Projecto cultural

A decisão da fé na cultura das preferências individuais

 

As nossas sociedades modernas, democráticas e pluralistas, são fortemente marcadas por uma tendência cultural que poderíamos designar de ‘afirmação intensa da individualidade’. O ser humano, que as habita, reivindica a independência individual, faz questão de manifestar preferências e efectuar escolhas sem constrangimentos. Esta tendência cultural não apresenta contornos precisos no tecido social. Constitui uma atmosfera difusa, com zonas mais ou menos densas. Não chega a ter um papel exclusivo no condicionamento de tais sociedades. Não explica cabalmente o comportamento de quem as integra. É um factor cultural entre outros, mesmo tendo um peso particular.

Assim, é de esperar que, no quadro das nossas sociedades modernas, a fé cristã sofra o impacto da atmosfera cultural da afirmação intensa da individualidade. A sua influência far-se-á sentir quer na apropriação pessoal da fé, quer na vivência posterior da mesma. É certo que, em princípio, fazer sua a fé cristã assume o aspecto duma decisão (1). Tornar-se crente supõe o encontro fecundo entre uma pessoa que escolhe e uma fé que se dá a escolher. Mesmo que esta seja em parte uma herança, ser crente implica um acto de adesão pessoal. Contudo, a dita atmosfera cultural vem condicionar o modo como o ser humano exerce a sua liberdade. Movimentar-se livremente por entre aquilo que se lhe apresenta e tirar daí o maior benefício próprio, será provavelmente o seu comportamento habitual. Não admira que aja dessa forma ao entrar em contacto com a fé cristã e aderir eventualmente a ela.

 

1. Perante uma realidade

Percebida no trabalho pastoral

Quando se trabalha actualmente com jovens, pode-se ficar admirado com o seu comportamento fortemente individual em matéria de fé. É frequente mostrarem grande independência face àquilo que lhes é proposto. Tendem a buscar uma experiência de carácter emocional, que responda ao seu desejo de auto-satisfação. O sentido de pertença ao grupo parece bastante leve. A participação é muitas vezes irregular: varia, em grande medida, com o estado de espírito do momento. Olhando para a atitude dos jovens, nem sempre é fácil encontrar sinais duma vida crente com sentido de perseverança. Os percursos individuais mostram-se instáveis: o ritmo de cada um depende bastante de estímulos exteriores. Assim, pode-se ficar com a impressão de não haver em muitos jovens uma verdadeira decisão a respeito da fé.


Contudo, este assunto merece um debate. Será que nesses jovens não há nada que possa ser considerado como uma decisão? Ou será que o modo como muitos se comprometem em relação à fé não corresponde exactamente à expectativa de quem trabalha com eles? O apostolado juvenil pode gerar vivências da fé bastante diversificadas, não raras vezes surpreendentes pela forma ou pelo carácter ténue. É um tipo de trabalho que exige frequente reexame de estratégias, com desmontagem de ideias preconcebidas. Esta instabilidade apostólica, devida à rápida mutabilidade das experiências, é visível, por exemplo, nos centros universitários. A população que por eles passa altera-se de ano para ano. Facilmente se nota aí o salto de gerações. Isto faz com que um esquema pastoral de sucesso possa ser questionável ao fim dalgum tempo.


Hoje, o acesso à fé está longe de ser automático. Digamos que o leito pelo qual o caudal da fé passa do âmbito eclesial ao coração individual não é regularmente descendente. O seu percurso é acidentado, requerendo à proposição da fé um acréscimo de esforço e sabedoria. Ajudar outros a aceder à fé é um empreendimento onde tem de se contar com a diversidade dos caminhos, a fragilidade das intervenções e a imprevisibilidade dos resultados.


Entretanto, a noção de trajectória individual vulgariza-se nas comunidades eclesiais. Vão surgindo propostas de itinerários diversificados para ajudar a aceder à fé pela primeira vez ou voltar a ela após um período de afastamento. Quer-se enfrentar o problema da distância entre o que muitas pessoas procuram na fé e aquilo que esta deve propor. As motivações com que se ingressa nesses itinerários não são muitas vezes claras para quem os promove. Podem até não o ser para a própria pessoa. É possível que busque algo, sem saber precisar o que quer. Decide simplesmente entrar num dinamismo, em que outros também se integram. Nem sempre é fácil descodificar o desejo que leva uma pessoa ao primeiro contacto com a fé. É provável que se vá clarificando com o avanço desse contacto. Descobre-se o que se quer da fé ao mesmo tempo que se toma consciência de quem se é relativamente a ela. Percebe-se melhor aquilo que se é como pessoa e se poderá ainda vir a ser (2). Ora, este processo de entrada na vida crente tem hoje uma tonalidade fortemente afectiva. É de prever que oscile, consoante as impressões que a descoberta da fé for deixando na pessoa.

 

Verificada pela análise sociológica

Estudos feitos na charneira dos anos setenta e oitenta, sobre as nossas sociedades ocidentais, detectam uma descontinuidade na lógica da afirmação da individualidade. Dão conta duma alteração da forma como o ser humano exerce a sua liberdade. Segundo Gilles Lipovetsky, diminui o espírito «disciplinar e militante, heróico e moralizante». A vida começa a desenvolver-se «à la carte», seguindo uma perspectiva «hedonista e psicológica, que faz da realização íntima o fim principal das existências» (3). Antes, a existência humana era essencialmente organizada pelos elos de sociedade. Considerava-se que estes precediam os indivíduos. A consciência de cada um regia-se pela lógica do dever. Hoje a relação entre o ser humano e a sociedade está a inverter-se. A consciência individual julga-se anterior aos elos de sociedade. A lógica do dever dá lugar ao princípio do prazer. Do cidadão responsável e comprometido, passa-se ao indivíduo pretensamente desconectado de toda a fonte de sentido colectivo. O ‘eu’ torna-se o centro das atenções na condução da vida (4).


A análise sociológica regista o eco desta mudança cultural no campo da religião. Podemos recorrer aos três grandes inquéritos organizados, nos últimos anos, pela Fundação para o Estudo dos Sistemas de Valores na Europa (EVS): em 1981, 1990 e 1999. Interessa-nos sobretudo o que deles se refere ao espaço da Europa Ocidental, em que nós próprios nos situamos. A sequência temporal dos resultados mostra uma afirmação crescente da individualidade, com repercussões nos diversos sectores da vida humana. Sendo a prática da fé cristã um deles, não parece fácil prever como evoluirá nos próximos tempos. O cristianismo dá a impressão de gozar duma nova credibilidade nas nossas sociedades secularizadas. Mas também «é relativizado, passado ‘na trituradora’ das subjectividades individuais, confrontado com a indiferença ou buscas espirituais autónomas (5).


