Uma definição de Inculturação
Inculturação é uma palavra relativamente recente e talvez difícil; mas a verdade é que já se impões no vocabulário teológico e refere-se a uma realidade bem comum e sempre vivida na história da Igreja: a relação da fé com a(s) cultura(s), num diálogo de enriquecimento recíproco – razão pela qual a Igreja, na sua missão ad gentes, há-de receber das culturas tudo o que concorra para a edificação da vida cristã, mas tratará também de propor o Evangelho como factor purificador de toda e qualquer cultura. Estamos, assim, diante de uma «troca nos dois sentidos, do Evangelho relativamente à cultura e da cultura para o Evangelho» (P. Chanson, Inculturation, in Dictionnaire Oecuménique de Missiologie).
Para falar desta realidade do diálogo da fé com as culturas, do ‘como’ da evangelização, já se propuseram e usaram muitos termos, a maior parte dos quais levaram consigo imprecisões que necessitaram de ser clarificadas, porque a essa ambiguidade dos termos correspondiam exactamente práticas pastorais realmente diferentes, correndo-se o risco de voltar a erros passados da evangelização.
Oficialmente, o termo ‘inculturação’ aparece pela primeira vez no Sínodo dos Bispos de 1977, depois de intervenções marcantes do cardeal Sin (de Manila) e do padre Arrupe, afirmando que ela é o enraizamento do evangelho nas culturas humanas. O P. Arrupe advertia, já nessa altura, para possíveis incompreensões do termo e, por isso, clarificou-o: a inculturação não é simples adaptação catequética nem condescendência ou estratégia para mostrar um cristianismo mais atraente, nem é folclore, nem etnocentrismo do Ocidente. Posteriormente, também o papa João Paulo II usou o termo.
Jamais de deveria confundir inculturação com outros vocábulos claramente do âmbito das ciências sociais, como por exemplo ‘enculturação’ (que significa a introdução de alguém á sua própria cultura, a maior parte das vezes por uma natural assimilação) ou ‘aculturação’ (processo de transformações provocado pelo choque de várias culturas em presença. Para definir inculturação, poderíamos citar o P. Arrupe num texto bem clássico e talvez um dos mais rigorosos e completos: «significa incarnação da vida e mensagem cristã numa área cultural concreta, de tal modo que esta experiência não só chegue a expressar-se com os elementos próprios da cultura em questão (o que seria só uma adaptação superficial), mas que se converta num princípio inspirador, normativo e unificante, que transforma e recria esta cultura, dando origem a uma nova criação” (P. Arrupe, Lettera del P. Arrupe sull’inculturazione, 14.05.1978, in Inculturazione).
Claro que, nesta definição, o conceito de inculturação adopta preferentemente a noção de ‘cultura’ das ciências sociais, isto é, o modo concreto de viver de um povo, o qual abrange de forma integrada os seus valores, seus usos e costumes, suas crenças, suas instituições, etc., e permite assim identificá-lo e distingui-lo de outros. Contudo, a noção humanista-civilizacional de cultura (o conjunto dos saberes, o desenvolvimento das artes, das letras, dos espíritos) não pode nunca ser esquecido: desde que se elimine o risco de elitismo, a cultura pode e deve ser buscada como factor de auto-transcendência e humanização de todo o homem e de todos os grupos humanos. E o Evangelho de Cristo, que respeita todas as culturas, há-de contribuir para o enriquecimento da cultura. A este respeito, vale a pena lembrar uma das muitas e belas afirmações de João Paulo II, no seu discurso à Unesco (Paris, 02.06.1980): «a cultura é um modo específico do ‘existir’ e do ‘ser’ do homem. O homem vive sempre segundo uma cultura (…) Na unidade da cultura, qual modo próprio da existência humana, se enraíza ao mesmo tempo a pluralidade das culturas…»; por outro lado, «o homem é o único sujeito ôntico da cultura, é também o seu único objecto e o seu fim. A cultura é aquilo pelo qual o homem, enquanto homem, é mais homem, ‘é’ mais, acede mais ao ‘ser’».
José Nunes, op
in "Teologia da Missão - Notas e Perspectivas", Obras Missionárias Pontifícias, 2008
25.03.2008
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