A promoção da Arte Sacra à luz do Concílio Vaticano II
Para falar de arte e de Arte Sacra e da sua defesa e promoção, torna-se necessário que as definamos, a fim de para ela encontrarmos a melhor envolvência e buscarmos razões que justifiquem a nossa obrigação e cuidado em as defender e promover.
A definição de Arte
Falando de modo descritivo, podemos definir assim a Arte:
1. É o conjunto de processos pelos quais a inteligência humana atinge um resultado prático. E a aplicação dos conhecimentos à realização de uma concepção.
2. O método é o conjunto de regras para bem fazer qualquer coisa.
3. É a realização do Belo de forma a impressionar os nossos sentidos. E a expressão de um ideal de beleza nas obras humanas.
O artista e o belo é um tema hoje muito versado. Verifica-se que, apesar de muitas forças contrárias, há uma tendência para o belo - conceito que tem várias percepções a nível dos artistas e dos diversos públicos.
O artista e o belo é um tema tabu, no momento em que predomina uma orientação niilista na critica da arte, que está alimentando uma estética da fealdade e da violência e que reprime a beleza e o religioso na obra dos artistas.
4. É o poder que o homem tem de criar, por meio de uma obra consciente, seres e coisas a que a natureza não deu existência real.
É a destreza, a habilidade para fazer alguma coisa. É o talento.
A arte - no sentido próprio e objectivo da palavra - é o conjunto de regras fundadas no facto de o homem fazer ou dispor, perfeitamente, as coisas exteriores. E brevemente, segundo a definição clássica dada por São Tomás de Aquino na Summa Theologica: “A arte é a recta razão das coisas factíveis, isto é, possíveis”.
O sujeito que é senhor das ditas regras e, ao menos genericamente, conhece o seu fundamento, é chamado crítico de arte.
O sujeito que em detalhe conhece as regras e tem bastante capacidade e suficiente habilidade para ver, sentir e agir em conformidade com elas, chama-se artista.
O sujeito que executa as regras sob a direcção e a orientação do artista, chama-se artesão.
Convém não esquecer que a palavra artista, hoje é aplicada em sentido global - ao trolha, ao pedreiro, ao ceramista, ao pintor de arte... - e usa-se a palavra artesão para significar aquele que exerce um oficio manual por sua pr6priá conta. Todos conhecemos o artesanato, tão difundido entre nos.
Todavia, nós, conscientemente, não podemos - como por vezes se afirma - confundir belas artes com agricultura.
Obra de Arte é aquela em que se observam de modo perfeito as regras próprias ou, precisando: a manifestação adequada de algum pensamento humano por meio de um objecto ou coisa exterior.
Ciência ou Teoria da Arte é o conhecimento das razões em que se apoiam as regras constitutivas da arte. Este conhecimento, de per si, não forma artistas, mas apenas críticos de arte.
Toda a obra de arte é constituída por três elementos essenciais: a ideia, o meio exterior usado para a exprimir e a própria expressão (a obra visível).
O primeiro elemento, a ideia, é verdadeiramente a alma da obra artística; o segundo elemento, o meio, exercendo o oficio de corpo, é a matéria em que se incarna a ideia; o terceiro elemento, a expressão, consiste na união harm6nica ou relação intima dos dois primeiros elementos: ideia e meio.
A perfeição de uma obra de arte depende da bondade dos seus elementos constitutivos e, principalmente, do último - a expressão - de sorte que a obra se pode dizer perfeitamente artística quando, no conjunto de formas exteriores da matéria, bem proporcionadas, se realiza e transparece a ideia superior e digna que o artista lhe quis imprimir. (Recordemos o «Moisés» de Miguel Angelo).
Em consequência, toda a ciência ou teoria da arte consiste no conhecimento das condições gerais em que hão-de reunir-se os referidos três elementos, afim de que a obra seja perfeita e, como tal, julgada e admirada.
A divisão das artes
Sabemos que a transformação ou modificação que a mão do homem faz das coisas exteriores tem por finalidade satisfazer alguma necessidade dá vida ou servir para a contemplação e gosto do próprio homem ou servir a dupla finalidade. Daqui as chamadas artes úteis, artes belas e artes mistas também denominadas sumptuárias ou de luxo, divisão fundada no predomínio ou equilíbrio da utilidade e beleza.
As Belas Artes devem pois definir-se: artes que expressam a beleza ideal sob uma forma sensível: Arquitectura, Escultura, Pintura, Música, poesia... e cada uma destas é um ventre em que as outras vivem.
A beleza é a propriedade dos seres em virtude dá qual se excita a complacência das nossas faculdades apreensivas. E belos, segundo São Tomás de Aquino (Summa Theologica), se denominam os objectos que, vistos - com os sentidos ou com o entendimento - agradam.