A tendência para a afirmação intensa da individualidade generaliza-se a tal ponto que marca as experiências da fé cristã um pouco por todo o espaço europeu. No passado, o aspecto comum dessas experiências era sustentado pela pertença religiosa: a sua homogeneidade fazia-se a partir de cima. Hoje, estão a tornar-se semelhantes umas às outras, devido a influências a partir de baixo. O crescimento da afirmação da individualidade parece levar as experiências da fé a evoluírem todas num mesmo sentido. Generalizam-se, assim, a «individualização» ou «um certo do it yourself em matéria religiosa», a «subjectivização» ou a «valorização da experiência», a «estetização» ou o «gosto da encenação», a «emocionalização» ou a «procura duma religião ‘calorosa’», enfim, o «indiferentismo» que atenua as «diferenças doutrinais entre as religiões» e suscita uma atitude pragmática em relação a elas (6).

 

Reconhecida pelas autoridades eclesiais

Podemos comparar dois simpósios organizados pelo Conselho das Conferências Episcopais da Europa: o de 1985, sobre Secularização e evangelização na Europa hoje, e o de 1996, sobre A Religião, facto privado e realidade pública: o lugar da Igreja nas sociedades pluralistas. Não se pode afirmar que a ideia de evangelização seja absolutamente diferente dum para o outro. Mas a análise do vocabulário de ambos mostra uma mudança na acentuação de aspectos. Isto significa que a ideia de evangelização no espaço europeu evoluiu. É o que se pode deduzir também dum outro documento da época do segundo simpósio. Trata-se da «Carta aos católicos de França», publicada pelos bispos deste país em 1996, com o título Propor a fé na sociedade actual.


A verificação dum certo número de diferenças, quanto à ideia de evangelização, entre o documento de 1985 e os dois documentos de 1996 poderá ajudar-nos a compreender a crise que afecta a fé cristã nas nossas sociedades modernas. É provável que esta evolução do conceito de evangelização se deva ao facto de os bispos europeus terem tomado consciência do fenómeno da afirmação intensa da individualidade e das consequências que comporta para a vivência da fé (ver tabela seguinte). De facto, a alteração do exercício da liberdade individual, referida por Gilles Lipovetsky e situada na passagem dos anos setenta para os anos oitenta, é pouco anterior à gestação dos documentos episcopais de 1996.

 

1985 1996

• 6º Simpósio do Conselho das Conferências Episcopais da Europa

• 9º Simpósio do Conselho das Conferências Episcopais da Europa
• Carta dos Bispos Franceses

Igreja face à sociedade

Igreja face à cultura.

Igreja entre as entidades que constituem o pluralismo.

Igreja muito segura do seu lugar na sociedade.

A Igreja põe a questão da sua credibilidade social.

Preponderância da sociedade face ao indivíduo. Indivíduo compreendido a partir da colectividade em que se integra. Pensa-se evangelizar a cultura que faz o indivíduo.

Preponderância do indivíduo face à sociedade. Constatação da emergência do indivíduo. É preciso começar por evangelizar a sua liberdade.

Modo de evangelizar

A evangelização dirige-se
à sociedade secularizada.

A evangelização dirige-se à liberdade que escolhe e decide.

O outro a quem se dirige a evangelização: concebido sobretudo como destinatário.

O outro a quem se dirige a evangelização: concebido sobretudo como interlocutor.

Método de evangelização: inculturação.

Método de evangelização: diálogo.

Evangelizar: responder,
um pouco a modo de combate, a uma necessidade do mundo ou da sociedade.

Evangelizar: dá a impressão de ser uma atitude um pouco mais distendida da parte da Igreja.

Fórmula Anunciar a mensagem (o Evangelho ou Jesus Cristo). Trata-se de anunciar um conteúdo.

Fórmula Propor a fé. Trata-se de propor uma experiência.

Lugar de percepção da Fé

A cultura como lugar onde se compreendem as
coisas de Deus e da Igreja.

A vida como lugar onde se compreendem as coisas de Deus e da Igreja.

 

2. A especificidade da fé cristã

Ao integrar-se no pluralismo das nossas sociedades modernas, a fé cristã deve ser bem identificada, para não se confundir com outras realidades. Não se trata apenas de distinguir a fé daquilo que claramente não o é. É preciso sobretudo discernir aquelas manifestações que mais se podem parecer com ela. Este trabalho de destrinça não está livre de erros. Corremos o risco de rejeitar depressa certas manifestações como estranhas à fé, que, no entanto, até lhe pertencem verdadeiramente. Mas também podemos aprovar outras, que dão a impressão de ser da fé e não o são. Torna-se, pois, necessário precisar os contornos da fé cristã enquanto tal.


Podemos recorrer à antropologia teológica de Karl Rahner para estabelecer um sistema de coordenadas identificativas da fé cristã. Este condensa-se na afirmação seguinte: a «transcendentalidade» do ser humano, possível graças à «autocomunicação divinizante de Deus», «acontece» (7), isto é, «diz-se na história» (8). A primeira coordenada da fé seria, então, a subjectividade. Caracteriza-se pela abertura ao mistério absoluto de que o ser humano é estruturalmente dotado. Trata-se do mistério no qual os cristãos reconhecem explicitamente o rosto de Deus. A segunda coordenada seria a alteridade de Deus. Tomando a iniciativa de se comunicar ao sujeito, é Deus absolutamente outro quem está na base da sua abertura infinita. Ao mesmo tempo, oferece-lhe a resposta verdadeiramente capaz de satisfazer o pedido que está implícito nessa abertura. A terceira coordenada seria a tradição cristã, aquela história concreta que é feita da relação entre o sujeito cristão e o Deus dos cristãos no curso do tempo.


Convém notar que estas três coordenadas não desempenham o mesmo grau de especificação do universo cristão. É possível ter consciência da abertura estrutural ao mistério absoluto e reconhecer a alteridade de Deus fora desse universo. O mistério absoluto pode ter outros rostos que não o do Deus dos cristãos. Segundo Rahner, o universo cristão implica a compreensão do ser humano como o «acontecimento duma autocomunicação absoluta de Deus, livre, gratuita e perdoadora» (9). É assim que a relação entre a subjectividade crente e a alteridade divina se diz na história especificamente cristã.


