Projecto cultural
Bento XVI

Homilia na abertura do Ano Paulino

Estamos reunidos diante do túmulo de São Paulo, que nasceu há dois mil anos em Tarso de Cilícia, na actual Turquia. Quem era este Paulo? No templo de Jerusalém, frente à multidão agitada que queria matá-lo, ele apresenta-se com estas palavras: “Sou judeu, nascido em Tarso da Cilícia, mas fui educado nesta cidade, instruído aos pés de Gamaliel, em todo o rigor da Lei dos nossos pais e cheio de zelo pelas coisas de Deus...” (Act 22,3). No final do seu caminho, ele dirá de si: "Eu fui constituído arauto e apóstolo, mestre dos povos, apóstolo e pregador de Jesus Cristo"; assim ele caracteriza a si mesmo em uma visão retrospectiva do percurso de sua vida. Mas com isso, o olhar não se dirige ao passado. "Mestre dos povos" – esta palavra abre-se para o futuro, para todos os povos e todas as gerações. Paulo não é para nós uma figura do passado, que recordamos com veneração. Ele é também nosso mestre, apóstolo e anunciador de Jesus Cristo também para nós.

Portanto, estamos reunidos não para reflectir sobre uma história passada, irrevogavelmente superada. Paulo quer falar connosco hoje. Por isso quis convocar este especial "Ano Paulino"; para escutá-lo e aprender agora dele, como nosso mestre, na fé e na verdade, na qual estão radicadas as razões da unidade entre os discípulos de Cristo. Nesta perspectiva eu quis acender, para este segundo milénio do nascimento do Apóstolo, uma especial «Chama Paulina», que permanecerá acesa durante todo o ano, num círio especial colocado no pórtico da basílica [de São Paulo Extramuros]. Para solenizar este acontecimento, inaugurei também a chamada «Porta Paulina», através da qual entrei na basílica acompanhado pelo patriarca de Constantinopla, o cardeal arcipreste e por outras autoridades religiosas.

É para mim motivo de uma íntima alegria que a abertura do Ano Paulino assuma um particular carácter ecuménico pela presença de numerosos delegados e representantes de outras igrejas e comunidades eclesiais, que acolho com o coração aberto. Saúdo em primeiro lugar Sua Santidade o Patriarca Bartolomeu I e os membros da delegação que o acompanha, assim como o grande grupo de leigos de várias partes do mundo que vieram a Roma para viver com ele e com todos nós estes momentos de oração e de reflexão. Saúdo os Delegados Fraternos das Igrejas que têm um vínculo particular com o apóstolo Paulo – Jerusalém, Antíoquia, Chipre, Grécia – e que formam o ambiente geográfico da vida do Apóstolo antes da sua chegada a Roma. Saúdo cordialmente os Irmãos das diversas Igrejas e Comunidades eclesiais do Oriente e do Ocidente, assim como todos vós que quisestes tomar parte neste solene início do “Ano” dedicado ao Apóstolo dos Povos.

Estamos, então, reunidos para nos interrogarmos sobre o grande Apóstolo dos Povos. Nós não perguntamos somente "Quem era Paulo?" Nós perguntamos sobretudo: "Quem é Paulo? O que é que ele me diz?" Nesta hora do início do Ano Paulino que estamos a inaugurar, quero escolher do rico testemunho do Novo Testamento três textos nos quais aparece a sua fisionomia interior, o específico de seu carácter. Na Carta aos Gálatas, ele deu-nos uma profissão de fé muito pessoal, na qual abre o seu coração frente aos leitores de todos os tempos e revela qual é a fonte mais íntima de sua vida: “[Vivo] na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por mim” (Gal 2,20). Tudo aquilo que Paulo faz parte deste centro. A sua fé é a experiência de ser amado por Jesus Cristo de uma forma totalmente pessoal; é a consciência do facto que Cristo enfrentou a morte não por um alguém anónimo, mas por amor dele – de Paulo – e que, como Ressuscitado, o continua a amar, que Cristo se deu por ele. A sua fé é o ser alcançado pelo amor de Jesus Cristo, um amor que o desconcerta até o mais íntimo e o transforma. A sua fé não é uma teoria, uma opinião sobre Deus ou sobre o mundo. A sua fé é o impacto do amor de Deus sobre o seu coração. E assim, esta mesma fé é amor por Jesus Cristo.