O tratado da beleza é a Estética ou Calologia.
O gosto artístico é a faculdade de perceber a beleza nas obras de arte. O gosto estético é a mesma faculdade de perceber a beleza em qualquer objecto.
Na formação e educação do gosto entram os usos e legítimos costumes da época em que se vive e as afeições particulares do crítico ou do artista.
Deprava-se o gosto quando se pervertem as ideias e os sentimentos da época e do próprio artista, Por esta razão se afirma e com verdade, que os artistas reflectem o gosto, as virtudes e os vícios do tempo e do lugar em que vivem.
Os conceitos explanados e que se aplicam a todas as artes e, necessariamente, à Arte cristã, sempre devem estar presentes na formação a transmitir aos artistas.
Deixemos de parte muitos outros conceitos, princípios e teorias - que seria um nunca mais acabar - e fixemo-nos na Arte cristã.
A Fé e a Piedade cristãs elevaram o ideal humano - vivo e fecundo no seio da Igreja Católica - que, por necessidade, procurou elevar a inspiração artística e com ela a perfeição das obras de arte que floresceram e florescem na verdadeira religião.
Esta é a verdade que os séculos testemunham nos milhares de “obras-mestra” de todo o género, com que a vitalidade sempre fecunda dá Igreja Católica enriqueceu e continua a enriquecer o mundo.
Consequentemente podemos definir a Arte cristã como a expressão das ideias e sentimentos da verdadeira religião cristã por meio de formas belas e sensíveis.
É duplo o fim da Arte cristã: glorificar a Deus, a Virgem e os Santos com meios externos em consonância com o culto externo e instruir e edificar na Doutrina Cátólica e nas virtudes cristãs o mundo, exercitando, assim, os artistas de todos os tempos e lugares a cumprirem a sua nobre missão de zelosos apóstolos. Por isso disse S. Basilio: “os pintores arrastam com seus quadros para a causa da religião, tanto como os oradores com a sua eloquência” (Homilia XX - «Patrologia grega», Migne). (…)
Definidos os termos, devemos fundamentar em palavras de valor o tema a versar. Precisamos de um pano de fundo bem “texturado” afim de nele podermos estampar a defesa e a promoção da Arte Sacra. Neste sentido, transcrevo o número quatro da Carta do Papa João Paulo II aos artistas, a propósito do Jubileu do ano 2000 com a sua reflexão sobre os artistas e o bem comum. Diz sua Santidade:
«A Sociedade tem necessidade de artistas, do mesmo modo que tem necessidade de cientistas, técnicos, trabalhadores, profissionais, assim como de testemunhos de fé dos mestres, dos pais e mães, que garantam o crescimento da pessoa e o desenvolvimento da comunidade por meio dessa arte eminente que é a “arte de educar”. No amplo panorama cultural de cada nação, os artistas têm o seu lugar próprio. Precisamente porque obedecem à sua inspiração na realização de obras, verdadeiramente validas e belas, não s6 enriquecem o património cultural de cada nação e de toda a humanidade, mas também prestam um serviço social qualificado em benefício do bem comum.
A diferente vocação de cada artista, ao mesmo tempo que determina o âmbito do seu serviço, indica as tarefas que deve assumir, o duro trabalho a que deve submeter-se e as responsabilidades que deve enfrentar
Existe uma ética, ou melhor, uma espiritualidade de serviço artístico que de um modo pr6prio contribui para a vida e para o renascimento de um povo. Precisamente a isto parece querer aludir Cyprian Norwid quando afirma: A beleza serve para entusiasmar no trabalho, o trabalho serve para ressurgir.»
A Arte no Concilio Vaticano II
Com estas palavras o Papa quis corroborar e mostrar actuais os seguintes ensinamentos do Vaticano II, verdadeiro alfobre em matéria de arte:
1. “Ao contrário do que sucedia em tempos passados, negar Deus ou a religião ou prescindir dele, já não é um facto individual e insólito: hoje, com efeito, isso é muitas vezes apresentado como exigência do progresso cientifico ou de um novo tipo de humanismo. Em muitas regiões, tudo isso não é apenas afirmado no meio filosófico, mas invade em larga escala a literatura, a arte, a interpretação das ciências do homem e da história e até as próprias leis civis: o que provoca a desorientação de muitos” (GS 7).
2. “Em virtude do próprio facto da criação, todas as coisas possuem consistência, verdade, bondade e leis próprias, que o homem deve respeitar, reconhecendo os métodos peculiares de cada ciência e arte” (GS 36).