O conteúdo desta história (a tradição cristã) pode ser clarificado, enunciando os seus pontos de referência. O primeiro é a figura de Jesus Cristo. Rahner apresenta-a como a «realidade absoluta» da tradição cristã, aquilo que é o seu conteúdo último e mais profundo. Por isso mesmo, Jesus Cristo torna-se também a «norma absoluta» dessa tradição, o critério que permite distinguir seguramente aquilo que se enquadra nela e aquilo que lhe é estranho (10). O segundo ponto de referência é a Sagrada Escritura. Nela está objectivada a Igreja da primeira geração dos apóstolos, que é normativa para os tempos posteriores. Finalmente, o terceiro é a Igreja viva, enquanto encarregue de entregar a Sagrada Escritura, como Palavra de Deus, às gerações futuras (11).

 

3. A afirmação intensa da individualidade

Estas três coordenadas da fé, estabelecidas a partir da antropologia teológica de Karl Rahner, sofrem o impacto da atmosfera cultural da afirmação intensa da individualidade, propagada nas nossas sociedades modernas. Tal atmosfera suscita um maior subjectivismo na relação do ser humano ao real. A sua vontade de satisfação privada vai pôr em causa a consistência objectiva da realidade que se lhe apresenta. O real já não é considerado propriamente na sua objectividade, mas antes em função dos sentimentos subjectivos que dá a experimentar. Assim, perante uma vontade que busca acima de tudo a auto-satisfação individual, é possível que saia enfraquecida a consistência das coordenadas da fé acima referidas: a subjectividade própria da estrutura do ser humano, a alteridade divina afirmando-se enquanto tal face a ele e a tradição cristã fornecendo-lhe um lugar concreto na história. Parecem fazer parte do «real pesado», susceptível de perder a «espessura natural», face a uma liberdade concebida segundo a lógica da afirmação intensa da individualidade (12).

 

O indivíduo como valor primordial

O indivíduo parte do princípio que a sua existência precede a de tudo o resto que se lhe apresenta, incluindo a do elo de sociedade. Não crê que este deva pesar na organização da sua existência. Não aceita que o elo de sociedade tenha um papel modelador das acções individuais. Pelo contrário, vê-o como produto destas. O indivíduo quer dispor de si mesmo, independentemente de qualquer obrigação exterior (13).

A esta ideia da anterioridade do indivíduo na ordem ontológica, está associada a da sua anterioridade na ordem simbólica e cognitiva. A atribuição ao indivíduo do estatuto de realidade primeira face a tudo o resto fundamenta o seu papel primordial na produção do significado do real. Assim, o indivíduo arroga-se o direito exclusivo de interpretar a realidade. Não é inclinado a dar lugar a visões do mundo e da existência, que provenham de instâncias exteriores a ele e possam temperar os seus possíveis exageros a este respeito (14).


Aparece, igualmente, a ideia da anterioridade do indivíduo na ordem ética. Ele constitui-se em valor primeiro, enquanto tudo o resto é valorizado apenas em função de si. Para tal, procura não se comprometer com a realidade objectiva que se lhe apresenta, o que não significa que viva sem nenhuma referência a ela. Desinveste da realidade objectiva, para impedir que esta dê origem a uma construção ética que venha a implicá-lo. Não se trata do fim da ética enquanto tal, mas da criação duma nova ordem em que o indivíduo possa ditar inteiramente as regras. A ética passa a ser concebida à medida das necessidades de auto-satisfação do indivíduo (15).


Vê-se que o indivíduo garante este seu estatuto de anterioridade face ao real que se lhe apresenta, procurando controlar o jogo da sua relação com ele. Consegue-o pela sua propensão tanto a envolver-se com o real, como a recuar face a ele. O interesse do indivíduo mantém-se sempre como o critério que estabelece a oportunidade de cada um destes movimentos. Ele envolve-se com as coisas do mundo material, as outras pessoas e os assuntos da sociedade, não só atribuindo-se o direito de dosear esse envolvimento, mas também guardando a possibilidade de o suspender. Até dá a impressão que a dinâmica do recuo é que inspira a dinâmica da própria adesão (16).

Assim, o indivíduo perde o hábito duma relação coerente do presente com o passado e o futuro, na condução da própria vida. Habitua-se a fazer a experiência de momentos diversos, mais justapostos que conexos entre si. Vive «nos programas curtos, na mudança perpétua das normas, na estimulação a viver de imediato» (17). O indivíduo rejeita o esforço quer da fidelidade às sabedorias do passado, quer do sacrifício às exigências do futuro. O que importa é aproveitar as ocasiões de gratificação individual que se vão oferecendo no curso da vida.

 

A transformação da vontade

Fazendo alusão ao alargamento da escolha individual, ligado à livre prossecução do prazer, Gilles Lipovetsky afirma que vivemos actualmente na «sociedade da hiper-escolha». Abre-se a porta a «toda a opção possível em matéria de escolhas, crenças e modos de vida» (18). A prática da escolha intensifica-se: aumenta não só a variedade do que se elege, mas também o ritmo da actividade de eleição.
Ora, o ambiente cultural de hiper-escolha parece gerar uma crise da vontade. A enorme quantidade de informação a que o indivíduo tem acesso pode ocupar o espaço que deveria pertencer ao exercício responsável da sua vontade. Torna-se mais difícil clarificar o mundo do próprio desejo, assim como reflectir sobre um objecto que se tem em vista. Saturada de informação, a vontade pode disseminar-se em múltiplas direcções, talvez tenha dificuldade em antecipar devidamente aquilo a que adere. Parece revelar mesmo uma dinâmica contraditória. Por um lado, o limiar de estimulação é tão baixo que quase tudo é capaz de suscitar o interesse do indivíduo. Por outro, esse limiar é tão alto que quase nada lhe desperta interesse. A vontade pode mostrar-se simultaneamente pronta a tudo e indiferente a tudo. Os seus compromissos podem ser variados, mas também superficiais e provisórios (19).


Rodeado de solicitações em demasia e dotado duma vontade mais oscilante que consistente, o indivíduo tende à prática da decisão permanente. Dá a impressão que a parte da existência em que prossegue uma actividade ou percorre um caminho é menos importante que aquela em que mede a auto-satisfação encontrada e anda atrás de novas oportunidades. O indivíduo não decide apenas sobre aquilo que ainda não foi matéria de decisão. Decide também sobre o já decidido, com vista a reafirmação, correcção ou mesmo abandono.


