Vemos, ouvimos e lemos
Música

1500 tubos, 4,5 toneladas e um concerto vibrante

Um novo órgão de grandes dimensões construído por Dinarte Machado integra desde fim de Novembro o riquíssimo património artístico da Igreja de S. João Evangelista do Funchal (mais conhecida como Igreja do Colégio). Não se inauguram pianos, violinos ou flautas, mas quando um órgão soa pela primeira vez em público a ocasião é de festa e reveste-se da maior solenidade.

"É um momento especial, porque se trata normalmente de exemplares únicos, feitos à medida das qualidades acústicas e espaciais de determinado local", explicou o organista João Vaz durante a apresentação do instrumento que precedeu o concerto inaugural no dia 23. Coube ao organista, cravista e maestro holandês Ton Koopman, uma das mais emblemáticas personalidades do universo da música antiga, a primeira grande exibição das potencialidades do instrumento, mas antes disso o órgão foi benzido pelo bispo do Funchal, D. António Carrilho, perante a assistência numerosa que lotou a igreja.

O cenário resplandecente do antigo templo dos jesuítas construído no século XVII e objecto de um programa de restauro desde 2002 que lhe devolveu a beleza original da talha dourada maneirista e barroca, das pinturas e dos frescos, não podia ser mais indicado para o diversificado colorido sonoro da multiplicidade de registos do órgão e para o programa idealizado por Koopman em função do perfil do instrumento. As suas qualidades tímbricas puderam ser percebidas com nitidez graças à excelente acústica do local, em parte decorrente da típica concepção arquitectónica da Companhia de Jesus, que se traduz em "igrejas de salão" de uma só nave.


O mais completo

Ao longo de três anos e meio, Dinarte Machado planificou, construiu e montou um instrumento de 1500 tubos, dois teclados e pedaleira, que pesa 4,5 toneladas e que obrigou ao reforço das estruturas do coro alto. A obra custou 300 mil euros, 70 por cento pagos através de fundos europeus. O organeiro já restaurou mais de 70 órgãos históricos e fez vários de raiz, sendo este o seu nono grande órgão. "Talvez seja o mais completo que já fiz e aquele que me deu maior liberdade", disse entusiasmado. "Procurei que permitisse tocar o grande repertório internacional do tempo de Bach, contemplando ao mesmo tempo uma certa latinidade sonora, necessária à música antiga das escolas italiana, espanhola e portuguesa." Conforme referiu João Vaz na apresentação, "os órgãos novos tendem a fazer uma síntese do que foi a herança anterior" e neste caso encontra-se "um espelho de séculos da cultura europeia e da cultura portuguesa".

Dinarte Machado manteve a característica ibérica dos registos de palheta em chamada (com tubos colocados na horizontal), cujos sons incisivos pudemos ouvir logo no início do concerto na Batalha Famosa, peça anónima que subsiste em fontes das bibliotecas públicas do Porto e de Braga. Seguiram-se outras obras ibéricas (de Cabanilles e Pablo de Bruna) e uma selecção de peças de Buxtehude e J. S. Bach, das quais a interpretação do Prelúdio de Coral BWV 645 (Wachet auf) foi um dos pontos altos da noite. Koopman tocou com uma energia vibrante, peculiar à sua personalidade, e um virtuosismo técnico espectacular, que podia ser acompanhado visualmente num ecrã, uma vez que a localização do órgão no coro alto faz com que a assistência se sente de costas.

Instrumento vivo

À tarde, após um ensaio de três horas, Ton Koopman mostrava-se muito satisfeito com o instrumento. "É um óptimo trabalho. É bom encontrar um órgão que não é simplesmente a cópia de um órgão histórico português, mas que permite tocar outros repertórios como Buxtehude ou Bach." Realçou também a beleza da igreja e a acústica e chamou a atenção para a importância de uma colaboração estreita entre o organeiro e os organistas. "O instrumento ainda tem de estabilizar, é preciso que alguém o toque regularmente, dê conta dos pequenos problemas que vão surgindo e os comunique ao organeiro. É preciso viver com o instrumento."

Por esse motivo ter um organista titular é essencial. "O organista deve ser a personalidade que luta pelo instrumento. Há muitos órgãos restaurados em Itália ou em Espanha que ninguém os toca, o que é uma pena, deita-se a perder todo o trabalho feito." Koopman, que tem tocado e dirigido várias vezes em Portugal, elogiou ainda a qualidade da organaria portuguesa. O grande órgão da Igreja do Colégio terá como organista principal Paulo Silva, licenciado pela Escola das Artes da Universidade Católica do Porto, e será usado para a liturgia e para concertos.

Segundo o director regional de cultura do governo regional, João Henrique da Silva, entre Março e Outubro próximos irá realizar-se um ciclo com organistas nacionais e estrangeiros que antecipa a criação de um festival a partir de 2010, que irá tirar partido dos vários instrumentos históricos da Madeira. Na sua maioria são órgãos ibéricos e ingleses do século XIX. Há sete órgãos já restaurados, quatro no Funchal e os restantes em Ponta do Sol, Machico e Porto da Cruz.

Neste momento Dinarte Machado está a recuperar um órgão de armário da autoria de Machado e Cerveira existente na mesma Igreja do Colégio que permitirá a realização de concertos a dois órgãos. Entretanto pretende-se que o novo órgão seja também utilizado no Festival de Música da Madeira, estando o seu director artístico, Luís Pereira Leal, a desenvolver esforços no sentido de convidar Gustav Leonhardt a vir dar um concerto.

Cristina Fernandes

in Público, 29.11.2008

02.12.2008

 

 

Topo | Voltar | Enviar | Imprimir

 

 

barra rodapé

Tocar órgão
Arquivo


































































Edição mais recente do ObservatórioOutras edições do Observatório
Edição recente do Prémio de Cultura Padre Manuel AntunesOutras edições do Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes
Quem somos
Página de entrada