3. "Salvaguardados a ordem moral e o bem comum, o homem pode investigar livremente a verdade, expor e divulgar a sua opinião e dedicar-se a qualquer arte..." (GS 59).
4. “(Convém lembrar) a questão das relações dos direitos da arte e as normas da lei moral. Dado que não raras vezes, as controvérsias que surgem sobre este tema têm a sua origem em falsas doutrinas sobre ética e estética, o Concilio proclama que a primazia da ordem moral objectiva há-de ser aceite por todos, porque é a única que supera e coerentemente ordena todas as demais ordens humanas, por mais dignas que sejam, sem excluir a arte” (IM 6).
5. “Como nos monumentos artísticos da antiguidade, também agora, nos novos inventos, deve ser glorificado o nome do Senhor, segundo o que diz o Apóstolo: Jesus Cristo ontem e hoje. Ele mesmo por todos os séculos dos séculos (Hb 13,8)” (IM 24).
6. “E esta a razão por que a Santa Igreja amou sempre as belas artes, formou artistas e nunca deixou de procurar o contributo delas, procurando que os objectos atinentes ao culto fossem dignos, decorosos e belos, verdadeiros sinais e símbolos do sobrenatural”, A Igreja julgou-se sempre no direito de ser como que o árbitro, escolhendo entre as obras dos artistas as que estavam de acordo com a fé, piedade e as orientações veneráveis da tradição e que melhor pudessem servir ao culto” (SC 122).
7. “Seja também cultivada livremente na Igreja a arte do nosso tempo, a arte de todos os povos e regiões, desde que sirva com a devida reverência e a devida honra às exigências dos ritos e edifícios sagrados. Assim, poderá ela unir a sua voz ao admirável cântico de glória que grandes homens elevaram à fé católica em séculos passados” (SC 123).
Todos estes excertos das Constituições Gaudium et Spes e Sacrosanctum Concilium e do Decreto Inter Mirifica são apenas uma amostra do pano de fundo, pois falam tão somente da arte em geral. Mas, fundamentalmente, o Concilio Vaticano II dirigiu o seu olhar atento para a Arte Sacra.
Eis alguns textos:
8. “Entre as mais nobres actividades do espírito humano estão, de pleno direito, as belas artes e, muito especialmente, a arte religiosa e o seu mais alto cimo, que é a arte sacra. Elas tendem, por natureza, a exprimir de algum modo, nas obras saídas das mãos do homem, a infinita beleza de Deus e estarão mais orientadas para o louvor e glória de Deus se não tiverem outro fim senão o de conduzir piamente e o mais eficazmente possível, através das suas obras, o espírito do homem até Deus” (SC 122).
9. “A Igreja aprova e aceita no culto divino todas as formas autênticas de arte, desde que dotadas das qualidades requeridas” (SC 112).
10. “Ao promoverem uma autêntica arte sacra, prefiram os Ordinários à mera sumptuosidade uma beleza que seja nobre. Aplique-se isto mesmo às vestes e ornamentos sagrados. Tenham os Bispos todo o cuidado em retirar da Casa de Deus e de outros lugares sagrados aquelas obras de arte que não se coadunam com a fé e os costumes e com a piedade cristã, ofendam o genuíno sentido religioso, quer pela depravação da forma, quer pela insuficiência, mediocridade ou falsidade dá expressão artística” (SC 124).
11. “Mantenha-se o uso de expor imagens nas igrejas à veneração dos fiéis. Sejam, no entanto, em número reduzido, e na ordem devida, para não causar estranheza aos fiéis nem contemporizar com uma devoção menos ortodoxa” (SC 125).
12. “Para poderem estimar e conservar preciosos monumentos da Igreja e para estarem aptos a aconselhar como convém os artistas na realização das suas obras, devem os clérigos durante o curso filosófico e teológico, estudar a história e a evolução dá arte sacra, bem como os sãos princípios em que deve fundar-se” (SC 129).
13. “Será da atribuição dá competente autoridade eclesiástica territorial, determinar as várias adaptações a fazer especialmente no que se refere à administração dos Sacramentos, aos Sacramentais, às procissões, à Lingua Litúrgica, à música sacra e às artes, dentro dos limites litúrgicos e sempre segundo as normas fundamentais desta constituição” (SC 39).
14. “Convém que a autoridade eclesiástica territorial competente crie uma Comissão litúrgica que deve servir-se da ajuda de especialistas em liturgia, música sacra e pastoral” (SC 44).
15. “Criem-se em cada diocese, se possível, além da Comissão litúrgica Comissão de música sacra e de arte sacra. E necessário que estas três Comissões trabalhem em conjunto, e não raro poderá ser oportuno que formem uma só Comissão” (SC 46).