Paulo é apresentado por muitas pessoas como um homem combativo que sabe usar a espada da palavra. De facto, sobre o seu caminho de apóstolo não faltaram as disputas. Ele não buscou uma harmonia superficial. Na sua primeira carta, dirigida aos Tessalonicenses, escreve: “Sentimo-nos encorajados... a anunciar-vos o Evangelho de Deus no meio de grande luta. Por isso, nunca nos apresentámos com palavras de adulação, como sabeis” (1Tess 2, 2.5). A verdade era para ele grande demais para estar disposto a sacrificá-la em vista de um êxito exterior. A verdade que havia experimentado no encontro com o Ressuscitado fazia com que a luta, a perseguição e o sofrimento valessem a pena para ele. Mas aquilo que mais profundamente o motivava era ser amado por Jesus Cristo e o desejo de transmitir este amor aos outros. Paulo era um homem tomado por um grande amor, e todas as suas obras e sofrimentos só se explicam a partir deste núcleo. O conceito fundador do seu anúncio compreende-se unicamente com base nesse amor. Tomemos somente uma das suas palavras-chaves: a liberdade. A experiência de ser amado até ao fim por Cristo abriu-lhe os olhos para a verdade e para o caminho da existência humana – numa experiência que tudo envolvia. Paulo era livre como homem amado de Deus, que, por causa de Deus, tornou-se capaz de o amar. Este amor é agora a «lei» da sua vida e justamente assim é a liberdade da sua vida. Ele fala e actua movido pela responsabilidade do amor; ele é livre, e dado que é alguém que ama, vive totalmente na responsabilidade desse amor e não toma a liberdade como pretexto para o arbítrio e o egoísmo. No mesmo espírito, Agostinho formulou a frase depois famosa: “Dilige et quod vis fac" (Tract. in 1Jo 7,7-8) – ama e faz o que queres. Quem ama a Cristo como Paulo amou, pode verdadeiramente fazer o que quer, porque o seu amor está unido à vontade de Cristo, e, por isso, à vontade de Deus; porque a sua vontade está ancorada na verdade e porque a sua vontade não é mais simplesmente uma vontade sua, arbitrio autónomo, mas está integrada na liberdade de Deus e dele recebe o caminho a ser percorrido.

Na busca da fisionomia interior de São Paulo, quero, em segundo lugar, recordar a palavra que Cristo ressuscitado lhe dirige no caminho de Damasco. Antes o Senhor pergunta-lhe: “Saulo, Saulo, por que me persegues?” À interrogação: “Quem és tu, Senhor?”, é-lhe dada a resposta: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues”. Perseguindo a Igreja, Paulo persegue o próprio Jesus. “Tu persegues-me”. Jesus identifica-se com a Igreja como um todo. Nesta exclamação do Ressuscitado, que transformou a vida de Saulo, está contida toda a doutrina sobre a Igreja como Corpo de Cristo. Cristo não se retirou para o céu, deixando sobre a terra uma hoste de seguidores que levam adiante “a sua causa”. A Igreja não é uma associação que quer promover uma determinada causa. Nela não se trata de uma causa. Nela trata-se da pessoa de Jesus Cristo, que também como Ressuscitado permaneceu “carne”. Ele tem “carne e ossos”, como afirma o Ressuscitado em Lucas (24,39), diante dos discípulos que o haviam tomado por um fantasma. Ele tem um corpo. Ele está pessoalmente presente na Igreja, "Cabeça e Corpo" formam um só, dirá Agostinho. “Não sabeis que os vossos corpos são membros de Cristo?”, escreve Paulo aos Coríntios (1Cor 6, 15). E acrescenta: como, segundo o Livro do Génesis, o homem e a mulher se tornarão uma só carne, assim Cristo com os seus se tornará um só espírito, no mundo novo da ressurreição (cf. 1Cor 6,16ss). Em tudo isto transparece o mistério eucarístico, no qual Cristo oferece continuamente o seu Corpo e faz de nós o seu Corpo: “O pão que partimos não é comunhão com o corpo de Cristo? Uma vez que há um único pão, nós, embora muitos, somos um só corpo, porque todos participamos desse único pão” (1Cor 10,16s). Com estas palavras dirige-se a nós, nesta hora, não só Paulo, mas o próprio Senhor: Como haveis podido lacerar meu Corpo? Diante do rosto de Cristo, esta palavra converte-se ao mesmo tempo num apelo urgente: Afastai-vos de toda a divisão. Fazei com que hoje se torne novamente realidade: Há um único pão, pelo que nós, embora sendo muitos, somos um só corpo. Para Paulo, a palavra " Igreja" como Corpo de Cristo não é uma comparação qualquer. Vai muito mais além de uma comparação. “Por que me persegues?” Continuamente, Cristo atrai-nos para o seu Corpo, edifica o seu Corpo a partir do centro eucarístico, que para Paulo é o centro da existência cristã, em virtude do qual todos, como também cada um, podemos experimentar de maneira totalmente pessoal: Ele amou-me e entregou-se por mim.

