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Pintura

A inquietude na arte de Paula Rego

A revista "Communio" lançou recentemente o número 4 de 2007, dedicado ao tema da "Inquietude".

Nesta edição poderão ser lidos os artigos de M. José Figueiredo ("A origem do espanto. Aristóteles e o começo da actividade filosófica"), H. Noronha Galvão ("O 'coração inquieto' nas Confissões de St. Agostinho"), Vítor Franco Gomes ("O desejo de Deus, sinal do paradoxo e do mistério do homem na teologia de Henri de Lubac"), Philippe Lefebvre ("Mal-estar na civilização. Reflexões bíblicas"), Margarida Amaral ("A inquietude diante do alastramento do deserto. Breve reflexão sobre a actual crise na educação a partir de Hannah Arendt"), M. Isabel Pincemin ("A genética. Assombro e inquietude"), Emília Nadal ("A inquietude na arte de Paula Rego"), Manuel Vilas-Boas ("Teresa de Calcutá, escândalo dos não crentes") e Rita Patrício ("O desassossego como livro").

Apresentamos seguidamente alguns fragmentos do texto de Emília Nadal sobre Paula Rego.

"A consciência do inexplicável e a angústia perante o desconhecido e a morte são geradoras de medos e de grandes inquietudes. A experiência do mal e da vulnerabilidade leva as pessoas a interrogar o sentido da sua existência e a questionar o mundo onde se inserem e as ameaça, e com o qual têm de se relacionar. Neste contexto de ansiedades, as artes são, por natureza, territórios da inquietude enquanto processos de indagação e apropriação do sentido da realidade e das suas imagens no âmbito dos fenómenos da percepção estética e da expressão individual e colectiva de mundividências.

A motivação dos artistas reside, precisamente, na sua necessidade de reorganizar o que é inquietante, por ser caótico, a fim de criar as suas harmonias. É um processo de procura de sentidos e de integração pessoal que, em muitos casos, adquire a urgência de uma necessidade compulsiva de equilíbrio e de sobrevivência psicológica.

Na criação artística, os processos da conceptualização e da expressão estão intimamente relacionados na criação de linguagens específicas e individualizadas para exteriorizar o que é vivido na interioridade. Como linguagens simbólicas, as expressões artísticas projectam o inconsciente e o subconsciente dos artistas, motivo pelo qual são libertárias, catárticas e autobiográficas.

Na percepção estética, que a alguns motiva para a criação artística e que todos permite a fruição das artes, intervém decisivamente a memória como receptáculo de emoções, conhecimentos e experiências, e como principal motor da imaginação, A memória supera a dimensão temporal e proporciona todas as combinações de imagens, assim como novas rela­ções entre factos do passado e acontecimentos do presente. Do mesmo modo permite visionar o futuro.

A faculdade da memória possibilita a identificação e a descodificação das imagens, dos símbolos e das linguagens, pelo que dela dependem a criação artística e a fruição das artes. Da memória dependem igualmente a experiência e a capacidade imaginativa de cada um, principalmente quando as obras de arte surpreendem pela diferença e pela inquietação que transportam, como se reconhece no caso da pintura de Paula Rego.

O processo criativo dos artistas provém do seu mundo interior e está intimamente relacionado com a sua experiência de vida no contexto das suas circunstâncias. Cada autor tem os seus tempos, espaços e memórias como lugares de eleição ou de rejeição, como referências identitárias para a sua imaginação. Delas parte para o seu trabalho e a elas regressa para iniciar novos percursos com descobertas que proporcionam a evolução da sua pessoa e da sua obra. Os marcos de referência que se encontram na sua obra tanto podem ser imagens e lugares físicos e geográficos, realidades abstractas e espaços psicológicos em que se fixaram memórias harmonizadoras, como podem ser imagens, lugares e contextos emocionais aos quais ficaram associadas os seus medos e angústias.

Ao transmitir as inquietações pessoais dos artistas, as obras de arte comportam-se como espelhos que concorrem para o autoconhecimento das pessoas que as usufruem - ou rejeitam - com maior ou menor conhecimento de causa. Identificando medos e inquietações, que são comuns, as obras de arte tornam-se referências universais de harmonização.

A presente reflexão sobre uma obra tão complexa como a de Paula Rego incidirá apenas em alguns tópicos relacionados com a emergência da memória como receptora e emissora de inquietudes. Relativamente à questão estética, a abordagem centrar-se-á em temáticas e expressões que deram origem a algumas das mais relevantes criações da artista. Será uma apreciação pessoal estreitamente relacionada com as posições que a pintora tem assumido nas suas entrevistas, as quais se encontram re­gistadas na bibliografia que sustenta e completa o texto.

 

Histórias e memórias

Paula Rego tem afirmado, acerca da sua pintura, que “cada quadro conta uma história”. Sublinhando a prevalência da memória no seu processo criativo, esclarece: “Acho que tudo o que faço transporta em si a voz das histórias que me foram contadas quando eu era criança”.

