Leitura
A caridade dá que fazer
“A caridade dá que fazer”, do biblista italiano Luciano Manicardi, é o segundo volume da coleção “Poéticas do viver crente”, coordenada por José Tolentino Mendonça.
A edição das Paulinas, que tem como subtítulo “Redescobrindo a atualidade das ‘obras de misericórdia’”, é apresentada por Manuela Silva, cujo texto oferecemos seguidamente, acrescentando a conclusão, assinada pelo monge da comunidade monástica de Bose.
Apresentação
«Apenas disto, nós terrestres, temos necessidade: de acreditar que o amor que vivemos, o amor partilhado com aqueles que amámos e que amamos (...) é um amor que permanece, que contém qualquer coisa da Eternidade, um amor que nos permite dizer no presente e no futuro: Eu amo, mesmo quando o outro que eu amo, já não está.» (Enzo Bianchi)
O pensamento em epígrafe, retirado da homília de Enzo Bianchi, Prior do Mosteiro de Bose, proferida no domingo de Páscoa de 2011, atravessa toda a obra de Luciano Manicardi La fatica delia carita, agora editada em português, com o título A caridade dá que fazer.
O amor (a caridade) está no centro da fé cristã e da vivência que dela decorre, no plano pessoal como no desenho do projeto de organização da vida em comum. Bento XVI faz questão de o recordar aos seus contemporâneos, na sua recente Encíclica Caritas in veritate: «A caridade na verdade... é a força propulsora principal para o verdadeiro desenvolvimento de cada pessoa e da humanidade inteira. (...) é uma força extraordinária, que impele as pessoas a comprometerem-se, com coragem e generosidade, no campo da justiça e da paz.» Recordo que esta encíclica, no seu conjunto, é uma proposta de percurso espiritual que incentiva crentes e não-crentes a deixarem-se imbuir por esta força propulsora, transformando-a em obras, nomeadamente no que diz respeito ao empenhamento no desenvolvimento humano de todos os povos.
Falar das obras de misericórdia, como se propõe o Autor deste livro, também ele monge de Bose, é procurar tornar visível e palpável as diferentes declinações da caridade, vertendo esse dinamismo interior, que é o amor, em gestos, atitudes e obras, de resposta às situações de sofrimento humano, de modo a que fique claro que a caridade não é um mero sentimento, uma aspiração vaga e etérea, uma opção facultativa, mas antes um modo de os seres humanos habitarem o mundo e de humanizarem as relações entre os seus habitantes e os seus projetos de organização da economia e da sociedade.
Face às injustiças, que, hoje, se avolumam em muitos países e regiões do mundo, diante das gritantes situações de marginalização e exclusão (Luciano Manicardi lembra, expressamente, as imagens de desumanidade que registam o modo com que têm sido tratados os imigrantes que chegam à costa do Mediterrâneo), perante os gritos clamorosos de quantos são forçados a viverem as suas dores na solidão das grandes urbes anónimas e no desespero da falta de afetos e relações humanas sólidas, frente às incertezas, riscos e temores quanto ao futuro, face às novas e mais subtis formas de exploração presentes no mundo do trabalho ou no tráfico humano, parece ser uma tarefa urgente reaprender a gramática elementar da caridade. A este propósito, ocorre parafrasear Dostoievski (A beleza salvará o mundo), dizendo: Só o amor salvará o nosso mundo da autodestruição para onde o arrastam o egoísmo, a injustiça e a corrupção. Com a publicação deste livro, o Autor oferece aos seus leitores um alimento sadio, ao mesmo tempo suculento e saboroso.
A reflexão de Luciano Manicardi assenta no pressuposto de que a caridade tem uma dimensão histórica: é no aqui e agora que ganha concretização, assume corpo de resposta aos desafios próprios do tempo e do lugar, indo ao encontro das pessoas e das situações em que vivem. Por isso, o Autor recorda que a Igreja tem a responsabilidade histórica da narração da caridade.
A este propósito, é particularmente interessante a ideia de que, nestes dias maus, como qualifica o tempo presente, é importante lembrar, antes de mais, que existe uma caridade da razão: «é necessário que a razão política seja enxertada na caridade e na justiça, saiba que é habitada pela caridade, ou seja, pelo sentido do sofrimento do outro, do sentido do seu caráter único e irrepetivel, do sentido do humano presente em cada homem, antes de cada uma das suas definições.»
Quantas opções geoestratégicas, quantas políticas macroeconómicas, quantas reformas de gestão empresarial e de organização do trabalho, sendo feitas com total descaso desta caridade da razão, vêm acrescentando sofrimento aos mais vulneráveis, aos pobres, aos imigrantes, aos desempregados, aos idosos, aos dependentes de serviços públicos de proteção social, e como a realidade seria bem menos agreste e menos exposta aos germens de autodestruição se fosse reconhecida e posta em prática a caridade da razão.
