IMpressão digital
Cinema

Manoel de Oliveira: o espanto pelo enigma do Verbo feito carne

Depois de tantos filmes, desde Le Soulier de Satin em 2005 até às filmagens para Singularidades de uma Rapariga Loira, na altura em que ele faz 100 anos e eu afinal só 25 na sua companhia (e parece a vida inteira), depois de já tantas vezes ter afirmado, por escrito e aos quatro ventos, a honra e a alegria que é tantas vezes ter podido tomar parte de actor e na sua obra de grande cineasta, o que nunca me cansarei de admirar é a sua noção de responsabilidade perante os de outros como artista, ou perante a vida, como queiram. Já está no Acto da Primavera, obra que no ecrã me deixou para sempre fiel aos seus filmes, no texto com que o apresentador anuncia o auto: «Contemple isto qualquer pecador!». Trata-se do auto do sofrimento de Nosso Senhor, eu sei. Mas o mesmo diria Manoel de Oliveira de cada filme que faz. Que faz menos para exprimir-se artisticamente que para que os outros, «qualquer pecador», toda a gente, o veja.

Nessa sequência em que o próprio Oliveira se filma e à máquina de filmar e ao público da aldeia da Curralha que chega para ver o auto, aparece um automóvel com jovens burgueses turistas e há uma pecadora loira que comenta. «Ó filha, a vida de Cristo, que frete!» Quem não terá ouvido os muitos pecadores que ao longo da longa vida deste realizador não terão dito: «Ó filha, um filme do Manoel de Oliveira, que frete!»? E ainda no Acto diz outro, como boi que olha para palácio: «Que giro!». A mesma grosseria, duas opiniões.

Manoel de Oliveira, a câmara a filmar e a gravar o som de um filme que começa com as primeiras frases do Evangelho de S. João (« No princípio era o Verbo.»), um actor que declama o seu papel e isto perante o público, razão de ser do duplo espectáculo, o do teatro daqueles camponeses e o do filme que se está a rodar. É da relação com o público que falo. Nunca me cansarei de admirar a noção que ele tem, como poucos cineastas e demais artistas, de que uma obra de arte é uma intervenção pública, uma forma de comunicar com os outros. As formas que o seu cinema adquire o estão constantemente reflectindo ao não permitirem nunca esse momento de ilusão que se gera tantas vezes no cinema e que faz com que o espectador se esqueça de que está vivo e por isso tem de pensar, que um filme é um artefacto e que foi feito por um outro alguém que tem coisas para lhe dizer.

Se no caso de o Acto da Primavera, é explícito o tema da própria existência humana e da sua relação com uma transcendência Cristã, em toda a sua obra é impressionante a fidelidade à mesma ideia, o constante espanto sobre o enigma do Verbo feito carne. E é impressionante a lucidez, que nunca perde, de saber que também nessa vida se insere a arte e o seu cinema. A sua arte, na total exposição do seu próprio ponto de vista, lealmente, sem truques de ilusão, nunca deixa de ser uma maneira de estar na vida perante os outros, de estar em público, e de desafiar os outros a uma mais profunda consciência do que é viver. Essa presença do próprio público, filmado no princípio do Acto, parece-me emblemática da sua maneira de encarar o cinema: uma intervenção pública, uma tomada de posição, um momento político. A afirmação de uma responsabilidade individual perante todos. Porque para Oliveira, julgo eu, os outros são sempre toda a gente, ou seja, cada um e o mundo inteiro, quem quiser. (...)

É isso que ainda hoje me espanta e mais admiro: o seu tão grande respeito pelo espectador. Para ele, o outro são sempre os outros, todos, é o mundo inteiro. O seu cinema não é privado. É feito para o momento da projecção do filme, nem que esse momento seja nunca ou para uma sala vazia. Será para quando essas imagens da vida se tornarem matéria possível criada por alguém para criar mais vida, quando olharmos para o seu cinema como um desafio à responsabilidade de cada um. «Que frete!»? Já poucos o ousam dizer. Ainda bem.

Luís Miguel Cintra

in Jornal de Letras, 03.12.2008

29.12.2008

 

Subscreva

 

Topo | Voltar | Enviar | Imprimir

 

 

barra rodapé

Acto da Primavera
































Edição mais recente do ObservatórioOutras edições do Observatório
Edição recente do Prémio de Cultura Padre Manuel AntunesOutras edições do Prémio de Cultura Padre Manuel Antunes
Quem somos
Página de entrada