As certezas e incertezas do mundo contemporâneo
A Igreja, na sua missão evangelizadora, confronta-se com uma sociedade com muitas características semelhantes àquela a que Paulo anunciou o Evangelho: as diversas sabedorias, a complexidade do fenómeno religioso, o hedonismo, a alteração dos valores. Todas estas componentes assentam em certezas vulneráveis, precárias, pouco profundas, que se transformam facilmente em incertezas. Claro que vou falar do nosso mundo e não do séc. I depois de Cristo.
As diversas sabedorias
Entendemos por sabedoria um quadro de interpretações da vida, no seu sentido, no exercício da liberdade, na fundamentação ética, na compreensão da vida e da morte, do sofrimento e da felicidade. Quando olhamos o mundo como um todo, ressalta à vista a variedade destas sabedorias, inspiradas em culturas e religiões diversas. Mas não nos iludamos: a globalização cultural é um dinamismo imparável, as sabedorias entrecruzam-se com o aspecto preocupante de as menos profundas serem as que mais influenciam as outras.
Começo por referir aquela que, no Ocidente, foi nascendo de sistemas filosóficos que valorizaram a autonomia do homem em relação a Deus e à religião, autonomia da razão na identificação da verdade, primado do indivíduo sobre a comunidade, idolatria da liberdade individual, concebida como capacidade e direito de cada indivíduo decidir da sua verdade, do sentido da sua vida, em última análise, do que é bem do que é mal. A vida humana é considerada como dependendo, apenas, do homem e da sua capacidade. O homem terá a felicidade que for capaz de construir. Deus deixou de ser um agente decisivo na realização da plenitude humana e interventor na história, afastando-se radicalmente da tradição judaico-cristã e tão bem expressa no Salmo 43: “Não foi a espada que lhes conquistou a terra, nem seu braço lhes alcançou a vitória. Mas sim a vossa direita e o vosso braço e a luz da vossa face, porque os amaste” ou a frase de Jesus, “sem Mim nada podeis fazer”. Deus passou a inútil e facilmente a inexistente. A forma mais preocupante de ateísmo é o daqueles que, mesmo aceitando que Deus existe, vivem como se Ele não existisse. Esta forma de “ateísmo prático” é mais frequente e mais preocupante que o ateísmo teórico, racionalmente estabelecido.
Claro que esta sabedoria é incapaz de dar respostas válidas nos momentos cruciais da existência: o sofrimento, a morte, a solidão, a inquietação interior. Mas na normalidade da vida humana transforma-se numa barreira para o acolhimento da mensagem cristã; esta sabedoria profana e horizontal, limitada ao horizonte da vida terrena, incapaz de transcendência e de vida eterna, atinge também muitos cristãos, que não encontram em Deus a companhia amorosa em todos os passos da Sua vida, o que alarga o horizonte da missão a multidões de cristãos baptizados, não crentes ou mal-crentes, que não vivem a vida segundo a sabedoria da Cruz. O Evangelho só é acolhido quando Cristo aparece como resposta de vida. Quem não se interroga e não deseja ir mais longe, nem sequer ouve a mensagem. O evangelizador tem de estar atento às buscas e inquietações do coração humano. O primeiro fruto do Evangelho é levar o homem a uma visão mais profunda de si mesmo, ensiná-lo a desejar.
Neste aspecto temos de estar conscientes que as sociedades inspiradas nesta sabedoria profana, aceitam a Igreja apenas pelos serviços que presta à sociedade, inserindo-a no esforço de melhoria da sociedade no horizonte deste mundo. A evangelização tem de ser, cada vez mais, um grito de transcendência e de esperança na vida eterna.
A complexidade do fenómeno religioso contemporâneo
É também nesse quadro que as sociedades democráticas se abriram ao respeito pelo fenómeno religioso, expresso nos quadros legais da liberdade de consciência, de que a liberdade religiosa é uma expressão maior. Mas, nesse quadro, corre-se o risco de considerar todas as religiões de igual valor, sem capacidade de discernimento do contributo específico de cada uma para a plena realização humana.