Contar histórias envolve a recriação de factos e acontecimentos e a intenção de comunicar narrativas que transmitem mensagens, geralmen­te de carácter moral ou o seu reverso. O contar histórias implica seleccionar enredos e representações, com tudo o que tal pode significar ao nível de arquétipos e efabulações potencialmente inquietantes que habitam a memória individual e colectiva. O processo da narrativa pressupõe a interpretação de alguém que lhes atribui os enfoques, as ênfases e as omissões que provêm da memória da sua experiência da vida. As narrativas tornam-se sempre realidades imaginadas e subjectivas que, nas artes plásticas, se traduzem objectivamente através de temas, imagens e matérias, revelando-se em gestos, cromatismos e ritmos que definem as grafologias próprias de cada autor. Assim, o contar histórias transporta sempre uma parte da vida real ou imaginada do próprio narrador.

Contar histórias, segundo Paula Rego, consiste em traduzir, através das linguagens plásticas, acontecimentos em que se confundem realidade e ficção; é assim uma expressão que em si mesma encerra incontáveis pistas de revelação e de ocultação de sentidos na sua pintura. A descoberta de alguns significados pode ser tão difícil para um observador como poderá ser para a autora. As afirmações frequentemente contraditórias de Paula Rego sobre o sentido das suas pinturas devem ser, todas elas, aceites como verdadeiras, pois nem sempre o autor consegue compreender totalmente o que realizou, nem ter muita consciência do género de inquietudes e de recordações que, num determinado momento criativo, o assaltaram.

A esse respeito, muito recentemente a artista referiu ter ficado surpre­endida e envergonhada com alguns dos seus trabalhos, esperando que as pessoas não reparassem no que ela descobrira estar presente na pintura. Nesta afirmação reconhece-se a espontaneidade de um processo criativo sem censuras prévias ou posteriores, uma autenticidade radical que projecta o ser da pessoa na sua expressão artística. Verifica-se que, em simultâneo com a realização de estudos para os quadros, existe um forte automatismo naquele processo, no sentido que os surrealistas atribuem ao conceito da livre projecção e libertação do inconsciente, embora a pintora nunca se tenha sentido integrada naquela corrente estética.

É evidente uma inquietude visceral em Paula Rego, qualidade que caracteriza a sua expressão gráfica e emana da sua pintura. Os seus quadros são tanto mais inquietantes quanto são comunicativos no que respeita à convicção e força interior que a artista projecta, de forma espontânea ou subversiva, nas composições de imagens a que chama histórias.

 

Belezas e fealdades

Arte inquieta e angustiante, a arte de Paula Rego tem uma enorme força de comunicação devido à autenticidade da sua expressão. A violenta convicção que imprime à sua linguagem figurativa não deixa ninguém indiferente, particularmente quem a considera chocante. É sintomático verificar que os argumentos mais constantes na rejeição desta arte se situam nos planos da sensibilidade e do gosto, principalmente em factores relacionados com a incomodidade dos temas e das imagens, ou seja, na rejeição de uma estética que assume a violência como linguagem e que expõe fealdades grotescas, situações imorais e decrepitudes humanas.

No fulcro daquela rejeição encontra-se a questão da beleza, a tradicional premissa que associa a arte ao bem e à beleza idealista, uma questão clássica que se situa na área da estética, estabelecendo a relação entre a arte e o belo, e as correspondências entre o belo, a verdade e o bem, as qualidades de referência aos transcendentais que se colocam na área da teologia.

Imagem
O Jardim de Crivelli (det.)

No plano da criação artística e da percepção das obras de arte, a questão da fealdade entendida como reverso ou negação da beleza, depende de muitos factores, nomeadamente culturais, que variam consoante as épocas e não são consensuais. É evidente que os padrões estéticos de Paula Rego não coincidem com os modelos vigentes na sociedade esteticista do consumo que impõe o primado absoluto da juventude e colidem com os estereótipos da beleza clássica assumidos por um público menos informado. Revelar, como beleza, a verdade da caducidade e das rugas na face humana, a dureza de corpos castigados e agredidos pelas carências e pelas consequências de trabalhos pesados é uma visão insustentável.

A beleza em Paula Rego só pode ser a da sua verdade como transcendência, na dura evidência dos rostos humanos sulcados pela idade e pela crueza das conformações ou revoltas impressas nos olhares das figuras. São mulheres propositadamente feias e rudes com corpos e almas marcados por dificuldades visíveis, que são arquétipos e protótipos de todas as outras e, também, da própria condição humana. Naqueles tipos fisionómicos a artista projecta as imagens de uma ruralidade meridional tipicamente portuguesa. É uma referência identitária que a artista assume expressamente como sensibilidade pessoal e como cultura, quando é considerada pintora inglesa.

Sem renegar os padrões clássicos da grande arte, o seu ideário integra­se em conceitos estéticos orientados para a urgência da verdade, recusando o idealismo e a evasão próprios da cultura de massas. Aquele ideário corresponde a uma postura simultaneamente de vanguarda e de pós-modernidade na qual se integra a arte de Paula Rego.

