Vemos, ouvimos e lemos

O dom das lágrimas

Talvez a nossa civilização repita incessantemente o gesto de Ulisses, que preferiu cobrir a face, com um largo manto de púrpura, quando, ao escutar o canto do aedo, se envergonhava que lágrimas lhe caíssem dos olhos. E, ao aproximar-se do navegador da fábula, a nossa civilização se tenha afastado, quem sabe por que desígnio, desses outros navegadores do espírito, que foram os Padres do Deserto e os Místicos, de repente tolhidos dos textos e fixados nos minúsculos caracteres do rodapé cultural. Quem hoje recorda Arsénio e Silvano, que adoçavam os mesteres mais quotidianos com o travo salgado das muitas lágrimas ou Evágrio que explicava a acédia (e foi o primeiro a fazê-lo, num tratado sistemático) como uma dureza das almas que as recusam? Quem evoca Gregório de Nazianzo que fazia equivaler o pranto a um necessário batismo ou Teresa de Ávila, para a qual, claramente, as lágrimas se diferenciavam por graus de intensidade espiritual, que ela era capaz de descrever com rigoroso pormenor?

«Pelas minhas lágrimas, conto uma história», escreve Roland Barthes. As lágrimas são um mapa pleno de significação e de leituras. Temos muitas maneiras de chorar e, o modo como o fazemos, revela não só a temperatura dos sentimentos, mas a natureza da própria sensibilidade. Ao chorar, mesmo na solidão mais estrita, dirigimo-nos a alguém: esforçamo-nos para que ninguém veja que choramos, mas choramos sempre para um outro ver. As lágrimas emprestam um realismo único, irresistível à dramática expressão de nós próprios. São um traço tão pessoal como o olhar ou o mover-se ou o amar.

Na tradição bíblica, o riso tem uma aceção negativa, pois o seu fundo semântico liga-se, de certa maneira, à autonomização de Deus como princípio ordenador da realidade. O pranto, pelo contrário, acorda no homem a consciência de uma ligação divina. Reclama a intervenção favorável e protetora de Deus, como testemunha esse pungente grito das Lamentações (Lam 1,16): «Meu olho, meu olho em lágrimas se desfaz / Ah! Quem perto de mim me reanimará?» ou o glosado Salmo 137: «Junto dos canais de Babilónia / nos sentamos a chorar / com saudades de Sião».

Os evangelistas apresentam Jesus chorando por um amigo (Jo 11,35) e pelo destino de uma cidade, Jerusalém (Lc 19,41). Por ele choram Pedro (Mt 26,75) e as mulheres perante o inaceitável espetáculo da cruz (Lc 23,28). Certa ocasião, uma mulher, de que não se sabe sequer o nome, interrompeu uma refeição, onde ele estava, para que as suas lágrimas suprissem um rito da hospitalidade negada. Só estranha lágrimas assim copiosas quem nunca experimentou o aluvião dos grandes sentimentos, as torrentes numerosas das horas em que o mistério da vida se adensa e nos embaraça como uma «selva escura», o naufrágio que, por vezes, é o paradoxal e íntimo caminho da salvação.

A importância do pranto transmitiu-se à espiritualidade cristã. As lágrimas tornaram-se a marca dessa «tristeza segundo Deus», que não é, como primeiro explicou Orígenes, uma qualquer tristeza voluntária, mas «uma dor permanente provocada pela dor do pe­cado», uma sede da alma, um húmido silêncio espiritual que refresca as labaredas do coração, uma veemência interior, uma carência da glória de Deus. Nos belíssimos e ignorados poemas do Diácono Efrém, nas regras ascéticas de Basílio, nas homilias de João Crisóstomo e de Gregório de Nissa, nos depurados escritos de Jerónimo e de Ambrósio, nas pastorais de Gregório Magno, as lágrimas são uma fala estimada, uma chuva de ouro, um alagado lençol de piedade que dança sobre o mundo. Elas soletram, à imensa escuta de Deus, o segredo da compunção. E a compunção é o ordálio da alma, um trânsito que nos reconcilia com a inapagável saudade de Deus. (...)

Nas orações da antiga liturgia cristã que suplicavam o dom das lágrimas encontramos textos de um latim muito conciso, organizado obsessivamente com afirmações finais, sem sobressaltos de sentido, sem perturbações no desenho do discurso, como se a sua pronúncia pudesse ser de antemão sustentada por qualquer coisa de seguro e inabalável. E, ao mesmo tempo, comove pensar que esta sintaxe assim escassa, quase rude se destina a tocar o intocável. E esta arquitetura verbal repetida, ínfima, que se despoja de efeitos e tão evidentemente recusa saberes tem, afinal, a tensa cintilação dos corpos atravessados pelo desejo de Deus.

Cioran disse, um dia, que as lágrimas são aquilo que permite a alguém ser santo, depois de ter sido homem. Gostaria de terminar assim.

 

«Ó Deus que preferes a compaixão
por aqueles que esperam em ti
e não a ira
concede-nos chorar longamente males que fizemos
de modo que mereçamos
tua consolação como uma graça.»

José Tolentino Mendonça

in O Dom das Lágrimas, ed. Assírio & Alvim

25.02.2009

 

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