Projecto cultural
Pós-modernidade

O anúncio de Jesus Cristo hoje

Abordar o “hoje” do anúncio constitui, possivelmen­te, a tarefa mais difícil. Não por principio, mas pelo simples facto - em si casual - de a cultura actual estar marcada por uma complexidade inabarcável - talvez semelhante ou superior à complexidade da cultura helénica, em que se propagou o cristianismo primitivo. Por imperativo de honestidade intelectual, devo admitir, pois, que me limitarei a um breve esboço superficial, do contexto em que o anúncio de Jesus Cristo torna presente, neste fim de milénio, a revelação redentora do Deus trino. Trata-se, grosso modo, do complexo fenómeno a que se costuma chamar pós-modernidade e que passo a referir, em alguns pontos centrais:

1.
A pós-modernidade está marcada, em primeiro lugar, pela tomada de consciência da complexidade das culturas plurais. A uma visão monolítica - normalmente eurocêntrica - do mundo, segue-se uma visão pluralista. Mas porque essa visão não pode pretender, sem se contradizer, ser única e absoluta, segue-se-lhe a pluralidade de visões que desaguam numa complexidade inabarcável. Daí a dificuldade - senão a impossibilidade - de referências universais, para um anúncio que se queira encarnado. Possíveis são apenas inculturações parciais, com valor tanto mais universal, quanto mais concretas se tomarem. As consequências de semelhante pluralismo são ambíguas, mas não necessariamente negativas, mesmo para o anúncio cristão, podendo servir de forte incentivo à criatividade e à tomada de consciência da radical historicidade do mesmo - para além do facto de tal pluralismo poder fornecer uma hermenêutica adequada à compreensão da pluralidade no próprio Deus.

2.
Aliada a este pluralismo complexo encontra-se, a um nível mais filosófico (mas com fortes incidências práticas) uma profunda desconfiança no poder absoluto da razão. Se tal confiança constitui uma das características centrais da modernidade, terminou o encantamento, e isso devido aos próprios efeitos da razão pretensamente absoluta. De facto, aquela que se tinha arvorado em defensora da liberdade - mesmo matando Deus - acabou por ser, em muitos casos, destruidora da mesma liberdade, transformando-se em ideologia. Também este aspecto do pós-modernismo é ambíguo, mas tem que se lhe reconhecer uma componente altamente positiva. A dita desconfiança conferiu-nos uma outra consciência dos nossos limites e, simultaneamente, chamou-nos a atenção para dimensões da realidade que a razão absoluta parecia ter dissolvido: alertou-nos para o valor do outro e do diferente, sobretudo do pobre e do desprotegido; colocou, no seu centro, o valor do concreto - a vida concreta e do outro concreto - que a razão parecia ter facilmente esquecido. E isso constitui importante desafio e oportunidade para um anúncio actual que se pretenda encarnado e não algo de abstractamente racional.

3.
Contudo, esta radical visita da diferença e do concreto pode ter - e vem tendo - a nociva consequência de uma diluição do sentido da realidade, que se perde em meros sentidos regionais, plurais, mas sem qualquer tipo de referência a algo de absoluto - nem na questão da verdade, nem na ética. E a crítica da razão resulta numa defesa do nihilismo como forma viável - talvez a única - de existência e de pensamento. Já não se sente, como o faziam ainda os existencialistas, o absurdo da realidade como tragédia, ou mesmo como drama, que impulsionava a busca do seu sentido último; resta-nos a comédia, que parece ver no pró­prio absurdo o sentido possível, deleitando-se com isso. Resta-nos fruir os sentidos parciais e limitados de um mundo à deriva. Consequência prática de tal atitude é a constatável desorientação fruidora dos nossos dias, em que só conta o agradável, veiculado por uma cultura consumista, que tudo nos coloca à disposição, depois de nos ter criado necessidades aparentemente vitais. Interessa o hipermercado mais abastecido e mais barato; a nova marca automóvel; qual o clube de futebol que ganhou; qual o desfecho da novela; qual a anedota com mais piada. Resumindo, com Lyotard, o padroeiro da pós-modernidade: “brinquemos... e deixem-nos brincar em paz”.