Mas este estado de decisão permanente mais parece de não-decisão permanente. Uma vez fragmentadas e esbatidas as referências exteriores e perdida a capacidade de se estruturar solidamente a partir de dentro, o indivíduo experimenta o impasse mais do que nunca. Parece-lhe mais confortável arrastar-se na não-decisão do que comprometer-se a fundo numa decisão (20). O curso da sua existência tende a ser marcado sobretudo pela diversidade de propostas que se lhe vão apresentando; não parece resultar da adesão firme a uma só e da concomitante renúncia às demais. A existência do indivíduo chega dificilmente a uma coerência global, que resulte de decisões preparadas e assumidas em profundidade.


Utilizando metáforas, poderíamos dizer que o indivíduo parece atraído mais pelo leve que pelo pesado. Se se compromete com o pesado, fá-lo provavelmente à ligeira. Teme que o compromisso com o pesado venha a limitar-lhe a liberdade ou mesmo a oprimi-lo. Acha, pelo contrário, que o envolvimento com o leve, ou com o pesado à ligeira, não compromete a sua liberdade. Em vez duma proposta que requeira fidelidade a longo prazo, o indivíduo tende a preferir uma que não exija muito de si e possa abandonar quando quiser sem ficar prejudicado. Em vez de se esforçar por estudar bem as motivações do seu compromisso, tende a deixar-se impressionar pelas aparências. Enfim, em vez de assumir plenamente um projecto já começado, amadurecendo ainda mais as suas motivações, o indivíduo prefere manter a sua sensibilidade orientada para outras possibilidades a que ainda não aderiu. Não quer perder a possibilidade de agarrar novas ocasiões, quer experimentar o que ainda não conhece. A partir do momento em que procura uma vida continuamente gratificante, está sempre disponível para experimentar o novo (21).


O indivíduo não crê que seja destrutivo para si estar sempre a rever uma decisão já tomada, admitindo a possibilidade de a abandonar em proveito de outra, mesmo que em contradição com ela. Não teme que as descontinuidades das mudanças de curso conduzam a «disjunções definitivas» (22). A busca permanente duma experiência sentida das coisas é capaz de lhe dar a impressão de coerência entre essas descontinuidades.

 

4. Uma nova fisionomia da fé cristã

Modificação das coordenadas da fé

É provável que o sujeito crente revele um sentido acrescido de individualidade, no seio duma atmosfera cultural que encoraja a afirmá-la intensamente. Isso vem mostrar que individualidade e subjectividade não são dois aspectos separados por uma barreira intransponível; representam duas maneiras de viver a relação consigo mesmo e a realidade circundante. Assim, é possível que a afirmação intensa da individualidade não chegue a produzir um indivíduo absolutamente desprovido de subjectividade; digamos que é ainda um sujeito que revela uma tendência acentuada para a individualidade. Por outro lado, a reconstrução do sujeito a partir do indivíduo não tem que implicar a supressão da individualidade a favor da subjectividade, mas a reintegração da primeira na perspectiva da segunda. Seria, pois, precipitado considerar a intensificação da individualidade, espalhada nas nossas sociedades modernas, como absolutamente incompatível com a vida de fé. É certo que a preservação duma certa base de subjectividade no indivíduo é necessária para que este possa tornar-se um sujeito da fé cristã. Mas, se a tendência a fechar-se sobre si próprio não o impedir de assumir ainda elos de ligação à realidade que lhe está presente, a possibilidade de aceder à fé mantém-se.


Em segundo lugar, o papel atribuído à alteridade divina na prática da fé pode ficar atenuado, pelo facto de o crente tentar preservar a sua independência face a ela. Não é o poder divino enquanto tal que sai enfraquecido, porque a alteridade de Deus face ao ser humano permanece absoluta. O que pode ser reduzido é o sentido que se tem desse poder, devido a uma vivência da fé bastante individual. A atmosfera cultural da afirmação intensa da individualidade parece encorajar o ser humano a trazer Deus para o seu campo, a fim de o instrumentalizar. Habituado a dispor como quer da realidade que se lhe apresenta, reserva também um lugar para Deus à sua maneira. Pretende que este seja dócil a um jogo que não desiste de controlar. Em vez de entrar ele próprio na órbita de Deus, procura situar este na sua órbita egocêntrica. Não considerando a alteridade divina como o centro de referência absoluto de toda a existência crente, inverte as regras a seu favor. Ora, esta tendência para um maior pendor subjectivo da vida de fé deve ser submetida a um discernimento. Há um limite a partir do qual passamos a ter apenas uma ilusão de fé. Como previne Pierre Gisel, pode-se cair numa «deriva subjectivista que remete a fé para uma simples intenção, para uma pura decisão» (23).


Em terceiro lugar, a tendência do indivíduo a fazer sentir o seu peso subjectivo sobre a realidade que se lhe apresenta pode pôr a tradição cristã à prova. É certo que esta não é de consistência maciça. Revela uma contextura flexível, que lhe dá uma certa capacidade de adaptação a tal tendência. Mas há o perigo de ultrapassar um limite, a partir do qual a tradição se desagrega. Este limite não é geometricamente definido; assume múltiplas formas de acordo com as situações concretas. Mas importa fazer um discernimento para nunca ser ultrapassado. É preciso não abusar da flexibilidade do tecido da tradição cristã, para não romper a ligação a ela. De facto, convém não cair numa prática da fé tão minimalista que esta deixe de ser verdadeiramente fé cristã. Interessa também não multiplicar exageradamente as vivências individuais da fé. O crente corre o risco de ser demasiado livre no modo de apropriar a tradição cristã, escolhendo dela apenas os elementos que quer e combinando-os como quer. Arrisca-se também a misturá-los com outros que não pertencem a essa tradição. Só se pode dizer que um crente vive a fé cristã, quando ele toma pessoalmente a tradição a seu cargo (24). A fé da Igreja deve acontecer na fé individual, seja de que maneira for.

 

A marca da experiência individual

Estando a fé da Igreja submetida a um peso subjectivo crescente da parte dos crentes, a experiência individual torna-se um factor importante na configuração da própria fé. Mas ‘experiência’ não é uma palavra unívoca; pode ser concebida de modos diferentes. Importa verificar que noção de experiência a atmosfera cultural da afirmação intensa da individualidade incute nos crentes. Esta parece reduzir a experiência ao ‘vivido’ individual, por outras palavras, ao «facto de vida» ou «fluxo permanente da vida»(25). ‘Vivido’ designa, então, aquilo que cada um experimenta de forma imediata e espontânea. É o que verdadeiramente conta para o indivíduo crente, no momento de avaliar e comunicar a sua experiência. Interessam-lhe as impressões subjectivas deixadas pela realidade que se lhe apresenta. Nestas condições, o indivíduo exigirá que a fé proposta pela Igreja tenha nele ressonâncias de ‘vivido’. Reterá dela sobretudo o fluxo espontâneo de vida que lhe causa. É ao ritmo deste fluxo que viverá a fé cristã.


