Projecto cultural
Culturas

O diálogo no encontro entre povos

Um filósofo do Direito, francês, Henry Batifol, no seu Tratado de Filosofia do Direito, analisa os diversos tipos ou modelos de sociedades que os homens construíram até aos nossos dias e caracteriza-os, fundamentalmente, em três tipos.

1. Sociedades antigas a que chama sociedades de hierarquia ou subordinação, em que os homens não tinham ainda a consciência de que somos todos iguais. Os homens, entendiam eles, por vontade dos deuses ou destino da natureza, eram diferentes, nasciam com diversos sangues, com diversos direitos, com diversos privilégios. (…) Escravo nascia escravo e assim permanecia. Filho de livre nascia livre e assim tinha os direitos correspondentes. E assim viviam e viveram os homens por muitos séculos, até ao momento em que o pensamento humano, evoluindo, foi podendo proclamar, a partir do coração desta Europa humanista e culta que não era possível este modelo de sociedade.

2. Os homens nascem e são iguais, nascem e devem ser livres. Nascem e devem ser irmãos ou fraternos. Ouvia-se o grito de liberdade, igualdade e fraternidade. Passou-se de um modelo de sociedade de subordinação ou de hierarquia, a um modelo de sociedade de iguais, de coordenação em que as instituições da sociedade, direito, política, vida das instituições, servem exactamente, para coordenar, para ordenar e conjugar os direitos e as liberdades de cada indivíduo, de cada pessoa, de modo a que o direito de um termine onde começa o direito de outro, e assim, da liberdade respectiva. É ainda hoje o modelo de sociedade em que basicamente vivemos, Mas não é aquele que corresponde necessariamente à natureza e à vocação do homem, de todos os homens.

3. Muitos filósofos e gente empenhada em transformar o mundo naquilo que ele deve ser, acreditando na trilogia igualdade, fraternidade e liberdade proclamam, como Henry Batifol, que é preciso mudar para outro tipo de sociedade, a sociedade da comunhão, a sociedade da fraternidade, em que os homens tenham o direito de ser tratados pelos outros, não apenas como seres livres e de igualdade de oportunidades, mas como seres que são efectivamente irmãos uns dos outros na sua origem e no seu destino. Outro filósofo dos nossos tempos, bem suspeito pelas suas próprias ideias, Jean Paul Sartre, nos últimos dias da sua vida, dizia que somos loucos e não entendemos ainda que este mundo não pode ser de inimigos mas de homens que são irmãos. É preciso construir o mundo da fraternidade.

 

Globalização e glocalização

(…) Certamente nos interrogamos se o mundo dos homens, hoje, é um mundo humanizado? Que mundo estamos a construir?

Chesterton, outro grande pensador dos nossos tempos, mais próximo do princípio do século, escreveu um dia que o homem moderno, por falta de valores, já perdeu o caminho, estando em risco de perder o próprio mapa. Efectivamente sentimos, sentem os homens que andam mais atentos ao evoluir das sociedades humanizadas, que se já não estamos, felizmente, a não ser em pequenas parcelas, numa sociedade de subordinação, e se ainda permanecemos demasiado nesta sociedade de coordenação que nos resta, estamos a afastar-nos da sociedade da fraternidade e da solidariedade. Isto não apenas entre homens indivíduos, mas en­tre povos, entre manchas, entre partes da própria humanidade. O crescimento desta sociedade é fruto do tipo de opções económicas, políticas e sociais que se foram construindo em função do tipo de produção e de consumo que se generalizou no mundo, resultando um mundo verdadeiramente dualizado.

Há, pelo menos, dois tipos de homens: os que têm um mínimo de condições para subsistir com alguma dignidade e aqueles que nascem já condenados à própria morte prematura, por falta de alimento, de saúde, de educação, de acesso aos bens mais fundamentais, E é exactamente perante o dilema do tipo de sociedade que vamos construir, que nos encontramos no início deste milénio a reflectir sobre os valores e os modelos que hão­de permitir uma diferente vida humana e humanizada, global para todos os homens. Chamamos-lhe o Milénio de Diálogos para que seja de encontros, no sentido etimológico da palavra in cum trahere, isto é, encontrar (in, para dentro de; cum, uns com os outros; trahere, em latim vulgar, trazer para dentro).

Hoje fala-se demasiado em globalização, em aldeia global, em mundialização, mas não se fala ainda de universalização dos direitos e das oportunidades que deveriam ser universais, para todos os homens e em todas as circunstâncias. Continuamos, a nível mundial, numa sociedade de povos que têm o mínimo de dignidade e de povos que estão condenados à marginalização se não forem rapidamente socorridos, por um processo de inclusão forte, à vida global desta que chamamos aldeia global, que, infelizmente, tem muito mais de separação, de arquipélago e de ilhas separadas, E se o homem é uma ilha, como dizia o poeta, nenhum povo pode ser condenado a viver como ilha isolada, sem acesso aos bens só porque nasceu em alguma parte do espaço ou em algum tempo cronológico diferente.

