Cristianismo e subversão
Regra geral, diz-se que o tempo é a prisão suprema («não se pode escapar ao seu tempo») e que toda a filosofia e religião têm uma única finalidade: escapar a esse encarceramento no tempo para entrar na eternidade. Mas, e se, como Schelling parece dizer, a eternidade fosse a prisão suprema, uma clausura sufocante, e só a queda no tempo introduzisse a Abertura na experiência humana? Não será o tempo o nome para a abertura ontológica? Por conseguinte, o Evento da «encarnação» é menos o momento em que a realidade vulgar alcança a Eternidade do que aquele em que a Eternidade entra no tempo. Este ponto foi estabelecido de forma muito clara por conservadores inteligentes como G.K. Chesterton, um católico inglês (tal como Alfred Hitchcock). Eis o que Chesterton diz sobre certas considerações na moda em torno da «pretensa identidade espiritual entre budismo e cristianismo»:
O amor deseja a individualidade; por isso, deseja a divisão. O instinto do cristianismo regozija-se por Deus ter quebrado o universo em pequenos pedaços (…). Aí reside o abismo intelectual entre o budismo e o cristianismo – para os budistas ou para os teósofos, a individualidade é a queda do homem; para os cristãos, ela é o desígnio de Deus, o propósito essencial da sua ideia do cosmos. A alma-mundo dos teósofos pede ao homem que a ame para que o homem possa projectar-se nela. Mas o centro divino do cristianismo projecta o homem para fora desse centro para que ele pudesse amá-lo. (…) Todas as filosofias modernas são grilhões que unem e prendem; o cristianismo é uma espada que separa e liberta. É a única filosofia em que Deus se regozija pela separação do universo em almas vivas. (1)
Chesterton está perfeitamente consciente do facto de não bastar a Deus separar o homem d’Ele, para que a humanidade o ame. A separação tem de se reflectir no próprio Deus de tal modo que Deus se auto-abandona.
Não foi no momento da crucificação que o mundo foi abalado e o sol apagado do céu, mas quando o grito foi proferido na cruz – confissão de que Deus fora abandonado por Deus. Agora, deixemos os revolucionários escolherem um credo entre todos os credos, e um Deus entre todos os deuses do mundo, sopesando cuidadosamente todos os deuses de regresso inevitável e poder inalterável. Não encontrarão outro deus que se tenha revoltado contra si mesmo. E mesmo que os ateus (a questão torna-se demasiado difícil para ser abarcada pela linguagem humana), escolham um deus, só poderão encontrar uma divindade que lhes tenha falado ao seu isolamento, só uma religião em que o próprio Deus pareceu, por um momento, ser um ateu. (2)
Esta semelhança entre a situação do homem separado de Deus e a de Deus separado de Si mesmo torna o cristianismo «terrivelmente revolucionário. Sabemos que um homem bom pode encontrar-se encostado à parede, mas que o mesmo possa acontecer a Deus, isso já é matéria para que todos os insurgidos se sintam eternamente orgulhosos. O cristianismo é a única religião da Terra que sentiu que a omnipotência tornava Deus incompleto. Só o cristianismo sentiu que, para Deus ser plenamente Deus, devia ter sido tão rebelde como um rei» (3).
Chesterton tem perfeita consciência de estar a tocar assim «num tema obscuro e assustador, sobre o qual é difícil falar», «um tema que os maiores santos e pensadores tiveram medo de abordar. Porém, na história aterradora da Paixão, está claramente que o autor de todas as coisas (de uma maneira de certo modo impensável) conheceu não só o sofrimento extremo como a própria dúvida» (4). Na forma mais comum do ateísmo, Deus morre para os homens que deixam de crer n’Ele; no cristianismo, Deus morre para Si mesmo. Na sua frase «Pai, porque me abandonaste?», o próprio Cristo comete aquilo que é um pecado supremo para um cristão: ser abalado na sua fé.
Slavoj Zizek
A marioneta e o anão, O Cristianismo entre Perversão e Subversão, Relógio d’Água, 2006, pp. 20-22
(1) G. K. CHESTERTON, Orthodoxy, São Francisco, Ignatius Press, 1995, p. 139.
(2) Ibid., p. 145.
(3) Ibid., p. 145.
(4) Ibid., p. 145.
RF
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