Toda a experiência humana, incluindo a da fé, é objecto duma elaboração de sentido. O fluxo espontâneo e permanente de vida é estruturado. O material informe da experiência adquire uma significação (26). Ora, o indivíduo das nossas sociedades modernas tem uma determinada forma de elaborar sentido a partir da experiência. Se o seu interesse se centra na impressão viva dos factos e no proveito espontâneo do que lhe acontece, é pouco provável que faça assentar a qualidade da experiência numa significação que lhe dê grande estrutura. Talvez tema que um elevado grau de elaboração de sentido venha a ofuscar a autenticidade da experiência, que consiste em desfrutar o fluxo de vida que passa espontaneamente por ele. Julga, porventura, que essa elaboração pode encerrar a vitalidade da experiência numa simples construção mental. Assim, é provável que o indivíduo busque um sentido que não requeira demasiada elaboração. Será talvez um sentido mínimo e retalhado, mais conforme ao proveito das ocasiões de auto-satisfação que à busca duma direcção coerente na vida.

 

O carácter vincado de acontecimento

A fé cristã é um acontecimento que vive do encontro entre a verticalidade da acção divina e a horizontalidade da existência humana. Resulta da confluência de duas liberdades, a de Deus e a nossa. A vivência da fé é, no seu conjunto, um acontecimento, englobando uma série de acontecimentos mais ou menos pontuais. Cada acontecimento da fé aparece como «qualquer coisa» que se destaca no curso da vida. A parte desempenhada pela intervenção divina dá-lhe uma fisionomia particular em relação ao resto da existência. Mas o acontecimento da fé está intimamente ligado tanto àquilo que o precede como àquilo que o segue. Não tem significado sem incarnar num terreno humano mais vasto, que facilite o seu aparecimento e prolongue também os seus efeitos. Há simultaneamente continuidade e descontinuidade entre esse acontecimento e a existência em que se insere (27).

Ora, é provável que o carácter de acontecimento próprio da fé cristã seja particularmente nítido, quando tem lugar no seio da atmosfera cultural da afirmação intensa da individualidade. É natural que a fé faça contraste com um pano de fundo sociocultural onde não é evidente que apareça. Num contexto pouco propício a uma experiência humana suficientemente densa para chegar à aventura da fé, esta pode testemunhar ainda melhor a coabitação do divino e do humano. De facto, um indivíduo que tende a fazer apenas a experiência de si próprio, evitando deixar-se atravessar pela alteridade que lhe está presente, não parece constituir um terreno favorável ao aparecimento da fé. Pode ter uma existência demasiado horizontal, por valorizar apenas o que é imediata e espontaneamente ‘vivido’. Trata-se de alguém que não parece dar-se tempo para lidar com as grandes questões da existência. Não admira, então, que a fé nestas condições se manifeste mais claramente como acontecimento.


É possível que uma relação demasiado individual com a alteridade divina dificulte a manifestação da força soberana de Deus. A fé seria, assim, menos visível como acontecimento. Mas também é verdade que, entrando-se na experiência da fé, os caminhos da relação com a alteridade divina são imprevisíveis. Deus pode fazer maravilhas num indivíduo habituado a preocupar-se sobretudo consigo mesmo.

 

A importância da apropriação individual

É de esperar que o crente, afectado pela atmosfera cultural da afirmação intensa da individualidade, insista no acordo da fé eclesial com o seu próprio juízo e sobretudo a sua própria sensibilidade. Tende a acentuar o desfasamento entre a fé praticada individualmente e a fé veiculada pela Igreja institucional. O crente comporta-se como a instância primeira da fé, aquela em que se traça a sua configuração e se joga o seu futuro. Ao afirmar-se como o lugar onde a fé existe verdadeiramente, somos levados a prestar atenção ao acto pelo qual a faz sua. «A exigência duma apropriação ou duma re-apropriação pessoal da fé é que é hoje a grande exigência» (28).

Esta insistência no momento da apropriação da fé traz a fides qua para primeiro plano em relação à fides quae. É provável que o modo como se desenvolve a apropriação influa bastante nos contornos da fé individual. É possível também que a fé comum da Igreja viva cada vez mais das múltiplas formas da sua apropriação. Na actividade catequética, o acto de fé torna-se o horizonte de compreensão do conteúdo da fé; a apresentação deste só faz sentido tendo aquele como objectivo. Assim, estas duas dimensões da fé não são apenas os dois termos duma alternância em que um sucederia naturalmente ao outro. Não basta dizer que a presença do conteúdo da fé pode suscitar um acto de fé, nem que este acto torna o conteúdo da fé presente numa nova circunstância. Isso suporia uma espécie de igualdade de importância entre as duas dimensões. De facto, hoje toda a comunicação da fé de pessoa a pessoa é concebida como partindo dum acto de fé realizado para um acto de fé potencial. Pode visar também a passagem dum acto de fé menos maduro para outro de maior maturidade. É um processo em que o conteúdo da fé não está exactamente ao mesmo nível do acto de fé; esse conteúdo serve de ponte entre dois actos de fé (29). Ora, este acréscimo de importância da fé enquanto acto sobre a fé enquanto conteúdo vem realçar o lugar da decisão pessoal na vida crente, sobretudo no momento de aceder a ela.

 

5. O processo da decisão da fé

A morfologia da decisão da fé

É possível conceber um pouco geometricamente o modo como a decisão da fé se inscreve no curso global da existência. A fisionomia concreta dessa decisão resulta de factores como a estrutura humana do indivíduo ou as condições concretas da descoberta da fé. De qualquer modo, podemos imaginar uma tríplice dimensão da decisão da fé: comprimento, espessura e transcendência. A ideia de comprimento lembra que a decisão da fé é habitualmente um processo que se desenvolve num período de tempo. Não se exclui que, às vezes, a decisão ocorra momentaneamente. A noção de espessura sugere que a decisão da fé é um acontecimento de particular densidade no curso da existência. A ideia de transcendência indica o carácter excessivo dessa decisão, resultante do trabalho divino por dentro dela.


A decisão da fé pode desenvolver-se dum modo mais ou menos acidentado. É capaz de apresentar uma certa duração, marcada por variações de ritmo e entremeando momentos mais intensos e ocasiões bastante discretas. No entanto, é possível explicitar o esquema de desenvolvimento dum certo número de decisões da fé. Podem começar por uma primeira decisão, em que o indivíduo se dispõe a efectuar um percurso de contacto com a fé cristã. O indivíduo decide simplesmente pôr-se a caminho, ao mesmo tempo que faz perguntas e dá tempo a si próprio. Entrega-se a uma experiência, verificando que impressões lhe causa e em que medida é gratificante (30).


