Projecto cultural
Desafio

Igreja e ruptura cultural

1. Noções

A noção de cultura é, sem dúvida, uma noção complexa. Em ordem à organização das ideias que se seguem, tomarei essa noção em dois sentidos fundamentais. Por um lado, assumo a «cultura» no sentido daquela forma como determinada sociedade organiza o seu mundo, contendo convicções, modos de vida, valores, etc. Por outro lado, também não pretendo deixar de lado um conceito mais «tradicional» de cultura, que a assume como o conjunto das produções humanas mais elevadas, sobretudo no campo da realização artística e intelectual. De certo modo, esta segunda acepção do termo refere-se à mais concentrada representação simbólica do primeiro aspecto; mas também à própria transcendência desse aspecto, na medida em que essas realizações humanas impedem cada contexto sócio-cultural particular de se fechar sobre si mesmo, abrindo-o à humanidade inteira e, em muitos casos, a uma dimensão transcendente em relação ao próprio ser humano.

O cristianismo, por seu turno, enquanto conteúdo crente e realidade histórica concreta – enquanto Igreja, portanto – não se identifica completamente com uma cultura determinada; mas também não existe senão em realizações culturais. Por isso, não pode ficar alheio às transformações culturais, nem pode deixar de por elas ser afectado.

Essas transformações, que fazem parte do dinamismo cultural, mesmo parecendo significar ruptura completa com o contexto cultural anterior, nunca o são totalmente, e nem sempre o são tanto como parecem. Por outro lado, a relativa ruptura de uma modalidade cultural, em relação a outra, não implica ruptura com o cristianismo, mas simplesmente alteração da conjuntura de relacionamento, mantendo a necessária permeabilidade e também a não-identificação total. Nesse sentido, todas as épocas da história do cristianismo têm conhecido elementos de ruptura e elementos de aliança cultural. O que se pretende, aqui, é aplicar esse dinamismo a alguns aspectos da nossa época cultural.

 

2. Transformações

As transformações culturais – nas duas acepções de cultura acima referidas – que marcam o nosso momento histórico são extremamente complexas. Uma análise exaustiva seria, por isso, impossível. Para o que nos interessa, basta o esboço de alguns elementos, que pode ser considerados dos mais significativos.

1. O ambiente cultural europeu contemporâneo, que atravessou a modernidade ocidental em todos os seus aspectos, já não está tão determinado pela referência explícita a conteúdos e práticas cristãos, como estava em épocas passadas. O Deus cristão deixou de ser o (único) horizonte cultural de sentido, afirmando-se hoje, cada vez mais, uma pluralidade de horizontes, até mesmo à possibilidade do sem-sentido ou da interpretação da vida como puro círculo fechado sobre si mesmo. Não que outras épocas culturais não conhecessem também essas possibilidades. Mas elas raramente marcaram o dinamismo total de uma cultura, como acontece contemporaneamente. Este será o principal significado da tão falada «morte de Deus».

2. Um dos substitutos deste horizonte de sentido – que veio ocupar o lugar do «deus morto» – foi, sem dúvida, o ser humano, considerado como indivíduo, interpretado este como núcleo de uma vontade individual, identificada com a liberdade. O centro do mundo já não está em Deus, mas sim no próprio sujeito, senhor absoluto dos seus desejos, cuja capacidade de realização confirma o seu poder sem limites. A divinização do indivíduo originou uma cultura individualista, concentrada na dimensão psíquica do sujeito e pretendendo iludir a sua dimensão relacional, que o torna dependente de outros.

3. Paradoxalmente ou ironicamente, o indivíduo divinizado vem sendo também questionado, sobretudo no seu papel fundamental de horizonte último de sentido. Do ponto de vista teórico, chegou a falar-se em «morte do sujeito» ou «morte do Homem», em paralelo com a anterior «morte de Deus». Em realidade, esta nova morte não passa de outra versão da morte de «deus», variando apenas o «deus» que morre. A marca pragmática mais visível desta absorção do indivíduo é a denominada «cultura de massas», que passou a constituir o modelo predominante de forma de vida quotidiana dos nossos contemporâneos. Na sua complexidade, a cultura de massas massifica o indivíduo, eliminando tendencialmente o seu estatuto de sujeito, mas fá-lo convencendo-o de que é cada vez mais indivíduo e centro do mundo. Nesse sentido, massificação dos comportamentos e individualismo de convicção crescem na mesma medida, mesmo que pareçam opostos.

4. O denominador comum que unifica massificação e individualismo é, sem dúvida, o que poderíamos denominar «cultura do bem-estar». A busca da felicidade, entendida como modo de se «sentir bem», passa a ser o imperativo ético que sobrou da derrocada de todos os outros imperativos. Parece que a debilidade de convicções (nihilismo), resultante das sucessivas desilusões da história do ocidente, originou uma cultura do indiferentismo e do imediato. Nietzsche profetizou, há mais de um século, as consequências dessa desilusão; «O que é amor? O que é criação? O que é aspiração? O que é estrela?» – assim pergunta o último homem, e pisca o olho” (Assim Falava Zarathustra, prólogo 5).

Qual a posição do cristianismo, no contexto destes desafios? Posição nos dois sentidos: como possível (ou impossível) lugar, no interior desta modalidade cultural; ou como tomada de posição, perante estes aspectos do modo de vida contemporâneo.

