Vemos, ouvimos e lemos
Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosIgreja e CulturaPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosPerspetivasConcílio Vaticano II - 50 anosBrevesAgenda VídeosLigaçõesArquivo

Música

O rap e a pergunta sobre Deus

O rap, acrónimo de rhythm and poetry (ritmo e poesia), é tido por muitos como a nova música de intervenção social. Diz o rapper Valete: «[o rap] é a poesia moderna, adaptada às grandes metrópoles, aos subúrbios, e a estas doenças urbano-depressivas». É uma catarse, em jeito de poesia moderna, para denunciar injustiças sociais destinadas a permanecer na escuridão. A este respeito, Boss AC afirma que «de certa forma Hip Hop é estar na política / Não aceitar tudo calado, é desenvolver consciência crítica» (Hip Hop (Sou eu e és tu)).

Cantar o que nos atinge, e despertar consciências para um mundo diferente, liga-se necessariamente à questão do mal. Porquê o desgoverno, o falhanço… porquê esta precipitação em julgar os outros? «Não olhes só p’ros outros, olha para ti também / e só aí é que vais ver de onde o mal vem» (Sam The Kid, Que mal tem – sobre (tudo)).

 

A pergunta de Job

Esta preocupação não está muito longe da eterna pergunta de Job: porquê o mal? É precisamente aqui que entra Deus. «Há perguntas que têm que ser feitas», dizia Boss AC. Como é possível a existência de um Deus quando o mundo parece dominado pelo mal? Semelhante observação fazia David Hume no século XVIII, recordando o enigma de Epicuro: «Deus quer evitar o mal, mas não consegue? Então é impotente. Consegue mas não quer? Então é mau. Consegue e quer? Então por que existe o mal?».

Vários rappers percorreram a mesma estrada, trazendo Deus para o mundo do rap. Gostaria, todavia, de destacar dois. Tupac Shakur e Boss AC.

Quando 2Pac esteve na prisão, escreveu «Deus, ajuda-me, porque estou a passar fome, não consigo encontrar trabalho»; «pergunto-me se Deus se preocupa / por nós, pretos, a receber subsídios» (2Pac, My block) ou «apenas Deus pode salvar-nos» (2Pac, Hell 4 Hustler). Dizia ainda na música Blasphemy: «Mamã diz-me que estou errado, é Deus apenas um polícia / à espera para me espancar se eu não explodir?» (2Pac, Blasphemy). Deus é muitas vezes associado a uma figura de autoridade a ser temida. Contudo, Tupac deseja um Deus diferente, alguém que esteja do lado das pessoas e não simplesmente uma figura autoritária que julga as pessoas. Depois de tudo isto, 2Pac insere na música a oração do Pai-Nosso, sem qualquer tipo de blasfémia. Estas formas de espiritualidade e de expressão religiosa são funcionais à compreensão da lógica do mundo. Pode ser uma espiritualidade fragmentada, até mesmo inconsciente, mas não permanece no silêncio. É esta, por exemplo, a opinião do rapper Sekou.

Boss AC coloca-se na esteira de 2Pac. Na excelente música “Que Deus?”, o rapper constrói um longo questionário. Porquê a guerra? Porquê a maldade? Porquê a tristeza? E porque é que Tu não te mostras? «Dizem que estás em todo o lado mas não sei se já te vi, / Vejo tanta dor no mundo pergunto-me se existes» (Boss AC, Que Deus?). Comentando esta música, o próprio autor disse que estas perguntas são universais. «Mais do que a pôr em causa a existência do Divino, quis sim, pôr em causa as ações do Homem, que muitas vezes, por motivos duvidosos, se escondem atrás da religião para fazer o mal». Contudo, para Boss AC é claro que «há algo acima de todos e de tudo, algo que nos escapa».

 

A construção de um mundo melhor

As letras não se fazem somente de crítica social. Boss AC é um dos artistas que tem apontado alguns valores para a construção de um mundo melhor. É a parte construtiva do discurso. Uma das músicas de referência é Bem vindos os que vêm em paz e talvez seja aquela com maior ressonância bíblica.

Podemos ler no texto:

«Bem-vindos os que vêm Paz (a minha casa é tua)». Indo à Sagrada Escritura, lemos: «Em qualquer casa em que entrardes, dizei primeiro: “A paz esteja nesta casa!” E, se lá houver um homem de paz, sobre ele repousará a vossa paz (Lc 10, 5-6)».

«Não me julgues com os olhos, julga-me com o coração», diz Boss AC. Mas também diz a Bíblia «Não julgueis pelas aparências; julgai com um juízo reto» (Jo 7, 24 ou Mt 7, 1-3).

Por fim, o rapper afirma «Respeito o meu próximo para que ele me respeite a mim». Já de si, a palavra «próximo» é reconhecidamente bíblica, mas ela tem ainda um valor acrescido: «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Mc 12, 31). É o amor ou respeito gratuito, sem esperar nada em troca.

Existem muitas outras músicas e artistas que falam explicitamente, ou não, de Deus. Quando se reflete sobre as questões universais – como dizia Boss AC – é muito difícil não falar de Deus. Normalmente é a pergunta de Job que mais sobressai, mas isso só significa que o destino do Homem, em algum momento, cruza-se com aquele que nos faz «pensar na origem de tudo e em como será o fim» (Boss AC).

Deus também canta rap. Ele sente o ritmo e a poesia de quem procura aquilo que é genuinamente humano.

 

 

 

O texto integral do artigo, de onde extraímos este excerto, foi originalmente publicado no blogue "Pátio dos Gentios".

 

Tiago Freitas
In Pátio dos Gentios
13.06.12

Redes sociais, e-mail, imprimir

Foto
Boss AC


































Citação







































Citação

 

Ligações e contactos

 

Artigos relacionados

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Subscreva

 


 

 


 

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página

 

 

 

2011: Eurico Carrapatoso. Conheça os distinguidos das edições anteriores.
Leia a última edição do Observatório da Cultura e os números anteriores.