Santo Atanásio
Existe, pois, uma Trindade santa e completa, da qual se afirma ser Deus, no Pai, Filho e Espírito Santo. Nela não se encontra nenhum elemento estranho ou externo; não se compõe de um que cria e de outro que seja criado, senão que toda ela é criadora, consistente e indivisível por natureza, sendo [essa a] sua actividade única. O Pai realiza todas as coisas por meio do Verbo no Espírito Santo: desta maneira salvaguarda-se a unidade da santa Trindade. Assim, na Igreja prega-se um único Deus «que está sobre todos, por todos e em todos» (cf. Ef 4, 6): «sobre todos» enquanto Pai, princípio e fonte; «por todos», pelo Verbo; «em todos», no Espírito Santo. É uma verdadeira Trindade não somente de nome e por pura ficção verbal, mas em verdade e realidade. Assim como o Pai é o que é, assim também o seu Verbo é o que é e Deus soberano. O Espírito Santo não está privado de existência real, senão que existe com verdadeira realidade… (1)
Unidade e distinção entre o Pai e o Filho
«Eu no Pai, e o Pai em Mim» (Jo 14, 10). O Filho está no Pai, no que podemos compreender, porque todo o ser do Filho é coisa própria da natureza do Pai, como o resplendor o é da luz, e o regato da fonte. Assim, aquele que vê o Filho vê o que é próprio do Pai, e entende que o ser do Filho, provindo do Pai, está no Pai. Igualmente o Pai está no Filho porque o Filho é o que é próprio do Pai, do mesmo modo que o sol está no seu resplendor, a mente na palavra e a fonte no regato. Desta sorte, o que contempla o Filho contempla o que é próprio da natureza do Pai, e pensa que o Pai esta no Filho. Porque a forma e a divindade do Pai é o ser do Filho e, portanto, o Filho está no Pai, e o Pai no Filho. Por isto, com razão tendo afirmado primeiramente «Eu e o Pai somos um» (Jo 10,30) acrescentou: «Eu no Pai e o Pai em Mim» (Jo 14,10): assim manifestou a identidade da divindade e a unidade da sua natureza.
Não obstante, são um mas não à maneira de uma coisa que se divide imediatamente em dois, que não são, na realidade, mais que uma; nem tão-pouco como uma coisa que tem dois nomes, como se a mesma realidade num momento fora Pai e noutro Filho. Isto é o que pensava Sabélio, e foi condenado como herege. Trata-se de duas realidades, de tal forma que o Pai é Pai, e não Filho; e o Filho é Filho, e não Pai. Mas a sua natureza é uma, pois o engendrado não é dissemelhante relativamente ao que engendra, já que é sua imagem, e tudo o que é do Pai é do Filho. Por isto o Filho não é outro deus, pois que não é pensado fora [do Pai]: de contrário, se a divindade se concebesse fora do Pai, haveriam, sem dúvida, muitos deuses. O Filho é «outro» enquanto é engendrado, mas é do «mesmo» enquanto é Deus. O Filho e o Pai são uma só coisa na medida em que têm uma mesma natureza própria e peculiar, pela identidade da divindade única. Também o resplendor é luz, e não algo posterior ao sol, nem uma luz distinta, nem uma participação dele, senão simplesmente algo engendrado dele: ora, uma realidade assim engendrada é necessariamente uma única luz com o sol, e ninguém dirá que se tratam de duas luzes, ainda que o sol e o seu resplendor sejam duas realidades: una é a luz do sol, que brilha por todas as partes seu próprio resplendor. Assim também, a divindade do Filho é a do Pai, e por isto é indivisível dela. Por isto Deus é uno, e única a sua divindade, dizendo-se do Filho o mesmo do que se diz do Pai, excepto que seja Pai. (2)
O Verbo não foi feito como meio para criar
O Verbo de Deus não foi feito por nossa causa, mas, contrariamente, havemos sido feitos por Sua causa, e n’Ele foram criadas todas as coisas (Col 1, 16). Não foi feito por causa da nossa debilidade – sendo Ele forte – pelo Pai, que existia só até então, a fim de servir-se d’Ele como instrumento para nos criar. Porque ainda que Deus se houvesse compadecido por não haver qualquer criatura, contudo o Verbo nem por isso haveria deixado de estar em Deus, e o Pai de estar com Ele. Porém, não era possível que as coisas criadas fossem feitas sem o Verbo, e assim é óbvio que por Ele foram feitas. Pois que, sendo o Filho o Verbo próprio da natureza substancial de Deus, e procede d’Ele e n’Ele está… era impossível que a criação fosse feita sem Ele. É como a luz que ilumina com seu resplendor todas as coisas, de sorte que nada pode iluminar-se senão pelo resplendor. Da mesma maneira o Pai criou com seu Verbo, como se fora sua mão, todas as coisas, e sem Ele nada faz. Como nos recorda Moisés, disse Deus: «Faça-se a luz», «Reúnam-se as águas» (Gen 1, 3. 9)..., e falou, não à maneira humana, como se houvera ali um obreiro para escutar, o qual, inteirando-se da vontade do que falava, a executasse. Isto seria próprio da ordem criada, mas indigno de ser atribuído ao Verbo. Porque o Verbo de Deus é activo e criador, sendo Ele mesmo a vontade do Pai. Por isso a sagrada Escritura não diz que havia quem escutasse e respondesse como e com que propriedade queria que se fizesse o que haveria de ser feito, senão que Deus disse unicamente «Faça-se», e ao ponto acrescenta «E assim foi feito». O que queria com a sua vontade, foi feito à justa e concluído pelo Verbo. Basta o querer, e a coisa está feita. Assim, a palavra «disse» é para nós indicadora da divina vontade, enquanto que a palavra «e assim foi feito» indica a obra realidade pelo seu Verbo e sua sabedoria, na qual se acha também incluída a vontade do Pai. (3)