Quero concluir com uma palavra tardia de São Paulo, uma exortação a Timóteo desde a prisão, frente à morte. “Compartilha o meu sofrimento pelo Evangelho”, diz o Apóstolo ao seu discípulo. Esta palavra, que está no final dos caminhos percorridos pelo apóstolo como um testamento, leva-nos para trás, ao começo da sua missão. Enquanto Paulo se encontrava cego na sua habitação em Damasco, depois do encontro com o Ressuscitado, Ananias recebe a missão de ir ter com o temido perseguidor e impor-lhe as mãos, a fim de recuperar a vista. À objecção de Ananias que este Saulo era um perseguidor perigoso dos cristãos, é dada a resposta: Este homem deve levar o meu nome aos povos e aos reis. “Eu mesmo lhe hei-de mostrar quanto ele tem de sofrer pelo meu nome” (Act 9, 15s). A missão do anúncio e o chamamento ao sofrimento por Cristo estão inseparavelmente unidos. O chamamento a ser o mestre dos povos é, simultânea e intrinsecamente, um chamamento ao sofrimento na comunhão com Cristo, que nos redimiu mediante a sua Paixão. Num mundo em que a mentira é muito forte, a verdade paga-se com o sofrimento. Quem quer evitar o sofrimento, afastá-lo de si, fica longe da própria vida e da sua grandeza; não pode ser servidor da verdade e, assim, servidor da fé. Não há amor sem sofrimento, sem o sofrimento da renúncia de si mesmo, da transformação e purificação do eu pela verdadeira liberdade. Onde não há nada que valha que se sofra por isso, também a própria vida perde o seu valor. A Eucaristia – o centro de nosso ser cristão – funda-se no sacrifício de Jesus por nós, nasceu do sofrimento do amor que na Cruz encontrou o seu auge. Nós vivemos desse amor que dá. Isso concede-nos a coragem e a força de sofrer com Cristo e por Ele neste mundo, sabendo que deste modo a nossa vida se torna grande, madura e verdadeira. À luz de todas as cartas de São Paulo, vemos como no seu caminho de mestre dos povos se cumpriu a profecia feita a Ananias na hora do chamamento: “Eu mesmo lhe hei-de mostrar quanto ele tem de sofrer pelo meu nome”. O seu sofrimento torna-o credível como mestre de verdade, que não busca o proveito próprio, a glória, o prazer pessoal, mas empenha-se por Aquele que nos amou e se entregou por todos nós.

Nesta hora damos graças ao Senhor porque chamou Paulo, tornando-o luz dos povos e mestre de todos nós, e pedimos-lhe: Dá-nos também hoje testemunhos da ressurreição, arrebatados pelo teu amor e capazes de levar a luz do Evangelho no nosso tempo. São Paulo, roga por nós! Amen.

Bento XVI
Homilia na celebração das Primeiras Vésperas da Solenidade de S. Pedro e S. Paulo, por ocasião da abertura do Ano Paulino
Roma, Basílica de S. Paulo Extramuros, 28.06.2008

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02.07.2008

 

 

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