A caminhada de contacto com a fé cristã pode desembocar numa segunda decisão, a dum compromisso claro com a fé. Ao longo desse percurso, o indivíduo é capaz de descobrir um rosto de amor por trás da alegria que gestos e palavras lhe dão a experimentar. Encontra pouco a pouco os traços d’Aquele que estava já presente discretamente no início da caminhada, mas se faz agora descobrir abertamente. Esta descoberta chama a uma nova decisão. É o momento de se comprometer com Aquele que se acaba de descobrir, pois fazer uma descoberta e crer no que se descobriu vão em princípio juntos na experiência de contacto com a fé (31). Esta segunda decisão manifesta uma conversão do indivíduo. Habituado a estabelecer relações sobretudo com o efémero, chega finalmente a um compromisso de grande amplitude que afecta o coração da sua existência.


A decisão da fé é um acontecimento que assume um relevo particular no seio duma existência que inclui decisões de alcance mais circunscrito. No caso do indivíduo habituado a viver essencialmente preocupado consigo mesmo, agarrando continuamente as ocasiões de auto-satisfação, é de esperar que a espessura da decisão da fé se diferencie claramente da das outras decisões tomadas até então. A vontade bastante mutável, antes demonstrada, talvez fosse sintoma da grande distância que separava o horizonte dado à própria existência e um outro horizonte para que apontava o querer profundo. O ziguezague das decisões concretas mostrava provavelmente que o indivíduo não conseguia ultrapassar o desnível entre a capacidade de resposta das suas realizações concretas e o dinamismo de tal querer. Ora, o modo como a decisão da fé compromete o indivíduo e o situa em relação a si próprio e ao mundo que o envolve constitui uma experiência inteiramente nova para ele. O salto qualitativo, que ela representa, comporta um dinamismo de totalidade: é o compromisso dum ser humano inteiro com uma realidade absoluta. Como diz Hans Küng, a fé cristã é «um acto de confiança incondicional, pelo qual o homem inteiro, com todas as forças do seu espírito, consente e adere à mensagem cristã e àquele que ela anuncia» (32).


Mas convém ver melhor como se dá esta exigência integral da fé, no momento de a abraçar. Saber que a fé diz respeito ao todo da existência não significa necessariamente que a relação a ela esteja isenta de motivações inconscientes em que há ainda uma procura de si mesmo. Também não quer dizer que o indivíduo tenha à partida inteira consciência das implicações daquilo a que adere. Para o ser humano habituado a afirmar intensamente a sua individualidade, encarar a fé cristã como o todo da existência, no momento em que a abraça, significa talvez fazer a experiência duma grande unificação interior. Ele poderá aprofundar depois em que medida a fé passou a ser o novo quadro de compreensão da sua vida. «Descobri uma ‘presença’ na minha vida, um ser que realmente existiu há dois mil anos e que, misteriosamente, existe ainda sob uma forma de que não sei nada», diz uma estudante (33). Dada a intensidade da decisão da fé, o indivíduo precisará dalgum tempo para captar melhor o seu dinamismo. Essa intensidade poderá ser discreta, difícil de explicar, mas ficará provavelmente como um ponto de referência na memória do crente.


O dinamismo da decisão da fé, enquanto compromisso dum todo face a outro todo, não é puramente horizontal. Comporta um factor transcendente, a saber, a graça divina. De facto, o contacto progressivo com a fé permite que esta accione aspectos da estrutura do indivíduo que não terão tido ainda ocasião de se manifestar. Há uma expansão de ser, capaz de suscitar uma possibilidade nova de se situar na existência. Esta experiência vivificante da graça divina no interior de si próprio pode ajudar a perceber o rosto que a comunica habitualmente de maneira discreta. Tal rosto poderá ser finalmente reconhecido como a fonte dum amor que, afinal, tem estado presente na vida passada. Descobrir-se como objecto desse amor tem uma força que não deixa o indivíduo indiferente. Será de tal modo tocado, que considerará a possibilidade de dar uma resposta também de amor. Esta é capaz de ser tão discreta que o indivíduo só toma consciência dela depois de a ter dado. A experiência de amor pode desembocar numa resposta de amor, com a maior das espontaneidades. «Uma manhã acordei com a convicção de que, sem me dar conta, me tinha posto a amar Jesus» (34), diz a estudante já citada.

 

Os movimentos constitutivos da decisão da fé

Compreende-se que o indivíduo, habituado a ver-se como o centro de referência da realidade com que lida, tenda a considerá-la em função dos seus interesses. É capaz de querer verificar o grau de satisfação que a fé cristã lhe faculta, caso a descubra e encare a possibilidade de se tornar crente. Procurará experimentá-la, dum modo que pode até nem ser inteiramente activo da sua parte. Se estiver saturado pela abundância de solicitações que o rodeiam, é capaz de não querer gastar muita energia a explorar os recursos da fé com que entra em contacto. A fé terá então de exercer uma acção acrescida sobre o indivíduo, comparando com a iniciativa que este possa ter em relação a ela. Embora procure sempre a satisfação dos próprios desejos, é provável que prefira fazê-lo com o mínimo de esforço. Mesmo que queira guardar o controlo dos acontecimentos ao avançar na descoberta da fé, talvez espere que seja esta a revelar-se capaz de despertar o seu interesse e tocar o seu coração. Em vez de ser ele a criar as ocasiões de se expor activamente ao trabalho da fé, espera que seja ela a atravessá-lo espontaneamente. Assim, não admira que o indivíduo dê conta da sua decisão da fé com um vocabulário que é da ordem da sensibilidade: «é ‘tocado’, ‘isso faz-lhe qualquer coisa…’, é ‘movido’» (35).


Não devemos julgar precipitadamente que aquilo que o indivíduo busca primeiro na fé cristã é estranho a esta. Podemos dizer que a experimentação dessa fé está de acordo com a sua primeira coordenada, por nós estabelecida a partir da antropologia teológica de Karl Rahner: a subjectividade crente. É certo que esta coordenada supõe a conversão do indivíduo, no sentido duma maior responsabilidade perante a fé com que se depara, mas também lhe deixa espaço para procurar o que esta dá a viver como fruição. É possível que o mais importante para o indivíduo comece por não ser o conteúdo da fé cristã propriamente dito. Talvez prefira «o seu lado novo e excitante, a vibração e a impressão que ela causa no momento» (36). Mas uma novidade atraente, uma experiência intensa de tonalidade agradável, um acontecimento que impressione profundamente e faça sentir uma expansão de vida, são elementos que devem fazer parte da vida crente. Talvez a fé cristã apresentasse uma frescura acrescida, se todas estas suas potencialidades fossem mais exploradas (37). É preciso que a fé comece por cativar o indivíduo. Depois, pode acontecer que este venha a comprometer-se seriamente com ela.