Unidade de natureza no Pai e no Filho
Já que Ele é o Verbo de Deus e a sua própria sabedoria, e, sendo seu resplendor, está sempre com o Pai, é impossível que, se o Pai comunica graça, não o faça igualmente a seu Filho, posto que o Filho é no Pai como resplendor da luz. Porque não por necessidade, senão como um Pai, em virtude de sua própria sabedoria, Deus fundou a terra e fez todas as coisas por meio do Verbo que Dele procede, e estabelece pelo Filho o santo banho do baptismo. Porque onde está o Pai também está o Filho, tal como onde está a luz aí está o seu resplendor. E assim como aquilo que o Pai opera é realizado pelo Filho. O próprio Senhor o disse: «O que vejo o Pai fazer assim faço também Eu», assim também quando se confere a baptismo, àquele a quem baptiza o Pai também o Filho o baptiza, e o que é baptizado pelo Filho é aperfeiçoado no Espírito Santo. Para além disso, assim como quando o sol alumia se pode dizer também que é o seu resplendor que ilumina, já que a luz é única e não pode dividir-se nem partir-se, assim também onde está ou se nomeia o Pai aí está também, indubitavelmente, o Filho; e visto que no baptismo se menciona o Pai, há que mencionar com Ele igualmente o Filho. (4)
A eterna geração do Filho
É exacto dizer que o Filho é vergôntea eterna do Pai. Porque a natureza do Pai não foi em qualquer momento imperfeita, de sorte que logo se lhe pudesse sobrevir quanto lhe é próprio. O Filho não foi engendrado como se engendra um homem de outro homem, de forma que a existência do pai é anterior à do Filho. O Filho é rebento de Deus, e sendo Filho de Deus, que existe eternamente, Ele mesmo é eterno. É próprio do homem, por causa da imperfeição da sua natureza, engendrar no tempo: mas Deus engendra eternamente, porque a sua natureza e perfeita desde sempre… O que é engendrado do Pai é o Seu Verbo, a sua sabedoria e o seu resplendor, e há que dizer que os que afirmar que havia um tempo em que não existia o Filho são como ladrões que roubam a Deus o seu próprio Verbo, e se declaram contrários a Ele dizendo que durante um tempo não teve nem Verbo nem sabedoria, e que a luz teve um tempo sem resplendor, e a fonte foi, durante um tempo, estéril e seca. Na realidade simulam a palavra «tempo» devido aos que o reprovam, e dizem que o Verbo existia «antes de todos o tempos». Com efeito, determinam um certo «período» no qual imaginam que o Verbo não existia, com o qual introduzem igualmente a noção de tempo: e assim, ao admitirem um Deus sem Logos ou Verbo, mostram a sua extraordinária impiedade. (5)
A eternidade do Pai implica a filiação eterna
Deus existe desde a eternidade: e se o Pai existe desde a eternidade, também existe desde a eternidade o que é o seu resplendor, ou seja, o seu Verbo. Além do mais, Deus, «o que é», tem de si mesmo o que é o seu Verbo: o Verbo não é algo que antes não existia e que imediatamente veio à existência, nem tempo houve em que o Pai estivesse sem Logos (alogos). A audácia dirigida contra o Filho chegar a tocar com a sua blasfémia o próprio Pai, já que o concebe sem Sabedoria, sem Logos, sem Filho… É como se alguém, vendo o sol, perguntasse acerca do seu resplendor: o que existe primeiramente faz o que não existe ou o que já existe? Aquele que pensasse deste modo seria tido como insensato, pois seria loucura pensar que o que procede totalmente da luz é algo extrínseco a ela, e pergunta quando, donde e como foi isso. O mesmo ocorre com o que pergunta tais coisas acerca do Filho e do Pai. Ao fazer tais perguntas mostra uma loucura ainda maior, pois supõe que o Logos do Pai é algo externo a Ele, e imagino como que em sombras que o que é geração da natureza divina é uma coisa criada, afirmando que «não existia antes de ser engendrado». Oiçam, pois, a resposta à vossa pergunta: o Pai, que existe [eternamente], fez o Filho com a mesma existência… Mas, dizeis vós, os arianos…: Aquele que é teve necessidade do que não era para criar todas as coisas, ou necessitou d’Ele quando já era? Porque está [presente] nos vossos ditos que o Pai fez para si o Filho a partir do nada, como instrumento para criar com Ele todas as coisas. Ora, quem é superior: o que tem necessidade de algo? Ou será que ambos satisfazem mutuamente as suas respectivas necessidades? Se tal dizeis, mostrais a debilidade daquele que teve que recorrer a um instrumento por não poder, por si mesmo, fazer todas as coisas… Este é o cume da impiedade… (6)
SANTO ATANÁSIO de Alexandria (295-373)
(1) ATANASIO, Ad Serapionem, I, 28.
(2) ATANASIO, Orationes contra Ar. III, 3-4.
(3) Ibid. II, 31.
(4) Ibid. II, 41-45.
(5) Ibid, I, 14.
(6) Ibid. I, 25-26.Qualidade do autor
RF
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