A caridade tem na justiça a sua expressão social e, por isso, a caridade da razão deve encaminhar-se para o reconhecimento dos direitos e a sua intransigente defesa, tarefa particularmente urgente nestes tempos de mudança, em que a ilusão dos infinitos progressos do conhecimento científico e tecnológico e do aumento continuado da riqueza se sobrepõem à procura intransigente e lúcida do maior bem comum, incluindo a sustentabilidade ambiental e uma partilha justa e solidária, pilares de uma civilização que se queira plenamente humana.
A caridade também deve revestir uma dimensão crítica, isto é, estar habilitada a discernir sobre as situações com que nos deparamos, por forma a superar os falsos juízos que prevalecem em algumas mentalidades e geram barreiras intransponíveis, os pressupostos errados indutores de más políticas e de pseudossoluções que se revelam indesejáveis do ponto de vista dos direitos dos excluídos e marginalizados. Luciano Manicardi refere casos concretos e atuais bem elucidativos, quando aponta entre outros, o exemplo da «criminalização do pobre» ou a barreira do medo na aproximação ao estrangeiro.
Logo no primeiro capítulo do livro («A caridade da razão»), o leitor é convocado a despojar-se dos seus próprios preconceitos e incentivado a disponibilizar-se interiormente para aceitar a verdade da caridade. Afinal trata-se desta coisa simples: «...dizer a palavra evangélica, que também é dizer mal do mal, como fazia Jesus ao denunciar a hipocrisia, e fazer aquilo que se diz, pôr em prática a palavra evangélica».
Responsabilidade pessoal e respostas institucionais e organizadas são duas exigências decorrentes da caridade, que devem caminhar a par.
É deste quadro de referência que o Autor parte para um percurso de indagação acerca de cada uma das obras de misericórdia, tal como têm sido formuladas pela tradição: as sete obras de misericórdia corporais, e as sete espirituais.
Qualquer prefaciador (o leitor também) se interroga acerca da oportunidade de uma leitura das chamadas obras de misericórdia e, talvez mesmo, desconfie do seu hipotético valor acrescentado. Com efeito, outros são os desafios do tempo; outras são as mentalidades de quem lhes tem de fazer face; outros são os instrumentos do homem e da mulher do século XXI acerca do conhecimento sobre si mesmo e sobre os mecanismos económicos e sociais em que assenta a organização da vida coletiva no mundo globalizado contemporâneo.
Luciano Manicardi não mostra insensibilidade a tais interrogações e, até, lucidamente, as antecipa e formula, logo nos primeiros parágrafos da obra. O seu propósito é, claramente, o de mostrar quanto é oportuno e necessário falar da caridade hoje e reaprender a sua gramática elementar.
O caminho escolhido pelo Autor é o das fontes da tradição bíblica (Antigo e Novo Testamento) e da literatura patrística, que ele aprofunda, exaustivamente, e enriquece, aqui e além, com o pensamento de autores de referência contemporâneos. Percorre, uma a uma, as 14 obras de misericórdia, recorda-lhes as raízes, desvenda-lhes sentidos que passam despercebidos aos não-especialistas, transporta para a contemporaneidade o seu alcance espiritual e implicações concomitantes. Faz jus ao título.
O leitor, que acolher a proposta de A caridade dá que fazer, encontrará, certamente, sob as vestes dos antigos enunciados, revisitados pela inteligência espiritual e o conhecimento bíblico deste monge leigo, um manancial riquíssimo de inspiração e de largueza de horizontes, onde procurar alicerces para o desenho e a construção da vida boa, indispensáveis para atravessarmos bem estes dias maus.
Conclusão
Numa época em que o virtual se sobrepõe ao real, a ponto de suplantá-lo e de fazer com que a distância da não-relação pareça levar a melhor sobre a proximidade, também a caridade corre o risco de perder as suas conotações próprias e irrenunciáveis, que fazem dela um elemento decisivo do encontro e da relação com o outro. Uma caridade à distância, sem encontro frente a frente, sem compromisso pessoal, poderá continuar a chamar-se caridade? Uma caridade reduzida a filantropia ou a beneficência poderá continuar a crer e a revelar o encontro com Cristo no outro? A tradição das obras de misericórdia encontra, hoje, uma renovada atualidade, precisamente no fazer-se memória do essencial, e de um essencial que corre o risco de se perder: ou seja, o facto de a caridade ser encontro de rostos, discernimento concreto das necessidades do corpo e da alma, história quotidiana, gesto e palavra, capacidade de relação, de escuta e de atenção. É atividade eminentemente espiritual, precisamente no seu acontecer no corpo e graças ao corpo. É cuidado do outro e ação pelo outro e, ao mesmo tempo, cuidado de si e ação e trabalho sobre si. Fazer o bem também é fazer bem a si próprio. Fazer o bem contribui para o bem-estar da pessoa. Este é um dos sentidos do refrão bíblico: «Faz isto e viverás» (cf. Lv 18,5; Dt 4,1; 5,29; 6,24; Lc 10,28; etc.). Em suma, na obediência ao mandamento divino, à Tora, encontrarás vida e felicidade, encontrar-te-ás a ti próprio. «Amarás o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19,18; Mt 19,19), ou seja, amando o outro, amar-te-ás a ti próprio e descobrirás que o teu verdadeiro «ti mesmo» é aquele que ousa amar. Compreende-se assim a estreita ligação entre mandamento e promessa contida na expressão «faz isto e viverás»: amando, pondo em prática os gestos da caridade, tu serás finalmente quem és. Nesta perspetiva bíblica, Palavra de Deus, princípio-realidade e rosto do outro contraem aliança e fazem nascer a pessoa para a sua subjetividade, colocando-a em relação vital com o Deus cuja palavra escuta, com a realidade à qual adere e com o outro que toma a seu cargo.