 

3. Posições

Antes de entrarmos no relacionamento concreto entre Igreja e cultura, convém situar essa relação numa concepção mais genérica.

Por um lado, o cristianismo, porque não é idêntico a nenhuma cultura, implica sempre certo grau de ruptura cultural – a isso chamamos atitude profética. Em nenhum contexto cultural pode desaparecer essa «ruptura». E ela manifesta-se sempre como ruptura do cristianismo com a cultura e da cultura com o cristianismo.

Por outro lado, o cristianismo, porque não é uma realidade desincarnada, não pode prescindir da relação a elementos culturais – a isso chamamos atitude sacerdotal. Se esta não existisse, a fé cristã seria mera ideia gnóstica, sem pertinência pragmática – nem salvífica – para seres humanos concretos.

Do encontro das duas atitudes – na necessária presença das duas – é que resulta o que podemos denominar inculturação do cristianismo e cristianização das culturas. Esse encontro, sempre de novo realizado ao longo da história humana, é precisamente a missão da Igreja; essa é a sua razão de ser, na história dos humanos e no projecto salvífico de Deus.

Ora, há momentos da história em que predomina a atitude sacerdotal de acolhimento da cultura envolvente. Nesses momentos parece não haver qualquer ruptura cultural. Mas essas fases aparentemente pacíficas podem ser problemáticas, precisamente por falta de profetismo, podendo conduzir a falsas identificações entre Reino de Deus e realizações humanas de toda a ordem (sobretudo políticas).

E há momentos em que predomina a atitude profética. Nessas ocasiões parece haver uma ruptura irreparável. Mas, se esta for total, há problemas de inserção no mundo. E a Igreja transforma-se facilmente numa seita de escolhidos e separados do mundo, que pretendem salvar-se, no meio de uma humanidade que se afunda.

O momento actual da nossa cultura ocidental (tendencialmente global) lança desafios ao cristianismo, que tem de se repensar, sobretudo, perante a cultura de «massas individualistas». Uma atitude demasiado sacerdotal poderia significar a criação de um cristianismo de consumo, mediático e individualista (mais um elemento, no mercado das ofertas fascinantes, que já abundam na feira do religioso). Talvez agora a atitude profética seja mais solicitada. Daí a abundância de confrontos e daí a indiferença da maioria dos nossos contemporâneos em relação à visão cristã do mundo. Mas a Igreja também não pode cair em radicalismos, sob pena de se transformar num gueto fundamentalista.

De facto, a noção de igualdade, que está na base da cultura de massas, é algo originado pelo próprio cristianismo. Foi também Nietzsche, na ironia que lhe é própria, quem teve a lucidez para perceber e apresentar, sem preconceitos, este elemento nuclear da relação ao Deus cristão: “«Homens superiores», assim fala a populaça, piscando o olho, «não há Homens superiores, somos todos iguais, um Homem é um Homem, diante de Deus – somos todos iguais!» Diante de Deus! Mas eis que este Deus morreu. Mas nós não queremos ser iguais diante da populaça. Homens superiores, afastai-vos da praça pública!” (AFZ Do Homem superior, 1). Em certo sentido, a centralidade da «populaça», contra certos elitismos desumanizantes, é perfeitamente coincidente com o conteúdo da fé cristã, cuja universalidade prepara um povo constituído por todos os humanos, sem acepção de pessoas, seja por que razão for. Contudo, não podemos ignorar, ingenuamente, que a massificação contemporânea perverteu, pelo menos em parte, essa ideia cristã, podendo contribuir para a aniquilação da pessoa humana na massa colectiva. É, por isso, necessário purificar aquilo que a nossa cultura vive como aplicação da igualdade fundamental de todos os humanos.

Por seu turno, a noção de unicidade pessoal, assente na dignidade fundamental e originária de cada sujeito humano, independentemente da sua condição histórica, também foi implementada pelo cristianismo, a partir de fortes raízes judaicas. Nesse sentido, a concentração moderna no indivíduo – característica muito própria do mundo ocidental – pode ser lida como consequência generalizada da perspectiva antropológica cristã. O problema é que se perverteu em individualismo extremo. É, por isso, necessário purificá-la, não deixando que se dissolva nem no mediatismo global, nem no espiritualismo gnóstico. Por ambos os caminhos, a pessoa única e irrepetível, mesmo como indivíduo, é dissolvida em contextos abstractos mais abrangentes, deixando de ser um horizonte de sentido superior a todos esses outros horizontes, e sendo por eles escravizada.

Nas respostas concretas e criativas a estes dois desafios, seleccionados de entre outros possíveis, podemos estabelecer pontes com as realizações culturais mais elevadas do mundo contemporâneo, sobretudo no campo das artes. De facto, essas produções mais exigentes são proféticas, perante a massificação, defendendo muitas vezes a pessoa e afirmando a dimensão corpórea do ser humano.

Será que a Igreja está à altura, como noutros séculos, de acompanhar essas criações, e mesmo de as implementar, ou prefere enveredar pelo caminho da banalização? Mas não será esse um caminho destrutor do humano, na medida em que elimina a sua sacralidade e a sua insuperável solenidade?

João Duque
Professor da Faculdade de Teologia da UCP

Da intervenção nas Jornadas de Teologia de Viana do Castelo, 2008

13.03.2008

 

 

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Voice of Fire, 1967






























































































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Marco de Canaveses
Siza Vieira































































































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The Messenger, 1996
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