Pedras angulares
Ano Paulino

São Paulo: missionário e fabricante de tendas

Em Damasco, Paulo não só deu, como também recebeu. E se ele era um pregador, foi também um aprendiz. Acerca do Cristianismo, havia muito que ele tinha que absorver e teria, também, de se tornar experiente num ofício que o tornasse auto-suficiente. Só a independência financeira podia garantir a sua mobilidade como missionário.

Daquilo que vimos da vida de Paulo em Tarso e em Jerusalém, ficou claro que não teve de trabalhar para viver. Em ambos os lugares, foi estudante a tempo inteiro, suportado pela caridade. Como missionário, contudo, ele diz, em várias ocasiões, que trabalhava com as suas próprias mãos (1Ts 2,9; 2Ts 3, 7-9; 1Cor 4,12). Isto quer dizer que houve uma altura em que teve de aprender um ofício. Afirmar que foi em Damasco que isso aconteceu, vai para além das provas que temos mas, durante esses três anos, Paulo deve ter pensado muito na sua estratégia missionária, particularmente a seguir ao fiasco na Arábia.

Tinha várias opções. Podia tentar arranjar um patrono que o sustentasse, mas isso iria colocá-lo à mercê do seu senhor e teria de adaptar os seus ensinamentos aos seus caprichos. Pior ainda, teria de ficar preso a um sítio. Uma alternativa era mendigar, enquanto viajava. A objecção a isso não seria a precariedade desse modo de vida, mas o facto de as cidades greco-romanas estarem infestadas de charlatães que faziam a sua vida à custa de pias promessas, baseadas em falsos milagres. Se tomasse essa opção, perder-se-ia nessa multidão.

Mau grado o seu preconceito, Paulo compreendeu, relativamente depressa, que tinha mesmo de ganhar a vida por si e teria de a ganhar à medida que viajava. Isto significava que deveria tornar-se um artífice experiente. Tinha de aprender um ofício.

Que trabalho poderia servir melhor os seus propósitos? O seu objectivo não era o de se tornar rico, mas o de sobreviver com os seus próprios meios. Certamente que procurou a solução com a inteligência arguta que, mais tarde, aplicou na resolução dos problemas teológicos. A profissão que aprendesse tinha de ser útil no mundo greco-romano, em terra como no mar, em cidades e em aldeias, nas grandes metrópoles e também nas estradas que as uniam. Tinha de ser uma profissão que o pusesse em contacto com todos os extractos sociais. As ferramentas teriam de ser leves e transportáveis. O ofício teria de ser tranquilo e sendentário, para que pudesse pregar onde trabalhava.

No que lhe dizia respeito, a profissão que melhor respondia a estes critérios era a de fabricante de tendas (Act 18,3), Pode-nos parecer uma escolha bizarra. Paulo exercia o seu ministério em meios urbanos: que necessidade de tendas têm os habitantes de uma cidade? Mas, na perspectiva do primeiro século, foi uma decisão muito sábia.

A competência necessária era mínima, e, por isso, aprendia-se com facilidade. Consistia, essencialmente, na habilidade de cortar e dar forma a pedaços de lona ou cabedal, e, depois, cosê-los com uma costura dupla. As ferramentas eram simples e leves. Paulo precisava de uma faca em meia-lua, para cortar coiro grosso ou lona, uma sovela para fazer os buracos, onde passava o fio encerado, e agulhas curvas. Tudo isso cabia numa pequena bolsa. A prática deste ofício desenvolvia músculos nos ombros e tornava as mãos fortes e calosas. Os pontos eram dados com um movimento brusco em direcção ao exterior usando as duas mãos. por isso, não admira que Paulo pudesse escrever apenas letras grandes e desajeitadas (Gl 6,11) – sinal de que trabalhava muito.

Foto
Turquia | © Lynsey Addario/Corbis

 

Trabalho para um fabricante de tendas

Nas cidades eram necessários vários tipos de toldos. Todos eles envolviam coser pedaços de lona de pesos variados. Os de tecido de vela, que eram usados para fazer sombra no teatro e no fórum, podiam recolher-se ou estender-se com o uso de cabos. Os pátios das casas privadas tinham de ser protegidos do sol de Verão. Toldos com inscrições faziam as funções de anunciar, ao mesmo tempo que davam sombra. Aqueles que iam á praia usavam barracas de linho que lhes davam sombra, sem bloquear a brisa refrescante.

O mercado de tendas, em sentido restrito, não era negligenciável. As estalagens necessitavam delas para acomodar os hóspedes que não cabiam nos quartos, o que acontecia, normalmente, por ocasião dos grandes festivais. Os viajantes mais sensatos tomavam a precaução de levar consigo tendas, para o caso de qualquer incidente os impedir de alcançar uma estalagem à noite. Se planeavam uma viagem de barco, as tendas eram indispensáveis. Não havia ferries e os cargueiros não tinham cabinas. Sem tendas, os passageiros do convés não se podiam proteger do sol ou da chuva e não tinham onde dormir quando os barcos atracavam ao anoitecer.

Todas as cidades com um templo tinham os seus festivais e, nessas ocasiões, os comerciantes erguiam as suas barracas, de pele ou lona, á volta do santuário. As cidades que tinham a sorte de acolher os mais importantes festivais pan-helénicos tinham trabalho para os fabricantes de tendas, durante todo o ano. As competições prolongavam-se por cerca de uma semana e o grande número de visitantes, chegados de todo o mundo grego, tinham de ser alojados em tendas, tal como os lojistas, que tinham de suprir as suas necessidades. Em Corinto, por exemplo, os Jogos Ístmicos eram celebrados em cada dois anos, em Abril ou Maio. Tendas novas estavam, constantemente, a ser necessárias, para substituir as velhas, o que obrigava também a uma manutenção permanente.

Pequenas reparações eram, igualmente, uma grande fonte de rendimento. Paulo podia reparar o tecto de lona de uma carroça ou os arreios de tracção animal. Nas suas mãos, uma vela rasgada podia ficar como nova. Ele tinha a capacidade de dar um ponto ou dois em qualquer dos inúmeros artigos de pele que os viajantes usavam: sandálias, cintos, capas, carteiras ou cantis de pele. Seria sempre bem-vindo em qualquer oficina com falta de mão-de-obra.

Paulo tinha escolhido um ofício que, virtualmente, lhe garantia trabalho em todas as estradas por onde andasse ou em todos os mares por onde navegasse. A sua escolha tinha, no entanto, uma desvantagem. Estigmatizava-o como pertencendo à classe trabalhadora, que era desprezada pela classe liberal, na qual ele tinha de recrutar um ou dois crentes, em cada cidade, se quisesse ter uma casa suficientemente grande para poder reunir os seus convertidos. O sítio natural para os encontrar era como clientes da oficina que o tinha contratado. Isso dava-lhe a oportunidade para falar de negócios, mas devia haver alguma coisa na personalidade de Paulo que os levava a regressar para falarem de Jesus Cristo.

Jerome Murphy-O'Connor

in Paulo - Um homem inquieto, um apóstolo insuperável

08.07.2008

 

 

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Rembrandt























































































































































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