Rosa-dos-ventos

Pela vocação e consciência que temos de que todos os homens são irmãos e de que todos os bens são e têm vocação e destino radical de todos, os homens, é preciso contrariar este movimento de uma globalização, que em vez de globalizar e universalizar, divide e separa. Felizmente esta globalização já é positiva em matéria de comércio, de economia e de partilha de alguma tecnologia.

Mas onde está a globalização da fiscalidade para repor a justiça? Onde está a globalização dos valores? Onde está a globalização da possibilidade de aceder aos bens? Um grande mestre perito em humanidade, como a Igreja a que pertence e que conduz, o Papa João Paulo II, define e caracteriza este tempo do mundo em que nós vivemos como um tempo de exclusões dos bens económicos, de exclusões sociais e de valores éticos e espirituais. Um mundo onde os homens se excluem uns aos outros por não darem igualdade de oportunidade de tempos e de momentos. É este o desafio que nos é colocado hoje perante uma globalização que, assim chamada, o não é, e que deve ser antes e cada vez mais tida como uma verdadeira glocalização. Aquilo que é de todos tem de ser vivido por todos, localizadamente no tempo e no espaço de cada homem e de cada povo, isto é, cidadãos globais, homens, mulheres, povos tribais pensando global e agindo local, no respeito e na valorização daquilo que cada povo tem em si mesmo, não se valorizando apenas os bens materiais.

Um povo não é rico por ter ali petróleo, diamantes ou pedras preciosas, por ter florestas ou praias. Muitos outros povos são condenados à pobreza, à marginalização, porventura à extinção rápida através, sobretudo, do flagelo de doenças incontroláveis e tão facilmente controláveis por fármacos que determinados tipos de economia não querem disponibilizar.

Glocalizar no mundo só é possível, contudo, no respeito dialogante de encontro de povos, de valores, de afectos e de culturas, como evocaram tão belamente Jaime Cortesão e a mística de S. Francisco de Assis. Foi exactamente esta mística dos irmãos frades menores, que foram nas caravelas e nas naus com os mareantes portugueses levar o sentido da fraternidade universal. Não pregaram, talvez, a liberdade ou a igualdade, mas pregaram e praticaram a fraternidade. Ensinavam aos mareantes, porventura homens rudes das naus, que tudo o que iam descobrir, o ignoto ou o desconhecido, é nosso irmão. Tenha outra cor na pele ou outro feitio, seja um monstro imaginado, ele é nosso irmão porque, como dizia Francisco de Assis, nós somos irmãos de todas as coisas. Temos um só Pai, pai de todos os homens, pai de todas as criaturas. O sol, a lua, as estrelas e a terra, nossa mãe e nossa irmã, tudo é irmão. Aquilo que viermos a encontrar, vamos tratar bem que é nosso irmão.

Foi isto que marcou a mística de um povo que foi mares fora, não para dizimar mas para encontrar, como tão bem sublinha o grande mestre de cultura lusófona, Professor Agostinho da Silva.

Há estudos belíssimos do que foi o enriquecimento da cultura portuguesa e, por via dela, da cultura europeia, com os conhecimentos quer da fauna e da flora, quer dos costumes e valores doutros povos. Recordemos o esforço de miscigenação, até a nível religioso, com o padre Ricci e os Jesuítas do Oriente, A nível social e cultural, o enriquecimento que de lá trouxemos, que não foi apenas o ouro explorador do Brasil, O enriquecimento que levámos, foi exactamente este caldear de um povo que na diversidade se transforma numa só família humana, que enriquece e valoriza aquilo que chamamos os valores da lusofonia ou da lusitanidade. Deste povo que, salvo sempre os momentos negros que a história tem, os menos felizes desencontros
de povos, globalmente se pode definir como o povo que fez a primeira globalização pelos mares. Hoje faz-se por outras vias mais tecnológicas, pelos ares ou pelas ondas, as mais variadas, e por outras formas de energia. Pelos mares fizemos encontrar os povos numa primeira globalização que assentou, fundamentalmente, no respeito pelo outro e pelos seus valores.

É este desafio que nos é colocado de novo, porque o desastre do mundo que construímos, baseado na ideia do materialismo, na industrialização, na mecanização da vida e da valorização daquilo que é economicamente imediato e viável, nos desafia a abrir novos caminhos e a fazer o verdadeiro diálogo, o encontro da palavra. Trata-se de uma palavra criadora, o logos, não de um simples diálogo mas de um polígolo, com as palavras múltiplas de diferentes culturas num mundo que é necessariamente pluralista e que se assume felizmente cada vez mais como tal, em pluralismo religioso, em pluralismo de pensamento, de mundivisão.

Uma cultura globalizada há-de ser localizada na diversidade desses mesmos valores e dessas mesmas culturas, É esta realidade, este convite ao diálogo, que nós somos chamados a agarrar e a levar mundo fora, no respeito por toda a pessoa humana e pela pessoa colectiva de todos os povos. Construindo uma sociedade que não seja de subordinação de uns aos outros e de escravização.

P. Victor Melícias, ofm

in Memoria - Instituto Católico de Viana do Castelo, 2000

12.03.2008

 

 

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