A fé cristã não é uma realidade que se submeta de modo inerte à curiosidade experimental. Tem uma vida que lhe é própria e pode fazer sentir a sua força. De facto, a decisão da fé não é fruto apenas da iniciativa humana. A fé cristã veicula a vida divina, capaz de atingir o indivíduo na profundidade do seu ser. Muitos «crentes confessam que Deus tem a iniciativa e que eles próprios não estariam em movimento espiritual se Deus não tivesse agido primeiro indo ao seu encontro» (38). Ao dar-se tempo para descobrir o sabor da fé, é possível que o indivíduo se disponha a entrar numa espécie de cumplicidade com ela. Prossegue as experiências de contacto com a fé, na medida em que lhe fazem viver momentos gratificantes. A fé, por sua vez, continua a disponibilizar-se como objecto de apreciação. Quanto mais o indivíduo a descobre como fonte de auto-satisfação, tanto mais a frequenta. Mas ele não fica sempre mestre do jogo. É progressivamente afectado pela vida própria da fé, mesmo sem se aperceber bem daquilo que esta está a fazer no seu interior. É provável que, a certa altura, a fé se revele mais forte que ele: a sua vontade de a experimentar é ultrapassada pelo poder de atracção que ela exerce. Chega o momento em que a experiência da fé excede a busca do indivíduo, de tal modo que este se entrega à sua corrente. Passa a observar a segunda coordenada da fé cristã: a relação à alteridade divina. À medida que se for entregando a Deus, permite que este actue como absolutamente outro face a si.


O papel da iniciativa divina parece crucial na decisão da fé dum indivíduo que gosta de se relacionar com as realidades que lhe estão presentes sem se comprometer com elas. É alguém que quer experimentar a fé segundo os seus desejos, sem que nada lhe seja pedido. Terá de ser a iniciativa divina a arrancar esse indivíduo desta espécie de diversão, que o desvia do essencial do contacto com a fé. Não é necessário que essa iniciativa seja brusca ou sonora. A fé pode ir pesando cada vez mais na liberdade do indivíduo, sem que ele se aperceba. É capaz de lhe ser difícil seguir conscientemente a própria caminhada, a partir do momento em que o amor se torna a chave do que se passa consigo. Terá sido atingido o ponto em que o ritmo insondável do amor divino move o indivíduo mais que nunca. Deste banho do amor gratuito de Deus a uma resposta humana igualmente de amor, a distância será então muito curta ou talvez até nenhuma.


O indivíduo corre o risco de considerar a fé cristã como um assunto que diz respeito só a ele e ficar fechado na esfera da vida privada enquanto crente. Pode não conceber espontaneamente a sua decisão da fé como uma questão de Igreja. Habituado a limitar à sua órbita subjectiva o alcance da realidade com que lida, talvez se apresse a considerar essa decisão como tomada. De facto, só a completará quando der testemunho da sua fé em nome da Igreja e perante o mundo. Karl Rahner diz que quem se tornou crente tem, no mínimo, de dar a conhecer aos outros aquilo que é. Não pode ficar ao nível «dum cristianismo implícito e não oficial, porventura dum simples apelo de Deus, muito aquém da verdadeira profissão da fé cristã» (39).


Uma decisão da fé talvez se contradiga a si própria, se não der seguimento àquilo que inaugura. Deve exteriorizar-se, de modo a suscitar outras decisões da fé à volta de si. Não é só o indivíduo que está implicado na decisão da fé; a comunidade eclesial está aí também envolvida. Quando há um novo crente, não é apenas uma prática individual da fé que começa; é a vida da Igreja que nasce de novo. Além disso, a ausência de projecção exterior dessa decisão faria com que a vida crente ficasse seriamente comprometida. A própria decisão poderia acabar por se desfazer. É preciso estar atento às razões pelas quais o indivíduo tende a guardar a sua fé só para si. Podem parecer legítimas precisamente num contexto de valorização da individualidade como o nosso. A estudante, antes citada, parece exemplificar esta tendência. Interrogada sobre as reacções ao seu desejo de receber o baptismo, afirma: «Sou pudica, tenho dificuldade em falar disso publicamente» (40). É preciso ajudar os que chegam à fé a pôr em prática a sua terceira coordenada: uma relação viva à tradição cristã. A confissão da fé é o momento que consuma a integração da fé individual no devir histórico da vida da Igreja. Com essa proclamação pública da fé, teremos então a certeza de estar perante alguém que a abraçou.

 

Importa redescobrir as responsabilidades do momento eclesial da fé cristã, em função dos desafios que lhe são colocados pela nova proeminência do momento individual. Em primeiro lugar, é preciso recriar o processo de transmissão da fé. A apresentação eclesial deve ser repensada em função da decisão individual de a acolher, sem que a identidade da fé cristã fique comprometida. A Igreja ganha consciência de que não basta apresentar a fé, para que esta seja captada e acolhida. O caminho que vai da apresentação eclesial à decisão individual é complexo, multiforme e bastante imprevisível. Deve ser teologicamente estudado e pastoralmente cuidado (41). A transmissão da fé consiste cada vez menos em passar uma herança às futuras gerações. Comporta cada vez mais a aprendizagem de algo verdadeiramente novo. Já não se pode reduzir à comunicação de conteúdos de conhecimento; deve ser a iniciação a todo um modo de vida. É preciso atender às possibilidades e necessidades do recém-chegado à fé, para saber como a pôr diante dele. Trata-se de o ajudar a aceder integralmente a uma realidade que requer a adesão de pessoa inteira (42).

Em segundo lugar, torna-se necessário verificar a autenticidade da decisão individual da fé. A comunidade crente in loco parece ser a instância mais apta a fazê-lo. Está bem colocada para confrontar as ambiguidades que a vida de fé pode apresentar numa situação histórica concreta. Essa comunidade deve ser capaz de combinar, de modo fecundo, a sensibilidade cultural local com a pertença à Igreja universal. Não é de excluir, no entanto, que a própria comunidade local esteja afectada por ambiguidades que procura clarificar naqueles que acedem à fé. Pode não estar habituada a discernir, de entre os comportamentos suscitados pela afirmação intensa da individualidade, aqueles que não são compatíveis com a vida de fé. De facto, o discernimento in loco de novas apropriações da fé cristã deve ser feito por alguém que está seguro da sua identidade e ao mesmo tempo aberto à novidade. É preciso que a comunidade crente esteja bem consciente das exigências objectivas da fé. Mas também é necessário que reconheça que o Espírito de Deus pode suscitar um percurso de acesso à fé a que não está habituada. Discernir a verdade da decisão da fé requer a sabedoria de ‘caminhar com’: há tempo para esperar pacientemente e tempo para avançar na clarificação do que é obscuro.

