Alguns desafios do Cristianismo à cultura
1.
O cristão que observe a situação actual do Cristianismo e que pense no seu compromisso concreto na nossa situação cultural, encontra-se, não raro, entre dois abismos: ou consciente da sua originalidade, se mantém à margem de todos os humanismos, ou, conhecendo a situação que separa o Cristianismo da actual cultura, pensa, à pressa e atabalhoadamente, encher este fosso.
Todavia, no primeiro caso, a sua acção e testemunho cai facilmente numa dicotomia em que o mundo e a Igreja caminham em vias paralelas; no segundo caso, facilmente se perde o discernimento e o tempo da osmose que é característico do diálogo cultural.
Mais do que isso, os resultados desta última atitude, á partida correcta, podem ser definidos pelos síndromes que actualmente espreitam a atzitude do crente e que têm sido reduzidos a dois:
- O síndrome da hetero-identidade e o do alheamento.
No primeiro caso, perdida a confiança e o enraizamento cultural da identidade própria do Cristianismo, com a consequente confusão dos critérios de testemunho Igreja/Mundo, identidade/diferença, o crente passa subtilmente e não raro, quiçá, inadvertidamente, a confiar nos critérios do mundo, num comportamento mimético em que os valores da identidade se transvazam para alhures, para outro terreno. Comcretamente tolera-se o ser cristão, relativiza-se a pertença à Igreja, seleccionam-se os conteúdos dogmáticos ou éticos, fora da globalidade.
No segundo caso, teríamos uma atitude de alheamento, ou talvez melhor dito, de fazer uma relação entre Cristianismo e cultura como duas realidades entre si alheadas, ou estrangeiras.
Quando Nietzsche pretende fazer uma cultura ou contra-cultura popular, deixou um rasto na cultura moderna que de certa forma pretende “aculturar” ou neutralizar o Cristianismo de maneira radical. A frase mais benigna, que por aí paira, do sagrado ao cultural, designa, com alguma felicidade, esta mudança.
O religioso, desde os objectos de arte às procissões, merece todo o respeito, mas o Cristianismo como sentido organizado, como aspiração universal de sentido, como corpo doutrinal, é outras coisa… Se na URSS as Igrejas se transformaram em museus, este desiderato foi coerentemente levado até ao fim. Em outras paragens não se pretendeu uma lei sobre o património cultural em que só padres teriam de pedir licença ao respectivo senhor para usar o arcaz da sacristia (referimo-nos ao nosso querido Portugal)?
2.
Em resultado do processo sumariamente apontado, aqui há uns anos falava-se dos “cristãos sem Igreja”; actualmente são os elementos do Cristianismo que se encontram desligados do centro e erigidos em absolutos separados. Assim o feminismo coloca a mulher fora do género humano; a insistência nos direitos humanos coloca não raro estes fora da solidariedade; e a ecologia coloca o respeito da natureza fora e mesmo contra o humanismo.
Talvez se possa falar, e alguns têm falado, nesta conjuntura no sequestro do Cristianismo, naqueles campos que cobrindo a largura do sentido, são subtilmente entendidos como campos neutros ou ocupados já: o estético, o ético e o semântico.
Uma breve elucidação destes aspectos merece que sobre cada um destes campos nos demoremos um pouco.
No campo ético consistiria este sequestro em negar a validade do fenómeno religioso como tal, pela simples transferência do Cristianismo aos valores ético-funcionais da vida. Trata-se duma concepção à sua maneira racionalista, na esteira de Kant, sobretudo da sua obra “A Religião nos limites da simples razão”.
Em outros termos, a vida religiosa e teologal, o carácter digamos comunicacional do Cristianismo desaparecem em favor duma funcionalização quer da ética, quer da ideologia, ou da emergência de formas menos dignas, que seriam o consumismo, o gozo e o prazer.
É neste sentido que deve ser lido um texto algo provocante mas sentido, “Deus é Deus, nome de Deus”, de Maurice Clavel, ou alguns textos de Lévinas, entre os quais “Totalidade e Infinito”. pretendem a recuperação da transcendência numa cultura que reduz o Cristianismo a um conjunto de imperativos.
No campo ético, o Cristianismo tem certamente a ver com o passado, dado que infelizmente o nosso tempo conhece uma dimensão pouco forte do Cristianismo no campo estético: onde está a arte religiosa, onde está a grande música sacra, tão regular na tradição da cultura europeia?
Que fazer com o tempo das semanas santas e dos ciclos litúrgicos, com as vigílias e os rosários? Parecem duas as reacções: uma que quer impor silêncio a tudo o que seja transcendência, outra que pretende viver neste meio como se fora a verdade, mas caindo ou resvalando para uma certa religiosidade sem se confrontar com as questões da fé, da escatologia, da relação sacramental, da transcendência.
