entrar num mundo reservado ao homem, como era então a diplomacia portuguesa.

Cinco anos depois, terminado o mandato governamental, a Aliança Democrática de Sá Carneiro e Freitas do Amaral proibiu-lhe o regresso a Paris, "por não haver entre ela e o Governo uma relação de suficiente confiança política". O Presidente Ramalho Eanes convidá-la-á, em 1981, para assessora, função que desempenha até ao fim do mandato presidencial.

A sua candidatura às eleições de 1986 – primeira e única mulher até então candidata ao cargo de Presidente da República – estabeleceu um corte doloroso na afectividade com que se relacionava com o primeiro presidente eleito do pós-25 de Abril. Eanes preferiu apoiar Salgado Zenha, considerando que Pintasilgo, "com o seu espírito de missão e de acção, com o seu voluntarismo, ajustava-se mal" aos novos ventos que sopravam em Portugal, onde "morrera já o tempo da paixão, da comunhão, da ousadia" (depoimento em Mulher das Cidades Futuras, Livros Horizonte, 2000).

O tratamento do arquivo foi feito por uma equipa de seis pessoas dirigidas por Paula Borges. Para tornar a documentação mais acessível ao público em geral, para além dos investigadores, a equipa optou por seguir o critério cronológico associado às funções que foi desempenhando.

"Não fazia sentido separarmos os dois campos, pessoal e público", diz a investigadora, chamando a atenção para a singularidade desta opção, num país onde são raros os espólios pessoais de natureza política disponíveis na Internet. Ao contrário dos arquivos de Mário Soares e do ex-presidente brasileiro Fernando Henriques Cardoso, nos quais Pintasilgo se revia, este agrupa as várias intervenções, às vezes simultâneas ("porque não houve um momento em que teve só uma intervenção eclesial, ou só uma intervenção política"). Nenhuma esfera é deixada de lado "e a vida dela ganha sentido".

Na classificação estabelecida, os utilizadores encontrarão o percurso de vida de Maria de Lourdes Pintasilgo: Família e Infância; Juventude e Formação Académica (do liceu e da universidade às suas actividades na Mocidade Portuguesa Feminina, onde desempenhou funções dirigentes); Vida Profissional, na CUF; Intervenção Eclesial, na JUCF, na Pax Romana, no Graal e noutras instâncias religiosas; Intervenção Cívica e Política durante o regime de ditadura e depois do 25 de Abril.

De longe a mais volumosa, a última secção contém elementos essenciais para a análise do percurso ideológico de Pintasilgo e para a compreensão de algumas das suas posições públicas mais polémicas, durante e após o PREC, sobre temas como a revolução ou a democracia.

Dos documentos analisados, Paula Borges destaca a "admiração mútua" entre Pintasilgo e Álvaro Cunhal, evidente durante os conselhos de ministros dos três governos provisórios que ambos integraram (impressionado com a capacidade de mobilização da Igreja católica em Portugal, o líder comunista ter-lhe-á perguntado uma vez como é que faziam para reunir tamanhas multidões nos 13 de Maio, em Fátima...). Esta cumplicidade inicial, contudo, esbateu-se no III Governo Provisório e não evitou "que tenha sido Cunhal a sugerir o afastamento da Maria de Lourdes do IV Governo, como ela contava muitas vezes".

Paula Borges releva também a crispação, durante o V Governo Constitucional, entre a então primeira-ministra e o seu Ministro das Finanças, Sousa Franco, num crescendo que levará este último à demissão. Os casos do anulamento, pela chefe do Governo, de um despedimento colectivo na Standard Eléctrica e do desacordo sobre a agenda de um dos conselhos de ministros, ilustrados nestas páginas, constituem apenas dois entre numerosos exemplos das discordâncias.

Fátima Grácio, que além de amiga muito próxima era familiar de Pintasilgo, ficou surpreendida com a quantidade de documentos mantidos pela prima desde a infância. "Quem tomou a iniciativa? Ela? A mãe?". Não sabe. Mas a preservação posterior de notas, pequenas observações, textos pessoais, leva-a a pensar que a iniciativa se filia numa mesma noção de que "a história se faz de pequenos casos, não apenas de grandes acontecimentos, e que ficará incompleta se lhe faltar este tipo de documento". Como exemplo, aponta a série de reflexões magoadas sobre os caminhos do país e a revolução inacabada, escritas à mão em Maio de 1975, após a saída do Governo. "Nunca tinha visto aquela ida tão fundo, aquele grito de alma."

 

in Público, 18.01.2008

Publicado em 18.01.2008

 

 

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