P. Domingos Terra, SJ

Professor na Faculdade de Teologia da UCP

in Revista Didaskalia, fascículo 1 (2006).

Publicado em 27/08/2007

 

 

(1) Joseph Doré, «La responsabilité et les tâches de la théologie», in Joseph Doré (dir.), Introduction à l’étude de la théologie, t. II, Paris, Desclée, 1992, pp. 363-364.

(2) Étienne Grieu, Transmettre la Parole. Des jeunes au carrefour du vivre ensemble et de la foi, Paris, Les Éditions de l’Atelier / Les Éditions Ouvrières, col. «Les jeunes et Dieu», 1998, pp. 128-129.

(3) Gilles Lipovetsky, L’ère du vide. Essais sur l’individualisme contemporain, Gallimard, 1993, p. 316.

(4) Marcel Gauchet, «Essai de psychologie contemporaine. I. Un nouvel âge de la personnalité», Le Débat 99 (1998), pp. 175-177.

(5) Yves Lambert, «Un regain religieux chez les jeunes d’Europe de l’Ouest et de l’Est», in Olivier Galland, Bernard Roudet (dir.), Les jeunes Européens et leurs valeurs. Europe occidentale, Europe centrale et orientale, Paris, La Découverte, col. «Recherches», 2005, p. 89.

(6) Jean-Paul Willaime, «Conclusion. Les religions et l’unification européenne», in Grace Davie, Danièle Hervieu-Léger (dir.), Identités religieuses en Europe, Paris, La Découverte, col. «Recherches», 1996, pp. 313-314.

(7) Karl Rahner, Curso fundamental sobre la fe. Introducción al concepto de cristianismo, trad. Raúl Gabás Pallás, Barcelona, Editorial Herder, 1979, p. 172.

(8) É a expressão usada na versão francesa para traduzir «geschieht». Karl Rahner, Traité fondamental de la foi. Introduction au concept du christianisme, trad. Gwendoline Jarczyk, Paris, Centurion, 1983, p. 163.

(9) Rahner, Curso fundamental, p. 147.

(10) Karl Rahner, «Sagrada Escritura y Tradición», Escritos de Teología, t. VI, Madrid, Taurus Ediciones, 1969, p. 122.

(11) Ibidem, pp. 122-124.

(12) Lipovetsky, op. cit., pp. 80, 106.

(13) Gauchet, op. cit., p. 177.

(14) Miguel Benasayag, Le mythe de l’individu, trad. Anne Weinfeld, Paris, La Découverte, 1998, p. 19.

(15) Gilles Lipovetsky, Le crépuscule du devoir. L’éthique indolore des nouveaux temps démocratiques, Paris, Gallimard, 1992, pp. 16-17.

(16) Gauchet, op. cit., pp. 172-173.

(17) Gilles Lipovetsky, L’empire de l’éphémère. La mode et son destin dans les sociétés modernes, Paris, Gallimard, 1987, p. 313.

(18) Lipovetsky, L’ère du vide, p. 323.

(19) Ibidem, p. 81.

(20) Jean Caron, «Vouloir ce que je veux», Christus 44 (1997), p. 11.

(21) Lipovetsky, L’empire de l’éphémère, pp. 216-217.

(22) Elisabeth Oberson, Denis Villepelet, «Gérer la décision dans un monde complexe», Christus 44 (1997), p. 23.

(23) Pierre Gisel, «Qu’est-ce que croire?», Recherches de Science Religieuse 77 (1989), p. 73.

(24) Ibidem, p. 89.

(25) Gilbert Adler, Gérard Vogeleisen, Un siècle de catéchèse en France : 1893-1980. Histoire – Déplacements – Enjeux, Paris, Éditions Beauchesne, col. «Théologie historique», 1981, pp. 281-282.

(26) Ibidem, p. 385.

(27) Grieu, op. cit., p. 112.

(28) Conférence des Évêques de France, Proposer la foi dans la société actuelle II. Vers une nouvelle étape, Paris, Les Éditions du Cerf, 1996, p. 42.

(29) Denis Villepelet, «Catéchèse et crise de la transmission», in Henri-Jérôme Gagey, Denis Villepelet (dir.), Sur la proposition de la foi, Paris, Les Éditions de l’Atelier / Les Éditions Ouvrières, 1999, p. 86.

(30) Grieu, op. cit., pp. 127-129.

(31) Ibidem, p. 135.

(32) Hans Küng, Être chrétien, trad. Henri Rochais e André Metzger, Paris, Éditions du Seuil, 1978, p. 178.

(33) Bertrand Révillion, Croire ou ne pas croire. Vingt-huit personnalités face à Dieu, Paris, Bayard Éditions / Centurion, 1998, p. 74.

(34) Ibidem, p. 73.

(35) Hubert Herbreteau, Comprendre les cultures des jeunes. Du rap au journal intime, Paris, Les Éditions de l’Atelier / Les Éditions Ouvrières, col. «Les jeunes et Dieu», 1997, p. 188.

(36) Hans Kessler, «L’accomplissement vécu dans l’instant présent et pourtant douloureusement absent au rendez-vous? Orientation vers l’expérience vécue et expérience du salut», Concilium 282 (1999), p. 127.

(37) Ibidem.

(38) Henri Bourgeois, «Pratiques et originalité de la foi chrétienne», in Joseph Doré (dir.), Introduction à l’étude de la théologie, t. II, Paris, Desclée, 1992, p. 87.

(39) Karl Rahner, Est-il possible aujourd’hui de croire ? Dialogue avec les hommes de notre temps, trad. Charles Muller, Paris, Mame, 1966, p. 31.

(40) Révillion, op. cit., p. 76.

(41) Jacques Gagey, «Perspectives», in Jeunes et Évêques aux Cathéchèses des J.M.J. 1997, Surfeurs de Dieu, Versailles, Éditions Saint-Paul, 1998, p. 164.

(42) Marcel Villers, «D’une catéchèse de transmission à une catéchèse d’initiation», Lumen Vitae 56 (2001), p. 93.

 

 

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