As reacções históricas a este fenómenos, de conotação mais ou menos gnóstica, são conhecidas. Foram as de um K. Barth na linha da descoberta da palavra, as do radicalismo conceptual de Tomás de Aquino, o radicalismo místico de S. João da Cruz, o radicalismo testemunhal de Carlos de Foucauld, o espírito de serviço de Teresa de Calcutá.
Uma vez Tierno Galván, que sempre se considerou agnóstico, teve a coragem de dizer ante cristãos meio amedrontados: “Para mim a grandeza do Cristianismo reside na fé num Deus transcendente… Enquanto agnóstico creio que se pode compreender muito bem a grandeza da minha admiração e assombro diante do homem de fé, sempre que a fé está ligada à transcendência”.
Outra coisa não ouvimos ou lemos em homens como Eduardo Lourenço ou mesmo Miguel Torga, quando, numa página do seu Diário, se diverte e ridiculariza a narrativa empolgante do seu amigo que se convertera alegremente ao Ateísmo.
O sequestro semântico do Cristianismo reflecte melhor que nenhum outro deriva da presença do Cristianismo à Modernidade.
No Cristianismo as palavras nascem da experiência profunda da fé (não somos nominalistas) e por isso a perda da relação entre as palavras e as fontes da sua origem tornou-se um sintoma do pouco tónus cultural do Cristianismo.
Poderíamos dar vários exemplos. Desde o casamento em linguagem meio hermética meio psicologizante até àquela transmissão televisiva, algures sobre a Semana Santa: era a festa da tolerância, o acto da Primavera, a libertação das inércias, era o cume duma paixão nacional escondida que agora se tornava palpável.
Tudo giríssimo. Só que Cristo não morreu para nos salvar.
Outros exemplos podem ser dados.
O problema é o responder à questão: como e a partir de que funduras ligar a experiência da fé a suas expressões?
3.
Alguns desafios actuais prendem-se com o problema específico das relações entre razão e fé na pós-modernidade.
Neste capítulo algumas reacções vindas a público na comunicação social são paradigmáticas. Mostram a mesma atitude não raro entre os que atacam e os que defendem. Os que atacam dizem que é dogmático; os que defendem, que é isso mesmo, é bom porque é dogmático.
Ora o que seria necessário dizer, era que o catecismo representa uma linguagem da fé. Efectivamente, a cultura ao sair da Modernidade não distingue para unir. Se por um lado desconfia dos meta-relatos, por outro, desce pelo caminho da anarquia.
A tarefa consistiria em regenerar o esquecido das atitudes meramente positivistas em face da verdade, pela recuperação do concerto de linguagens de que a fé é feita, desde a linguagem do anúncio, á do assentimento, á da crença, á da celebração.
Efectivamente frente ao Deus-conceito duma e doutra atitude há que recuperar o Deus-pessoa, frente ao Deus-moralidade, o Deus-santidade, frente ao Deus da subjectividade intemporal e universal, o Deus da História e da Encarnação, da proximidade solidária e da morte por nós.
A fé tem mais a ver com o ser do que com o dever ser, e aquilo que estamos a assistir é à degenerescência moralizante.
4.
Numa época sem consensos e onde, como dizia Ricoeur, se deveriam evitar os consensos apressados, a virtude deste tempo seria a da esperança acolhedora e a do discernimento seguro.
A esperança acolhedora capaz de esperar pelos rios profundos.
O discernimento seguro é virtude mais difícil, porque é justamente o contrário do culto do efémero.
Arnaldo Pinho
in Memoria - Revista do Instituto Católico de Viana do Castelo, vol. I, 1994
Publicado em 31.01.2008
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O carácter comunicacional
do Cristianismo
desaparece em favor duma funcionalização quer
da ética, quer da ideologia, ou da emergência
de formas menos dignas,
que seriam o consumismo,
o gozo e o prazer
Onde está a arte
religiosa, onde está
a grande
música sacra,
tão
regular na tradição
da cultura europeia?
Parecem duas as
reacções: uma que quer impor silêncio a tudo o que seja transcendência, outra que pretende viver
neste meio como se fora a verdade, mas caindo ou resvalando para uma certa religiosidade sem se confrontar com as
questões da fé, da escatologia, da
relação sacramental,
da transcendência
Há uma mesma atitude
não raro entre os que
atacam e os que defendem. Os que atacam dizem
que é dogmático; os que
defendem, que é isso
mesmo, é bom
porque é dogmático
A fé tem mais a ver
com o ser do que com o dever ser, e aquilo que estamos a assistir é à degenerescência
moralizante
Numa época sem
consensos e onde,
como dizia Ricoeur, se deveriam evitar os
consensos apressados,
a virtude
deste tempo
seria
a da esperança
acolhedora
e a do discernimento seguro