A globalização tende a universalizar todas as grandes religiões o que exigiria um estudo sério e continuado de religiões comparadas. Para os cristãos isto é muito importante, para descobrirem o carácter único do cristianismo, o que não porá em questão o respeito pelas outras religiões e pelos valores que têm em comum. Nesta fase da globalização, sentimos que no Ocidente, a par da experiência nova de convívio com crentes de outras confissões, começam a surgir sistemas de fascínio por outras religiões. Se as religiões se equivalem no seu sentido fundamental, que sentido tem a missão cristã, que nunca se pode confundir com proselitismo? Quando a própria teologia começou a equacionar o sentido salvífico de todas as religiões, porquê inquietá-los com a mensagem cristã? Quando o cristianismo é apenas mais uma religião, a missão evangelizadora perde a sua urgência. A Teologia das religiões tem de estabelecer a convergência de todas elas, pelo menos escatológica, com Jesus Cristo, salvador de todos os homens.
Para além da negação absoluta da liberdade religiosa na prática de algumas grandes religiões, assistimos a um outro fenómeno, no quadro da globalização, que acarreta novas dificuldades para a missão cristã. Dada a real e inegável relação entre religião e cultura, muitos países encontraram a sua identidade cultural na valorização da sua religião tradicional, impedindo ou pondo dificuldades à expansão do cristianismo. É o caso de muitos países islâmicos, da Índia, com a valorização do Hinduísmo, onde a entrada de missionários estrangeiros é praticamente impossível. Nesses países, onde a Igreja está implantada, afirma-se sobretudo como serviço à sociedade, na educação e na assistência, o que exige dela que faça passar, através desse serviço prestado, o anúncio de Jesus Cristo.
A China é, apesar de tudo, um caso à parte, em que as dificuldades que a Igreja encontra hoje são de outra ordem. A longa história da China é, sobretudo, marcada por uma cultura, o confucionismo, e não tanto por uma religião. Várias religiões se têm afirmado na China e o seu sucesso depende muito da sua capacidade de integrar essa cultura. A evangelização da China dependerá da capacidade do cristianismo para fazer a síntese com a cultura chinesa. O fracasso da evangelização da China, no passado, deveu-se a essa incapacidade de inculturação do cristianismo. Há hoje na China muitos intelectuais que consideram o cristianismo a religião mais capaz de integrar a cultura chinesa, o que transforma a China no grande desafio da evangelização dos nossos tempos.
Neste quadro complexo do fenómeno religioso contemporâneo, o sincretismo é a grande tentação, de que não ficam isentos os próprios cristãos. Houve mesmo já quem propusesse que se fosse buscar a cada religião os melhores elementos e se fizesse uma religião universal. Os cristãos têm de descobrir, viver e anunciar a especificidade do cristianismo, o que não impede de reconhecer valores comuns, que encontrarão a sua plenitude em Jesus Cristo. Penso mesmo que a valorização desse património comum da humanidade, em termos culturais e religiosos, um “universal humano”, pode ser importante para o progresso da humanidade, na construção da justiça, da solidariedade e da paz.
O hedonismo e o conceito fácil de felicidade
Chamo hedonismo a um conceito de vida e de felicidade a conseguir imediatamente, fruindo tudo o que a natureza nos oferece. O que é natural é bom e legítimo, excluindo a dimensão sobrenatural de reconstrução do homem. O modelo de vida e de felicidade que as sabedorias profanas veiculam é hedonista, consumista, exclui o sentido do sofrimento e relativiza a perenidade da felicidade a construir na fidelidade. A avidez, a ganância, o materialismo, a relativização das escolhas de vida que se fizeram, são consequência dessa perspectiva. Este modelo de felicidade é insaciável, exige-se sempre mais e culpam-se facilmente os outros por não o conseguirmos. A felicidade a construir, com o esforço e persistência do atleta que corre no estádio, quase desapareceu. São os outros que têm obrigação de garantir que eu seja feliz. Percebemos melhor o Sermão da Montanha: “Bem aventurados os que têm um coração de pobre”, e o Evangelho anunciado aos pobres, devido à sua maior disponibilidade para acolher a surpresa de Deus.
Não é fácil anunciar o Evangelho a pessoas que têm esta concepção da felicidade. É o escândalo da Cruz, de que falava Paulo. A mensagem cristã, com a sua exigência renovadora, é considerada desadaptada para o homem, ele que se considera capaz de resolver todas as interrogações da sua existência e de construir a sua própria felicidade.
