Projecto cultural
Fé e Cultura

Ao encontro de Cristo no coração das nossas culturas

A cultura está em relação com o conhecimento e os valores, incarnando a tentativa de compreender o mundo e a existência do homem, não apenas de maneira teórica, mas também na sua orientação para as questões fundamentais. Como ser homem, como assumir o seu lugar preciso no mundo, como viver para se realizar na procura da felicidade?

A cultura é portanto um lugar privilegiado de diálogo sobre as grandes perguntas que dizem respeito ao homem e ao mundo, porquanto elas contêm em germe a questão fundamental de Deus. De facto, ninguém seria capaz de compreender o homem ou de viver enquanto pessoa se a questão de Deus permanecesse sem resposta. Todas as grandes culturas, sem excepção, compreendem o homem na sua relação com o divino.

Nunca o repetiremos em demasia: a cultura é o lugar por excelência da permuta que se torna colóquio, do diálogo que se faz conversação, porque a cultura implica ir para além das coisas visíveis para chegar às causas reais. No seu núcleo mais profundo, a cultura é abertura ao divino. A pessoa pode assim transcender-se na cultura que assume as suas experiências pessoais, conferindo-lhe continuidade e desenvolvimento. Com efeito, lembrava-nos o Papa João Paulo II, “existe uma dimensão fundamental, capaz de consolidar ou de desorientar nos seus fundamentos os sistemas que estruturam o conjunto da humanidade, e de libertar a existência humana, individual e colectiva, das ameaças que pesam sobre elas. Esta dimensão fundamental é o homem na sua integralidade” (Carta autógrafa da criação do Conselho Pontifício da Cultura, 20.05.1982). Não somente a mensagem evangélica é dirigida ao homem, mas ela é uma grande mensagem messiânica sobre o homem: é a revelação ao homem da verdade total sobre ele mesmo e sobre a sua vocação em Cristo.

A fé, que figura entre os elementos constitutivos das culturas, assume uma função estruturante no sentido em que ela modela verdadeiramente os sistemas de valores, a organização social, as maneiras de ver e de viver e a multiplicidade de expressões intelectuais e estéticas. Em resumo, numa complexa interacção com os outros elementos estruturantes, a fé joga um papel fundamental, tanto para o sistema dos valores como para as normas do comportamento pessoal e social.

A abertura íntima do coração a Deus constitui o estrato mais profundo das culturas vividas pelos povos da Europa e da África, da Ásia e da América, mesmo se o relativismo e a indiferença, a secularização e o laicismo tendem a impor-se um pouco por todo o lado. Com efeito, a dimensão mística, o sagrado, modela fundamentalmente a sua visão do mundo, o seu sentido de vida, a sua relação com os mortos, com o passado e o futuro, os seus valores de referência, e mesmo, ainda que indirectamente, as suas estruturas sociais tradicionais.

É um facto que a religião se concentra em todo o lado e, antes de tudo, nos principais momentos da vida social: o nascimento, a socialização da infância, a puberdade, o casamento, as relações com os outros, a morte. Nas religiões tradicionais da África ou da Ásia, a religião é o centro de tudo, o coração da vida, é o essencial que dá sentido, é a realidade mais autêntica. Sob este aspecto, as sociedades tradicionais estão mais profundamente enraizadas do que as sociedades ditas avançadas.

O diálogo entre a fé e a cultura situa-se a este nível, dado que a fé oferece a uma comunidade humana, sempre tomada pela angústia, pelas forças de desagregação, pelo trágico da vida, um sentimento real de coerência e de realidade consistente. Os conhecimentos empíricos, só por si próprios, não saberiam unir de maneira duradoura uma comunidade humana. Assim, para iluminar as realidades últimas, os homens recorrem sempre às expressões simbólicas, detentoras de sentido e reveladoras de uma dimensão imaterial.

A fé cristã é assim chamada a marcar cada vez mais profundamente a cultura e a vida dos cristãos, não somente porque a religião é em si uma categoria universal do ser humano, mas sobretudo porque a fé cristã tem como característica específica a capacidade de purificar todas as culturas, fecundá-las e levá-las a um novo florescimento.