No texto bíblico na base da tradição das obras de misericórdia, a página de Mateus referente ao juízo universal (cf. Mt 25,31-46), Jesus afirma que há um «Reino preparado desde a criação do mundo» (Mt 25,34) para aqueles que amam concretamente o irmão que vêem. A primeira carta de João afirma que há uma mensagem que ressoou desde o princípio: «Que nos amemos uns aos outros» (l Jo 3,11), mensagem à qual se fechou Caim, ao matar o seu irmão (cf. l Jo 3,12). Esta mensagem, portanto, muito antes de ter ressoado numa profissão de fé ou numa igreja, ressoou desde a criação no coração de cada homem. E o lugar onde, ainda hoje e sempre, ressoa esta mensagem é a humanidade do homem criado à imagem de Deus, é o rosto do outro homem, rosto que é a única visibilidade do Deus invisível: «Viste o teu irmão, viste o teu Deus». Essa mensagem está inscrita no profundo do coração de cada um, no desejo de cada um.
E é precisamente pelo nosso desejo que podemos aprender a fazer bem ao outro. Revela-o Jesus ao dizer-nos que façamos aos outros aquilo que gostaríamos que nos fizessem a nós (cf. Mt 7,12). E o nosso desejo é ser amados, vistos, alcançados e tocados na nossa necessidade, na nossa pobreza, em suma, na nossa unicidade. Eis a paradoxal realização do desejo cristão: Exprimiu-a bem Antão, pai dos monges: «Quem faz bem ao próximo, faz bem a si mesmo» e, portanto, prossegue Antão, «quem aprende a amar-se a si mesmo, ama a todos».
Esta mensagem tão universal significa que, segundo a própria Bíblia, até ao não-crente é possível uma ética, ainda mais, na perspectiva da revelação cristã, e até uma ética teológica, porque, amando concretamente o outro, chega-se, mesmo sem intenção, a imitar aquilo que o próprio Deus realizou criando: dar de comer, dar de beber, vestir, ter paciência, perdoar, consolar. E também uma ética cristológica porque, como diz Jesus, aquilo que se tiver feito ao outro por ser outro, fez-se a Cristo mesmo sem se ter disso conhecimento. E ainda uma ética escatológica, se é verdade que o juízo será medido segundo a caridade concreta, e será uma surpresa inesperada e desconcertante: «Senhor, quando foi que te vimos com fome e te demos de comer, ou com sede e te demos de beber? Quando te vimos peregrino e te recolhemos, ou nu e te vestimos?» (Mt 25,37-38).
A tradição das obras de misericórdia, particularmente cara ao crente, remete, portanto, para uma práxis de humanidade que se sobrepõe aos vários tipos de fé e de crença, e que pode unir cada homem, mesmo aqueles que não se professam crentes. Ela pede ao homem que tome a seu cargo quem é necessitado, que tome a sério o sofrimento do outro, e afirma que o homem é homem se acredita na humanidade do outro, mesmo que esta esteja ferida ou diminuída, e se ousa fazer ao outro aquilo que gostaria que lhe fizessem a si. O outro, que está doente, na prisão, nu, faminto, sem casa, apela à consciência do homem e pode devolvê-la àquele estado de solidariedade e de partilha que liberta quem a põe em prática, ainda antes de quem dela beneficia.
Nestes tempos difíceis, recordar a tradição das obras de misericórdia significa apreender a caridade como arte do encontro, como arte da relação, como arte de viver, mas significa sobretudo novo impulso de humanidade, para não permitir que o cinismo, a barbárie e a indiferença levem a melhor.
Os próximos títulos da coleção “Poéticas do viver crente” são “Atravessar a própria solidão” (Carlos Antunes), “O Evangelho da beleza” (António Marto, Gianfranco Ravasi, Marko Rupnik) e “Os beijos não dados” (Ermes Ronchi).
Manuela Silva (apresentação), Luciano Manicardi (conclusão)
In A caridade dá que fazer, ed. Paulinas
15.06.11