A esta crise do sentido parece juntar-se, pelo menos no nosso caso português, uma crise especial de identidade, que se pauta por uma perda das referências habituais, provocada, em parte, pela ambígua integração europeia, baseada em parâmetros meramente económicos e burocráticos, que nada têm a ver com as nossas referências identificantes, sobretudo com o infinito do nosso mar e com o alcance da nossa saudade. De forma profundamente poética, tal situação é abordada por um romance de João de Melo, com o sintomático titulo O Homem suspenso, em que chama a Portugal o “pais do princípio do caminho para uma Europa que não existe. Onde todos começamos a não ser, a deixar de existir”. A crise universal de sentido e de referências, que pesa sobre este fim de milénio, parece adquirir, no nosso recanto luso, contornos específicos, que nos trazem ainda mais perdidos. E é precisamente neste contexto temporal e espacial que terá que encarnar o anúncio universal de Jesus Cristo, hoje. A sua universalização não se dá pelo corte das amarras que nos ligam a uma terra e a uma cultura concretas, mas no aprofundamento dessas amarras. O infinito do mar, a profundidade da terra e o alcance transcendente da saudade, que tão profundamente nos marcam, só os sentiremos, se neles mergulharmos ou se deixarmos que eles banhem o nosso intimo mais intimo - e não se adoptarmos uma identidade difusa e comercialista, que velozmente nos vai ocupando.

Em termos mais especificamente teológicos, vemos delinear-se, no hoje da pós-modernidade à deriva, a necessária referência do anúncio ao fundamento que o transcende e lhe confere sentido. Tal referência dá-se, por um lado, enquanto memória actualizante de um acontecimento concreto da nossa história; por outro, enquanto orientação escatológica de cada anúncio concreto, Só na constante tensão entre memória e escatologia é que se pode dizer que o anúncio cristão “transforma, conduz a história e lhe dá sentido”.

Dessa forma, ele constitui uma proposta à actual desorientação nihilista, Mas não uma proposta abstracta, a modos de uma metafísica mal concebida, postuladora de ilusões.

O anúncio cristão só poderá conferir sentido à nossa história, se a levar a sério, tornando-se profundamente histórico.

Capa do livro "O Ecesso do Dom"

Daí a sua necessária referência às mediações, impres­cindivelmente históricas. Ele próprio constitui mediação histórica do Deus que, ao mesmo tempo, transcende a História e lhe é mais intimo que ela própria. E é-o não apenas no conteúdo que transcende esse anúncio e que lhe é dado, como tarefa, mas também - e não de modo secundário - na própria forma que o constitui. E precisamente a forma concreta que assume - uma pregação bem ou mal conseguida, uma imagem icónica ou idolátrica, uma obra de arte ou um produto de mau gosto, um rito autêntico ou uma fantochada, uma vida em verdade ou um falso testemunho, a presença ou a ausência de comunhão eclesial - é essa forma concreta que irá marcar o seu alcance mediador, sem que tal mediação seja mero produto seu. Mais uma vez nos encontramos perante a dialéctica tensão entre fundamento e mediação, cuja anulação implicaria uma falsificação de ambos.

Os resultados das considerações aqui apresentadas po­derão, não tanto servir de medida para uma crítica ou valoração do anúncio tradicional, mas sim de qualquer tipo de anúncio em qualquer espaço e em qualquer tempo. Alguns aspectos dessa crítica já foram enunciados. Limitar-me-ei, aqui, a título de conclusão, a salientar os dois que me parecem essenciais - e que constituem, no fundo, duas faces da mesma moeda.

1.
Um anúncio que esqueça a sua referência ao fundamento -  de si e da realidade global -, isto é, que esqueça a sua referência constante a uma alteridade transcendente, que o origina - enquanto condição mesma da sua possibilidade, enquanto conteúdo constante do seu anunciar e en­quanto meta escatológica, para que se orienta - um anúncio que disso se esqueça é um anúncio vazio, oco, mesmo no brilhantismo da sua retórica; será, quando muito, um anúncio que vai ao encontro dos desejos contemporâneos de fruição estética ou de informação vasta, sob eliminação da questão do fundamento e da verdade da realidade e de nós próprios. Mas vai-lhe ao encontro de forma demagógica ou, no melhor dos casos, confirmante. No fundo, contudo, não fornece qualquer resposta - ou pista de resposta, mesmo crítica - ao vazio levantado pela eliminação actual do sentido, limitando-se a prolongá-lo ou mesmo a agravá-lo e tornando-se, por isso mesmo, supérfluo, se não prejudicial.