16. “Para emitir um juízo sobre as obras de arte, oiçam os Ordinários do lugar, o parecer da Comissão de arte sacra e de outras particularmente competentes, se for o caso, assim como também das Comissões de liturgia e música sacra” (SC 126).
17. “Revejam-se os cânones e determinações eclesiásticas atinentes ao conjunto das coisas externas que se referem ao culto, sobretudo quanto a uma construção funcional e digna dos edifícios sagrados, erecção e forma dos altares, nobreza, disposição e segurança dos sacrários, dignidade e funcionalidade do baptistério, conveniente disposição das imagens, decoração e ornamentos. Corrijam-se ou desapareçam as normas que parecem menos de acordo com a reforma da liturgia; mantenham-se e introduzam-se as que forem julgadas aptas a promovê-la” (SC 128).
Porém, sendo as obras de arte a realização de artistas, também o Sagrado Concilio se refere a eles com respeito e interesse.
18. “Para prover as necessidades (…) indicadas hão-de formar-se oportunamente sacerdotes, religiosos e também leigos, que possuam a devida perícia nestes meios e possam dirigi-los para os fins do apostolado” (IM 15).
19. “Cuidem os Bispos de, por si ou por sacerdotes idóneos e que conheçam e amem a arte, imbuir os artistas, do espírito da arte sacra e da Sagrada Liturgia. (…) Recordem-se os artistas que a sua actividade é, de algum modo, uma sagrada imitação de Deus Criador e de que as suas obras se destinam ao culto católico, à edificação, piedade e instrução religiosa dos fiéis” (SC 127).
20. “Por conseguinte, deve trabalhar-se para que os artistas se sintam compreendidos na sua actividade pela Igreja e que, gozando de uma conveniente liberdade, tenham mais facilidade de contactar com a comunidade cristã. A Igreja deve também reconhecer as novas formas artísticas que segundo o génio próprio das várias nações e regiões se adaptam às exigências dos nossos contemporâneos. Sejam admitidos nos templos quando, com linguagem conveniente e conforme às exigências litúrgicas levantem o espírito a Deus” (GS 62).
E volto à imagem do pano de fundo.
Estando o pano de fundo devidamente colocado, a Santa Igreja escolheu para o debruar um galão de oiro: é a «Mensagem do Concilio à Humanidade».
Diz-nos ela: “De toda a parte do mundo parece-nos ouvir elevar-se um imenso e confuso rumor: a interrogação de todos os que, olhando para o Concilio, nos perguntam com ansiedade: não tendes uma palavra para nos dizer? A nós, os governantes? A nós, os artistas? E a nós, as muiheres? A nós, jovens, a nós doentes, a nós, pobres?
Essas vozes implorantes não ficarão sem resposta.
Eis a que foi dada aos artistas:
«Para todos vós, agora, artistas, que sois prisioneiros da beleza e que trabalhais para ela: poetas e letrados, pintores, escultores, arquitectos, músicos, homens de teatro, cineastas... A todos vós, a Igreja do Concilio afirma pela nossa voz: se sois os amigos da autêntica arte, sois nossos amigos.
Desde há muito que a Igreja se aliou convosco. Vós tendes edificado e decorado os seus templos, celebrado os seus dogmas, enriquecido a sua Liturgia. Tendes ajudado a Igreja a traduzir a sua divina mensagem na linguagem das formas e das figuras, a tornar perceptível o mundo invisível.
Hoje como ontem, a Igreja tem necessidade de vós e volta-se para vós. E diz-vos pela nossa voz: não permitais que se rompa uma aliança entre todas fecunda. Não vos recuseis a colocar o vosso talento ao serviço dá verdade divina. Não fecheis o vosso espírito ao sopro do Espírito Santo.
O mundo em que vivemos tem necessidade de beleza para não cair no desespero. A beleza, como a verdade, é a que traz alegria ao coração dos homens, é este fruto precioso que resiste ao passar do tempo, que une as gerações e as faz comungar na admiração. E isto por vossas mãos.
Que estas mãos sejam puras e desinteressadas. Lembrai-vos de que sois guardiães da beleza do mundo: que isso baste para vos afastar dos gostos efémeros e sem valor autêntico, para vos libertar dá procura de expressões estranhas ou indecorosas. Sede sempre e em toda a parte dignos do vosso ideal, e sereis dignos da Igreja, que pela nossa voz, vos dirige neste dia a sua mensagem de amizade, de salvação, de graça e de bênção».
Cón. Eduardo Melo Peixoto
in Memoria (2002), Instituto Católico de Viana do Castelo
19.03.2008
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