Tiago Guillul: Teologia e panque-roque
Tiago Guillul é um músico com carreira longa. Formou-se no «hardcore» e encontrámo-lo, nos anos 1990, como vocalista dos frenéticos Bible Toons. Mais tarde, no início do século XXI, foi um dos fundadores da Flor Caveira, peculiar editora com sede em Queluz, fiel ao «lo-fi» [baixa fidelidade] e às edições de autor, que agrega nomes como Samuel Uria, Manuel Fúria, Borboletas Borbulhas, Os Ninivitas ou os Pontos Negros, benjamins do grupo mas que, devido ao burburinho que se vem criando em seu redor, são os principais responsáveis pela atenção de que a editora tem sido alvo recentemente.
Tiago Guillul, homem de percurso multifacetado, não é facilmente catalogável. Num momento entrega-se aos prazeres eléctricos do «garage rock», como fez nos Guel, Guillul & Comboio Fantasma, noutro decide fazer a sua homenagem à concisão punk dos Ramones e grava “Tiago Guillul Quer Ser o Leproso que agradece”. Pelo meio, percebe que o fado é terreno fértil e dedica-se a esventrá-lo carinhosamente - atente-se na caixa de ritmos de órgão Casio e nas harmónicas de Dylan fanhoso de “Mais Dez Fados Religiosos de Tiago Guillul”. Agora, com a edição de “IV”, ameaça deixar a existência subterrânea dos últimos anos.
Em glorioso “lo-fi” é uma amálgama de rock’n’roll descarnado - dos White Stripes aos Rolling Stones -, guitarras africanas à Vampire Weekend, «gospel», folclore eléctrico e, algures entre os coros e a dança do ritmo, ecos de José Afonso. Nele, Tiago Guillul canta sobre provocadoras que beijam como freiras, imagina que quer ser preto e inventa cenários apocalípticos para o pais - com Portugal transformado, de Caminha à marina de Vilamoura, na “Lareira da Europa”. Também procura quem lhe arranje um “jumentinho” para uma “entrada triunfal em Lisboa” e, à quarta canção, deixa um aviso: “Não ponham pó talco na minha quarta-feira de cinzas.”
“Teologia e ‘panque-roque”
Leprosos que agradecem? Fados religiosos? Alusões à entrada de Cristo em Jerusalém, metaforizada em Lisboa? Naturalmente. Expliquemos: o rocker Tiago Guiiul, criador de “lV”, é também Tiago Cavaco, autor do blogue “Voz do Deserto”, um dos mais antigos da blogosfera nacional. O seu subtítulo é esclarecedor: “Teologia e ‘panque-roque”. Num «post» faz-se o elogio a Jack White, dos White Stripes e dos Raconteurs (citamos de cabeça:
“Sempre que se mexe faz um disco do ano”). Num curto pedaço de humor intitulado “O exorcista reticente”, lê-se: “Ele não acreditava em demónios, mas que os expulsava, expulsava” - e algures, podemos encontrar uma lista dos muitos concertos que se aproximam (Bob Dylan, Animal Collective, Leonard Cohen ou Boris), a que se junta um pedido:
“Tenho três filhos, mulher e sou um cristão dizimista. Alguém tem a bondade de me auxiliar?”
Tiago Cavaco, homem versado na música popular urbana, dono de uma das vozes mais singulares da música portuguesa actual - basta escutar as letras e a entusiasmante amálgama de estéticas sonoras de “IV” -, é também um membro activíssimo da Igreja Baptista, desdobrando-se entre a Igreja de Moscavide, onde é pastor auxiliar, e a missão de São Domingos de Benfica. Foi-lhe encarregue a reabertura desta última, que se encontrava fechada há mais de uma década, e Tiago tem-na utilizado como “laboratório”.
