Catolicismo, sempre de novo em Portugal
“Ser português equivale a ser religioso, e mais concretamente católico: é assim que pensam 68,5 por cento dos cidadãos…”. (Público, 10.06.2008, p. 6)
1.
Duzentos anos depois das Invasões Francesas (1807-1811), quase um século depois da implantação da República (1910) e no novo quadro da União Europeia, é ocasião propícia e inevitável para nos perguntarmos sobre a realidade nacional, culturalmente falando, precisamente enquanto “Portugal”.
Esta mesma palavra que nos nacionaliza tem a sua semântica, não suscitando hoje e exactamente a mesma ideia e sentimento que traria há cinquenta, cem ou duzentos e mais anos. O âmbito geográfico alterou-se, do pequeno rincão nortenho aos “reis de Portugal e dos Algarves, da aquém e além-mar em África”, do “Portugal do Minho a Timor” ao Portugal da União Europeia…
- O que “sobra” então, que nos identifique com os portugueses de outras épocas? Quando o apurarmos, divisaremos o que é Portugal, essencialmente.
2.
Tomo como primeiro marco as Invasões Francesas, duzentos anos atrás. Creio ser importante tomá-las assim, qual começo abrupto da nossa contemporaneidade, uma vez que, directa ou indirectamente, nos incluíram nos acontecimentos europeus que a Revolução Francesa – também directa ou indirectamente - ocasionara.
Mesmo física e economicamente, mesmo social e culturalmente, o País que ficou foi outra coisa do que era. Quando se retomou com algum sossego, já foi no quadro político e mental do liberalismo.
Mas, em termos de identidade, as coisas não foram fáceis, como a longa querela entre liberais e legitimistas demonstrou. O que estava então em causa, portuguesmente falando, era o que voltou a estar em 1910, 1926, 1974 ou ainda hoje, reaparecendo espontaneamente em torno de assuntos tão díspares como o acordo ortográfico ou o Tratado de Lisboa: o que é ou será o “Portugal” a manter, ou a “regenerar”, ou a “progredir”.
Para os legitimistas, face à revolução liberal, século XIX adiante, teria de ser “o que sempre fora”, quer na política quer na religião com a sua dimensão pública. Para os liberais, tratava-se de “regenerar” o País, reencontrando uma “origem” onde retro-projectavam o que almejavam como futuro: as comunidades democráticas e autogeridas (concelhos), que teriam existido antes das “causas da nossa decadência”, alegadamente o absolutismo monárquico, a pressão religiosa e a dissipação ultramarina.
Pelo meio, entretanto, houve mediações entre os dois extremos, com católicos que eram também adeptos sinceros do regime constitucional e adiantaram propostas de renovação nacional, onde a seiva evangélica (presente nos “princípios de 89”: Liberdade – Igualdade – Fraternidade) e o contributo eclesial poderiam e deveriam contar.
Seiva e contributo também para o próprio entendimento das relações Igreja – Estado, em termos de “separação” e “inspiração”. É significativo que, desde meados de Oitocentos, um importante jornal católico e legitimista se chame “A Nação” e que, desde 1872 outro católico, mas constitucional, se intitule “A Palavra”: o primeiro identificava Portugal, governo e crença; o segundo abria a uma Palavra inspiradora que, essencialmente, não se identificava com nenhum, devendo inspirá-los a todos.
3.
Esse grupo de católicos, constitucionais e patriotas, manteve-se na 1ª República, ainda que esta acabasse por ser determinada por ideias e práticas políticas mais herdeiras do liberalismo radical e anti-católico, com fortes laivos positivistas à mistura.
No entanto, o regime republicano não era unívoco neste e noutros pontos essenciais do entendimento do País: logo em 1911 se patenteou que a República de Manuel de Arriaga não era a de Afonso Costa, por exemplo. Assim como, entre os católicos, as tensões do século XIX, distinguindo os que aceitavam e os que rejeitavam o Portugal liberal, de algum modo se prolongaram entre os que admitiam a secularidade do Estado e os que a repudiavam, propugnando ainda por uma monarquia confessional: assim, já nos anos vinte, a polémica entre António Lino Neto, deputado católico no parlamento republicano e Fernando de Sousa, jornalista católico e monárquico.
Com tais e outras diferenças, não chegámos a 1930 a querer o mesmo Portugal. Melhor, quase todos o quereríamos, mas não da mesma maneira. Isto, por mais que a 1ª República tivesse tomado com hino um poema dos tempos do “Ultimato”, que pretendia “levantar hoje de novo o esplendor de Portugal” (lema que, só por si, levaria esta digressão toda). Por mais que da “Revolução Nacional” pretendesse sair um “Estado Novo”…
Podemos falar duma contínua ambiguidade porque, se a essência (Portugal) permanecia, era mais como disposição e procura, sendo a respectiva assunção muitíssimo variada e prolixa. Não admira que Fernando Pessoa nos deixasse então uma “mensagem” em que Portugal se apresenta como “nevoeiro”.
- E o catolicismo? O catolicismo militante, da Acção Católica Portuguesa (1933 ss), abandonada e impedida a actividade política directa, cantava-se assim neste hino, ressoando até aos anos sessenta: “Abram alas terra em fora, por entre frémitos de luz / Deus nos chama. É nossa a hora / Alerta pela Cruz… Portugal rezando cante / Senhor, num rumo triunfal / Arraial, avante, avante / Vitória Portugal!”.
Ou seja, a empresa era religiosa, de salvação pela conversão. Com necessárias consequências sociais, pois “Contra o ódio, contra a guerra / Só vence a voz do amor”, como também cantava o mesmo hino. Mas era, ainda e sempre, de Portugal que se tratava, nação “fidelíssima” e pátria a resgatar.
4.
Significativamente, foi na sociedade e na religiosidade “popular” que o Catolicismo se reencontrou com a identidade portuguesa. E, também aqui, não univocamente, sobretudo depois da 2ª guerra mundial, quer dizer na nossa contemporaneidade mais contemporânea.
Porque o social levou ao político, como – por exemplo maior - na denúncia do corporativismo oficial e na requisição de espaço de intervenção para os católicos que não quisessem integrar o “partido único” do regime (Carta do Bispo do Porto a Salazar, 1958). E a religiosidade encontrou em Fátima, especialmente durante as guerras ultramarinas, uma grande coincidência com os dramas e as esperanças das famílias e da população em geral. Aliás, Fátima já assim nascera em 1917, na 1ª guerra mundial.
A actualidade volta a juntar catolicismo - particularmente Fátima – e Portugal. Por um lado, o lado de dentro, porque a renovada adesão às peregrinações traz à Cova da Iria, em toda a roda do ano, quantidades grandes e qualidades novas (na idade e no extracto social) de crentes e ex-descrentes. Inquéritos e sondagens evidenciam que, além de necessidades concretas, suas ou dos seus, muitos destes peregrinos demandam respostas e significados identitários e até “nacionais”, colectivos. Por outro lado, o lado de fora, Fátima é, para muitos portugueses espalhados pelo mundo o maior lugar de reencontro, religioso e português, a 13 de Agosto e não só.
D. Manuel Clemente
IV Jornadas da Pastoral da Cultura, 20.06.2008
© SNPC | 25.06.2008
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