2.
Por outro lado, um anúncio que esqueça ou descure a forma actual em que se dá - assim como os seus destinatários ou mesmo os seus actores-mediadores - torna-se em algo de abstracto, intelectualisticamente perdido na transcendência de um fundamento transcendental, sem qualquer ligação à realidade categorial histórica. E a crise actual do sentido e do fundamento poderá ser, talvez, precisamente uma “crise de tradução do sentido em forma comunicativa”. Ou então, o anúncio na sua azáfama de se centrar no fundamento e no fundamental, definha num fundamentalismo puritano, não menos abstracto e distante da realidade do tempo e do espaço em que se dá, do que a tentação intelectualista. As mediações são descuradas ou combatidas, varrendo-se, com o lixo, o próprio chão. Frente a estas reduções destrutivas, deveriam salientar-se, entre as múltiplas mediações do anúncio actual, as retóricas não só de uma palavra pertinente e cuidada, ou de uma imagem eloquente e libertadora, mas sobretudo de um testemunho feito de serviço e solidariedade, frente a uma sociedade profundamente egoísta e tecida com as malhas desumanizantes de uma concorrência desenfreada.

Para além disso, uma verdadeira orientação escatológica do anúncio cristão implica a sua dimensão universal. E esta realiza-se apenas numa inserção profundamente histórica e concreta, para além mesmo dos limites de um grupo, ou até de uma Igreja. Por isso, um anúncio que leve a sério a sua universalidade, terá que ser mais do que mero serviço eclesial interno, abrindo-se à concretude das culturas que constituem o complexo tecido de cada tempo e cada espaço. No caso do nosso início de milénio, terá que se fazer carne da carne das culturas plurais em que habitamos. Só assim, universal, se poderá abrir à dimensão transcendente, fundante de toda a realidade e de todo o anúncio. Caso contrário, fecha-se em regionalismos penúltimos, dissolvendo-se na rede dos sentidos parciais e dos interes­ses grupais - tornando-se em demagogia comercialista e publicitária. E o anúncio de Jesus Cristo deixaria, assim, de ser mediador - para o nosso mundo - do seu redentor único, o mesmo Jesus Cristo, no qual nos é dado a experimentar o fundamento do que somos e do que seremos.

Esta tensão entre fundamentação transcendente e necessária mediação histórico-temporal será, também, importante para uma posição frente à realidade passada e presente do anúncio cristão. Se o anúncio, como mediação, não é absoluto, então aprenderemos a relativizar o seu valor e assumir com maior descontracção os seus necessários erros e limites. As mediações são humanas e temporais, como tal, limitadas, Não será possível, portanto, falar de uma evolução, rumo a um anúncio plenamente perfeito - nem na forma, nem no conteúdo. Todos os tempos conhecem os seus erros e as suas virtudes. Importante será, precisamente, reconhecê-los a tempo.

Mas as formas e os conteúdos do anúncio, precisamente no seu carácter mutável e temporal, são - e este é o outro reverso da medalha - mediações imprescindíveis e essenciais. Isso levar-nos-á a, na sua relatividade própria, conceder o máximo de atenção possível às formas como realizamos o mesmo anúncio. Se a libertação, que tornamos actual no anúncio, não é nossa, mas nos é dada, ela é-nos dada como tarefa a cumprir, para o nosso mundo concreto, dentro de todas as nossas possibilidades: e isto entre a máxima descontracção e a máxima responsabilidade, que são próprias de qualquer instrumento imprescindível. Em última instância, é o Espírito que age na nossa acção.

João Manuel Duque

in O Excesso do Dom

22.02.2008

 

 

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Capa do livro "O Excesso do Dom"


O Excesso do Dom

Autor
João Manuel Duque

Editora
Alcalá

Páginas
370

Data
2004

Pedidos e informações
alcala_editora@hotmail.com

ISBN
972-8673-18-3

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