A fé cria uma cultura quando diz ao homem quem é ele e como deve começar a ser pessoa. A própria palavra “fé” não é uma abstracção, porquanto se enraíza na história do “povo eleito”, onde o próprio Deus se incarnou culturalmente, segundo a expressão do Papa João Paulo II na encíclica Redemptor hominis. E o mesmo Papa escreve na encíclica Redemptoris missio: A inculturação “significa a íntima transformação dos valores culturais autênticos, pela sua integração no cristianismo, e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas” (n.º 52). Deste modo, o novo Povo de Deus existe e vive nas diferentes culturas que, tornando-se cristãs, não cessam de ser originais: o cristão não deixa de ser costa-marfinense ou japonês, indiano ou escandinavo, francês ou americano. Do ponto de vista do encontro das culturas, a originalidade do cristianismo consiste no facto de que a fé em Cristo não exclui a pertença a uma cultura humana, como acontece no caso das religiões não cristãs. Ao acolher Cristo, o homem assume a sua própria cultura com aquela que foi criada pela sua fé: ambas contribuem para modelar uma identidade nova, rica da fé cristã e do património cultural de origem.

A acção recíproca da fé e da cultura tendem para uma síntese, que o Papa João Paulo II ilustra nestes termos: “A síntese entre cultura e fé é não somente uma exigência da cultura, mas também uma exigência da fé. Uma fé que não se torna cultura é uma fé que não é plenamente acolhida, não inteiramente pensada, não fielmente vivida” (Carta autógrafa da criação do Conselho Pontifício da Cultura, 20.05.1982). Assim, em cada dia o homem descobre a presença da transcendência que purifica e fecunda o património cultural em que ele nasceu, abrindo-o à universalidade que ultrapassa os limites de uma etnia ou de uma determinada cultura, para o fazer entrar no novo Povo de Deus que abraça todos os povos com as suas culturas. A partir daqui a fé enriquece-se com as diferentes culturas e, ao mesmo tempo, transforma as culturas, fecundando-as. O património cultural e religioso, possuído em comum, oferece-se para ser recebido e vivo na história pessoal e comunitária de todos os homens e de todas as mulheres chamadas a crer em Cristo. A fé não vive artificialmente nas culturas. Se assim fosse, a cultura permaneceria sempre exterior à fé e correria o risco de ser rejeitada como um elemento exterior e até estranho. Por outro lado a fé e a Igreja não se reduzem a simples sujeitos culturais, dado que a sua essência específica pertence à ordem do sobrenatural.

É importante sublinhar: a influência recíproca das culturas e a interacção entre as culturas e a fé cristã são dados de facto. Não se trata de uma cultura monolítica, visto que toda a cultura é uma estrutura dinâmica que alcança a maturidade através de processos contínuos de adaptação entre as estruturas igualmente dinâmicas que são as outras culturas. É a consistência do arquétipo central, que dá consistência a cada cultura, que permite a adaptação recíproca das culturas, até as fundir por vezes em conjunto para criar uma nova cultura. Tal é o caso de numerosos povos latino-americanos.

A evolução das culturas, para ser fecunda, precisa de ser guiada por um movimento interior: trata-se de respeitar todas as culturas e o seu desenvolvimento positivo, de tal maneira que os erros e as aberrações sejam ultrapassados pelo reforço dos valores já presentes nelas. Os valores são, com efeito, essenciais às culturas: não poderia haver uma cultura sem um sistema de valores simultaneamente objectivos e subjectivos. Subjectivos na medida em que elas se enraízam nos arquétipos culturais; objectivos na medida em que elas se referem aos elementos transcendentais do ser – o bem, o verdadeiro e o belo.

Bernard Ardura
Secretário do Conselho Pontifício da Cultura

Conferência aos Religiosos Francófonos de Roma, 05.03.2007

© SNPC: tradução | 11.03.2008

 

 

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