Importa reencontrar a grande tradição do diálogo com a cultura
A vida é um contínuo processo de evolução. A cultura e a pastoral sempre acompanharam e continuam a acompanhar o permanente evoluir da civilização da humanidade, como o caudal de um grande rio, que, nascido na brancura imaculada de um eterno glaciar, se precipita pelas encostas e se espraia nas planícies da história, até desaguar na vastidão infinda do mar divino, onde a beleza e a fé encontram a sua verdadeira fonte e plena realização.
Quem quiser compreender a essência da arte, da cultura e da pastoral será obrigado a subir as encostas da história, munido de eficazes instrumentos de observação, que lhe permitam analisar os acidentes do percurso histórico e alcançar a nascente inesgotável de água cristalina, onde o rio da vida tem a sua origem.
As comemorações dos 700 anos da Sé de Évora enquadram-se nesse itinerário de regresso às fontes. Como sabemos, Portugal, que os papas apelidaram de “nação fidelíssima”, gloria-se de ter mantido, desde a sua origem, a integridade das fronteiras e a genuinidade da fé e cultura cristãs. Nasceu cristão e mariano. Cristão e mariano se mantém. Usando palavras de Emanuel Kant, o grande filósofo alemão, podemos dizer: “O Evangelho é a fonte da qual brotou a nossa civilização”.
Quem se der ao trabalho de percorrer sistemática e conscienciosamente o itinerário que conduz às fontes iconográficas da Sagrada Escritura, da Patrística, do Magistério e dos grandes místicos do cristianismo, certamente concluirá que existe “um vínculo inseparável entre a beleza e a experiência de Deus”.
A igual conclusão chegaram muitos dos grandes artistas e pensadores da humanidade. Para Paul Claudel a Sagrada Escritura e os valores cristãos constituem “o grande léxico” da história cultural e para Marc Chagall “o alfabeto colorido da esperança", onde os grandes pintores molharam o pincel.
Verdade seja dita que esse itinerário nem sempre é fácil. Múltiplos e variados são os escolhos que podem surgir no caminho. Entre eles refira-se uma espécie de teia, entrelaçada pela ignorância, pelo materialismo e pelo laicismo que dificulta a contemplação profunda da beleza da arte sacra e impede o acesso à sua essência – a alma que a anima e lhe dá sentido. Por outro lado, sob influência do hedonismo consumista, típico da nossa sociedade, a relação com a arte sacra parece estar a orientar-se excessivamente para o comércio e para o turismo.
O perigo é real, todos o sabemos. E se as actuais tendências não forem corrigidas, corremos o risco de ver a arte sacra reduzida a mero objecto de consumo. Além do mais, por influência das poderosas tramas económicas, poderá ser ofuscado aquilo que nela é essencial, isto é, a capacidade de contemplar o que está para além do que se vê. Com efeito, o objectivo primário da arte sacra é exprimir o inefável.
Que fazer então? Muito há a fazer, sem dúvida. A tarefa é por demais, complexa. E só uma boa colaboração entre o Estado, o sector privado e a Igreja poderá salvar a arte sacra do apetite voraz dos poderosos e requintados predadores que, dia a dia, se multiplicam um pouco por toda a parte.
Para lá dos programas em curso, tendentes a proteger a cultura e a arte sacra, recordo que estamos em fase de regulamentação da Concordata celebrada entre a Santa Sé e o Estado português, em 2004. É um instrumento legislativo fundamental, que não pode ser esquecido nem secundarizado. O ritmo dos trabalhos tem sido lento. Mas é desejável que se acelere o ritmo, que o diálogo discordante seja substituído pela sintonia dialogante e que se entre em fase de uma maior harmonização legislativa.
Com efeito, se, por um lado, é compreensível que a administração pública privilegie o turismo, por outro lado, também não pode ser esquecido que a dimensão evangelizadora e pastoral da arte são fundamentais para a Igreja, que foi a sua principal promotora, desde os primórdios da cristandade até aos dias de hoje.
Como defendeu recentemente o Presidente do Pontifício Conselho para o Património Cultural da Igreja Gianfranco Ravasi, para alcançar a síntese ideal sobre a arte sacra, exige-se uma permanente atitude de vigilância que permita evitar três perigos graves:
- O esquecimento das próprias raízes, que leva ao esvaziamento gradual do sentido e dá relevo exagerado às aparências, a ponto de, no dizer do poeta alemão Guilherme Willms transformar as catedrais em “cascas vazias de caracóis”, privadas de vida, de coração e de fé e constantemente percorridas por multidões de turistas;
- A superficialidade que banaliza, esvazia e deforma;
- Os excessos de zelo que podem escorregar para o sincretismo relativista ou para o fundamentalismo.
Certamente não serão os ideais consumistas que nos irão defender de qualquer destes três perigos. Importa, pois, que regressemos às fontes da ética e da beleza, que reencontremos a grande tradição do diálogo entre as religiões e as culturas, seguindo sempre o sábio conselho que S. Paulo deu aos cristãos de Tessalónica, na sua primeira carta (5,21): “examinai todas as coisas e guardai o que é bom”.
D. José Alves
Arcebispo de Évora
Excerto da intervenção na sessão de abertura da Jornada Histórico-Artística da Sé de Évora
04.11.2008
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