Só uma compreensão da felicidade como plenitude da vida, que vencerá o sofrimento e a morte, se abre à esperança escatológica da vida eterna. Quem só procura a felicidade possível neste mundo e ao alcance das capacidades humanas, não deseja a vida eterna, na plenitude de Deus. E esses não podem seguir Jesus Cristo na etapa decisiva e definitiva da sua vida. Toda a vida humana neste mundo, para ser caminho de felicidade, precisa de ser vivida com Cristo. Mas Ele é decisivo para nós, porque inaugurou no meio de nós e para nós, a vida definitiva. Para o cristão desejar a felicidade é desejar estar com Cristo para sempre, mergulhar na Sua plenitude de vida, até que Ele venha definitivamente na Sua glória. É impressionante o número de contemporâneos nossos que deixaram de acreditar na vida depois da morte. Para muitos, essa é a incerteza fundamental, mas não encontram na sua fé a resposta. Anunciar Jesus Cristo é, necessariamente, anunciar a ressurreição dos mortos e Cristo ressuscitado como a terra prometida. Já o referimos atrás, isto tem a ver com a profundidade da esperança que nos faz viver. O mito da felicidade imediata pode matar a esperança.
O que é que move o coração humano
O homem é um ser espiritual e para além dos objectivos imediatos para alcançar a felicidade no presente, não consegue calar as grandes inquietações do seu coração, embora os mais profundos que encaminhariam o homem para a busca de Deus possam ser abafados pela busca do imediato e do mais fácil. É a adulteração do desejo. Desejar é um sentimento fundamental no coração humano. O horizonte da caminhada para a vida mede-se, também, pela profundidade dos nossos desejos. Se desejo apenas a felicidade imediata, pela fruição e pelo prazer, pela posse e pelo domínio, nunca aprenderemos a desejar a plenitude da vida. A esperança cristã, mais do que assegurar a felicidade imediata, aprofunda o desejo. Tudo o que já experimento de bom, é marcado pelo desejo de mais e melhor, na certeza de que só a participação na plenitude da vida nos satisfará. Perceber que só Deus saciará os nossos desejos mais profundos, é sinal de que se entrou no verdadeiro ritmo da vida. Santo Agostinho reconhece-o nas “Confissões”: o meu coração estava inquieto enquanto não repousou em Vós. E Santa Teresa agradece ao Senhor o tê-la feito perceber que procurá-l’O e encontrá-l’O são a mesma coisa, porque o prémio que Ele dá àqueles que O procuram é um mais ardente desejo de O encontrarem.
O cristianismo não consegue anunciar a esperança a quem está satisfeito com o que é e com o que tem; Jesus Cristo é resposta para os corações inquietos, incapazes de serem felizes só com a felicidade que já construíram. A fragilidade do desejo e a falta de profundidade do modelo de felicidade que se procura, está na causa das grandes desilusões, no nosso tempo. Refiro apenas algumas:
As desilusões no amor. Quantos paraísos imaginados que ruíram perante a exigência do amor e da fidelidade. O amor não é fácil, é experiência de dom generoso, supõe tenacidade e fidelidade. O amor, no seu início, não garante a felicidade definitiva. É antes a ousadia de a procurar em conjunto, de mãos dadas, com a força de Deus no coração. O amor humano é garantia de felicidade se nunca se desistir de a procurar e não se quiser procurá-la sozinho.
As desilusões com a sociedade que construímos. O mito da sociedade perfeita neste mundo, tenha ela o modelo da “sociedade sem classes” ou da sociedade democrática, onde todos têm igual direito à felicidade é sempre causa de desilusões para quem pensou que podia construir o Céu na Terra. As injustiças, a violência, o desrespeito pela dignidade humana, o fosso cada vez mais profundo entre ricos e pobres, geram muitas desilusões: nos sistemas económicos, nos mecanismos políticos, no sistema judicial, etc. Sem perceber que, em cada momento, o modelo de sociedade ideal está em construção, que é tarefa generosa de todos, mobilizados por valores superiores e que aqueles que semeiam a justiça e a paz talvez não cheguem a colher os frutos neste mundo, o que não significa que fiquem sem recompensa. Os homens grandes que construíram a História foram aqueles que não exigiram receber imediatamente o prémio do seu esforço.
D. José Policarpo, Cardeal Patriarca de Lisboa
Conferência no Congresso Missionário Nacional, Fátima, 03.09.2008 (excerto)
04.09.2008
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