Ou seja, há por ali concertos rock’n’roll aos sábados e o culto religioso aos domingos - hábito iniciado na década de 1990, na Igreja de Queluz, pela maioria daqueles que compõem o catálogo da Flor Caveira. Ou seja, numa pequena sala no rés-do-chão de um prédio discreto ensaiam bandas e organizam-se colóquios onde intelectuais baptistas esgrimem ideias com convidados como Pedro Mexia, Francisco José Viegas, Pacheco Pereira ou Carla Quevedo. “Tenho a noção que os evangélicos são mal vistos”, confessa Tiago Cavaco. “Vêem-nos como religiosidade de classe média baixa e pensa-se imediatamente na IURD.” Os colóquios que organiza são uma forma de tentar alterar isso: “Os baptistas em particular, e os protestantes em geral, não têm aproveitado estas possibilidades. Faz parte de um complexo de inferioridade que nos habita. O evangélico, à semelhança do homossexual, tem de sair do armário e deixar de viver estigmatizado pela diferença. Tem de chamar os melhores e falar de igual para igual”. Daí os convites a Mexia, José Viegas ou Pacheco Pereira - “pessoas que me conhecem [através do “Voz do Deserto”], que são benevolentes e acedem ao meu desafio”.
Rockers, os pregadores
Não é necessário conhecer Tiago Cavaco, missionário baptista, para fruir as canções de Tiago Guillul. A sua música, excitante pela descarga eléctrica e pelo movimento da dança, refrescante pela qualidade singular da lírica, dispensa a caução de curiosidade de tais contextos. Conhecer as suas duas dimensões, contudo, permite-nos compreender melhor a sua singularidade. A nós, entenda-se, que ele não vê nisto nada de excepcional. “Não tenho intenção de pregar. Uma coisa é rock’n’roll, outra é religião, e tento mantê-los separados. Aqui [na missão de São Domingos de Benfica] tenho um púlpito para pregar. Quando estou em concerto estou a oferecer rock. É verdade que posso subir a palco e dizer ‘vamos ter Igreja’, mas isso não seria inventar nada. Todos os principais «rockers» eram, num certo sentido, pregadores”. Desenvolve: “Não há personagem mais subversiva que o Little Richard, com os seus maneirismos efeminados, e ele, a determinado ponto, abandonou a carreira para se tornar pregador. O Jerry Lee Lewis era um tipo que saiu do seminário e vemo-lo no ‘Walk the Line’ [biopic de Johnny Cash] dizer, preocupado, ‘we’re doing the devil’s business”. Ainda assim, Little Richard não escreveria uma canção intitulada “Laqueaste as trompas ao segundo”, e não temos memória de Johnny Cash dissertar sobre Kierkegaard e o Padre António Vieira, como lemos no “Voz do Deserto”. Adiante.
Para Tiago Guillul, como dissemos, nada disto é inédito. Se nós o achamos, talvez se deva à contingência geográfica e cultural: “Em Portugal, país onde o protestantismo não tem grande expressão, não existe esta dualidade de pecado e redenção que o rock e a Igreja trazem. Nos Estados Unidos é uma coisa que brota naturalmente - basta ouvir o concerto em San Quentin do Johnny Cash, em que canta o ‘A boy named Sue’ e, a seguir, passa para os espirituais. A alma americana absorve isso muito bem, na Europa soa sempre esquisito. Efectivamente, [aqui] a Igreja assusta as pessoas.”
IV
Mas aqui, desde há tempos imemoriais que o rock’n’roll congrega em celebração efusiva pecadores e impolutos tementes a Deus. “IV”, o álbum que colocará Tiago Guillul no mapa musical português, cativa-nos por fazer bem ao bom nome dessa tradição. Obra de um conservador nos costumes e libertário na abordagem musical, concentra em 15 canções as doses certas de actualidade e intemporalidade, de urgência na interpretação e precisão na composição. “O rock, o disco, a soul e o «gospel» são elementos que estão sempre presentes”, elenca Tiago.
Começamos com um «gospel» de órgão cheio e harmonias vocais celestiais e acabamos com uma “Canção de Natal” onde imaginamos Zeppelin e Bob Dylan em encontro comunal numa garagem de Queluz. Entre uma e outra, ouvimos um álbum que não só é «melting-pot» cativante de uma multiplicidade de linguagens como, mais importante que isso, não se transforma em frustrante Torre de Babel. Tudo isto apresentado em glorioso, roufenho e nunca precário «lo-fi», é servido por uma verve que junta cultura pop, auto-biografia, teologia, literatura, contos «nonsense» e humor delirante. Tudo criado com um sentido pop e uma capacidade de criar versos que, virtude rara, nos obrigam a receber música e letra como componentes de um todo indivisível. Tiago Guillul assume-se como um dos criadores mais surpreendentes e inspirados da actual música em português.
Canção de Natal
Mário Lopes
in Público (Ipsilon), 02.05.2008
16.12.2008
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