Vemos, ouvimos e lemos
Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosIgreja e CulturaPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosPerspetivasConcílio Vaticano II - 50 anosBrevesAgenda VídeosLigaçõesArquivo

O Cristianismo fonte de uma cultura de Beleza

«Sabeis que a humanidade pode passar sem os Ingleses, pode passar sem a Alemanha, nada lhe resulta mais fácil do que passar sem os Russos, para viver não necessita de ciência nem de pão, mas só a beleza lhe e indispensável, pois, sem beleza, já não haveria nada a fazer neste mundo! Aí reside todo o segredo; toda a historia está aí». Assim exprime Dostoievski a sua profunda convicção, na obra Os possessos.

Uma outra grande figura do realismo russo, Gogol, abandonado às suas amargas ilusões, exclama: «Como é terrível a nossa vida e os seus contrastes entre o sonho e a realidade… Mais te teria valido, ó beleza, não existir, permanecer alheia a este mundo…!».

Por sua vez, no primeiro volume da sua monumental obra Glória. A perceção da forma, H. U. Von Balthasar escreve que «a nossa palavra inicial se chama beleza» e que «a beleza é, também, a última palavra que o intelecto pensante pode ousar pronunciar!». E a razão da afirmação é que o homem é imagem de Deus-beleza e palavra de resposta ao Deus vivo, por conseguinte forma (imagem) que não coarta o espírito e a liberdade, mas se identifica com eles.

Perante as imagens insuportáveis do horror e da angústia, deve ser, pois, proposta a questão da estética teológica, da teologia da beleza em relação com a cultura e as diversas formas da arte. No centro da nossa reflexão estará a cruz, acontecimento absolutamente decisivo, no qual o homem é definido pela «forma de Cristo» (Gl 4,19), onde a beleza de Deus se manifestou de forma paradoxal e suprema, por conseguinte, na sua originalidade.

 

A atualidade do belo: entre a utopia e o desencanto, «a via da beleza»

A época da chamada modernidade é caracterizada pela «razão forte», absoluta, e pela utopia: a época em que a razão moderna pensava ter compreendido tudo e em que a vontade de poder das ideologias pretendia impor à realidade, complexa e dramática, a totalidade clara e sem sombras da ideia, a aspiração utópica de um «reino do homem» perfeito. Nesta ambição, não restava espaço para a beleza, porque não pode haver lugar para ela onde não se reconheça o que está mais para além da realidade, o indizível, o inefável, o mistério. A beleza evoca, não captura; suscita, não prende; invoca, não presume. Por isso, no tempo da utopia da razão adulta, a beleza foi exilada ou reduzida a cálculo ou kitsch. Afirma von Balthasar: «A beleza desinteressada, sem a qual o velho mundo era incapaz de compreender-se, despediu-se, na ponta dos pés, do mundo moderno dos interesses, para abandoná-lo à sua cupidez e à sua tristeza». A consequência dramática deste exílio da beleza está na inevitável perda do sentido do verdadeiro e do bem: «Num mundo sem beleza... também o bem perdeu a sua força de atração, a evidência do seu dever ser cumprido... Num mundo que não se crê mais capaz de afirmar o belo, os argumentos em favor da verdade esgotaram a sua força de conclusão lógica».

De igual modo se exprimiu A. Solzenitzyn, em Estocolmo, ao receber o Prémio Nobel: «O mundo moderno, agarrando-se à grande árvore do ser, partiu o ramo da verdade e do bem. Resta só o ramo da beleza, e compete-lhe, agora, assumir toda a linfa do tronco. A força de convicção que está ínsita numa autêntica obra de arte é absolutamente inconfundível, obriga a submeter-se, mesmo o coração mais hostil».

No final da época moderna, torna-se urgente uma recuperação da beleza da verdade e do bem que os torne amáveis porque, como diz Sto. Agostinho, «só se pode amar o que é belo». A uma humanidade que descobriu tão intensamente a mundaneidade do mundo e procurou emancipar-se de toda a perspetiva estranha ao horizonte terreno, é necessário, mais do que nunca, propor a verdade amável, o bem atraente, o «escândalo», ao mesmo tempo fascinante e inquietante da humanidade de Deus. Quer dizer, é necessário redescobrir a chave estética da aproximação à verdade que salva, ao bem que liberta.

A cultura da pós-modernidade é caracterizada pela razão débil e pelo desencanto em que a visão totalitária da razão cedeu o lugar a uma visão fragmentada, a massificação das ideologias deu lugar à multidão de solidões. Nesta cultura niilista, do vazio de verdades e valores universais, de suspeita em relação a todos os grandes horizontes de sentido, só a beleza pode oferecer-se como via de encontro com aquilo pelo qual valha a pena viver e viver juntos, com aquilo que seja capaz de vencer a dor e a morte, e dar esperança à vida.

Entre a utopia e o desencanto apresenta-se-nos, hoje, a redescoberta do belo, «a via da beleza» como metáfora de um caminho possível e fecundo para restituir aos fragmentos um horizonte de sentido e captar, na Verdade, no Bem e no Amor últimos, a verdadeira fonte da dignidade e da beleza de cada fragmento.

«O homem não pode viver num mundo sem beleza e esta é, em ultima instância, um reflexo e uma participação da gloria (beleza) de Deus. Depois de séculos de saturação pela moral e pela psicologia, a consciência contemporânea reclama a estética e a mística», nota Olegario de Cardedal.

É preciso, pois, abrir-se ao sentido do belo, a ser educado ao amor da beleza que salva, oferecida na revelação cristã. Só a compreensão da beleza da verdade e do bem poderá estar em condições de falar com eficácia ao mundo humano, demasiado humano, que é o nosso mundo pós-moderno, à razão e ao coração do homem pós-moderno.

Ele não tem necessidade de provas de força (apodíticas), depois de tantas oferecidas pelas ideologias. Não tem sequer necessidade de renúncias débeis, de um estéril refúgio no privado individual. Aquilo de que todos temos necessidade é da oferta da proximidade do Amor, capaz de misericórdia e compaixão – redentor.

O rosto da verdade e do bem que mais pode atrair a si a humanidade e o da beleza humilde do Amor eterno, incarnado e crucificado. A estética teológica é chamada a anunciar aos homens, em chave de beleza, a alegria da salvação que, no Verbo incarnado, lhes foi e é dada.

Revisitar as linguagens da beleza, na memoria teológica e cultural do Ocidente é, pois, o caminho para responder à questão decisiva sobre onde e como poderá ser possível, ao pensamento moderno e aos homens de hoje, reapropriar-se da via salvífica da beleza, e como ela é fonte de uma cultura de beleza.

 

Esta transcrição omite as notas de rodapé.

 

D. António Marto
Bispo de Leiria-Fátima
In O Evangelho da Beleza, ed. Paulinas
19.05.12

Redes sociais, e-mail, imprimir

Capa

O Evangelho da Beleza

Autores
D. António Marto
D. Gianfranco Ravasi
P. Marko Rupnik

Editora
Paulinas

Ano
2012

Páginas
128

Preço
10,00 €

ISBN
978-989-673-238-7











Citação













Citação












Citação

 

Ligações e contactos

 

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Subscreva

 


 

 


 

 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página

 

 

 

2011: Eurico Carrapatoso. Conheça os distinguidos das edições anteriores.
Leia a última edição do Observatório da Cultura e os números anteriores.