Será na problemática do reverso que se deve entender a estética que informa a expressão da artista. No entanto, a estranheza dos seus temas e dos respectivos títulos e imagens devem obrigar-nos a uma ultrapassagem; indicam que são metáforas de outras imagens e de outras realidades, tal como acontece nas histórias, nos contos e nas fábulas. Elas referem-se a males incompreensíveis que desfiguram as pessoas e o mundo; é a constatação do mistério de uma iniquidade que perverte a inocência, envenena as situações, detendo-se na ameaça que supõe, em ocultação, a morte. É uma proposta estética inquietante que explica que muitos admiradores desta obra admitam não poder com ela conviver.

É possível, no entanto, percepcionar comprazimentos da autora na ambiguidade perversa das cenas por ela criadas, assim como a sua cumplicidade com essas imagens. Mesmo entre os maiores admiradores da sua obra se admite a existência de uma perversidade na pintura, denunciando o fascínio que o mal pode exercer em quem dele se aproxima, numa espécie de atracção para o abismo. Tal significaria que, na representação artística mimética, a verdade do mal entendida como fealdade objectiva pode ter uma consequência subjectivamente maléfica. Parece sê-lo, de fac­to, ao nível de uma percepção directa e característica da apreciação popular, como se infere do título de um diário de distribuição gratuita ao noticiar a grande Exposição Retrospectiva da obra da pintora em Madrid, no Centro Cultural Reina Sofia: “Anjinhos da (diabólica) Paula Rego voam para retrospectiva na capital espanhola”.

 

A questão religiosa

Face à postura estética de Paula Rego, entende-se o sobressalto de alguns grupos de católicos mais conservadores face ao projecto de execução de um conjunto de pinturas de temática religiosa destinadas à capela no Palácio Presidencial de Belém. Temia-se que aquela intervenção constituísse uma afronta a um lugar sagrado, embora a referida capela estivesse desactivada do culto e integrada no circuito museológico do Palácio da Presidência da República.

Ao interpretar temas da vida de Jesus, Paula Rego centrou-se objectivamente nas narrativas do Nascimento e da Paixão, colocando-as no plano da imanência e recorrendo, como é característica do seu estilo, a figuras reais em situações comuns da vida contemporânea, nomeadamente a retratos de pessoas, como foi frequente ao longo de séculos. A pintora excluiu as representações simbólicas da transcendência e não transigiu com as convenções idealistas e sentimentais com que as primeiras são confundidas.

Se Paula Rego representou a sua Virgem da Anunciação como uma pré-adolescente vestida com um bibe branco bordado, com folhos nos ombros como era uso nos anos 40, pode dizer-se que ela recuou ao melhor da sua memória para encontrar a imagem de uma menina desprotegida e inocente a quem é proposta uma realidade inaudita. Maior celeuma causou a representação do parto, no Nascimento do Menino, a realidade natural mais óbvia e necessária do mistério da encarnação mas a mais difícil de admitir pelos crentes, apesar da respectiva iconografia existir, principalmente na arte religiosa popular, estando representada em museus de arte sacra.

A contenção da artista nestas obras e o fim a que se destinavam, parecem corresponder a uma atitude cautelosa face ao espiritual e às religiões. Nele inclui o seu fascínio pelas histórias da Bíblia e da vida dos Santos que lutaram se deixaram empolgar e vitimizar pelo que acreditavam e que realizaram o maravilhoso - ou a magia - dos milagres, conforme expressou no painel “O Jardim de Crivelli” em 1990. Esse respeito pelo religioso não invalida o repositório de medos e terrores recebidos na catequese da sua infância, nem o sentimento anticlerical herdado de familiares, os quais confessou ter projectado, de modo subjectivo, nas pinturas já referidas sobre o tema do aborto e, mais objectivamente, na série de obras sobre o romance “O Crime do Padre Amaro”, em 1997. Através deles denunciou situações que vitimizam a mulher e que atingem o homem prisioneiro das circunstâncias e das convenções.

A simbólica sacrificial cristã do cordeiro e da cruz, e a pomba também estão presentes, sem qualquer sentido pejorativo, em obras desta série, como em outras mais recentes, nomeadamente em pinturas relacionadas com o tema “The Pillowoman” em 2004-2005, nas quais são recuperados os elementos identitários das paisagens das praias do Estoril e da Ericeira. A figura mole e disforme, abandonada como uma baleia moribunda, acolhe e adormece crianças no seu seio negro, remetendo-nos novamente para a infância e para as bonecas de pano criadas por Paula Rego. Lembra-nos a instabilidade iminente do futuro, num presente cansado de dores e sacrifícios que parece ansiar pelo seu fim, no repouso e na paz.

Analogia da morte?"

Emília Nadal

in Communio, n.º 4 (2007)

04.03.2008

 

 

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