A Vida: arqueologia da revolução
A cultura, como rede simbólica apreendida que codifica e estrutura a relação de cada um consigo mesmo e com o (seu) mundo, forma a nossa atenção. Foi assim que Simone Weil a definiu: “formação da atenção”. Neste sentido, a expressão de João Paulo II “cultura da vida” poderá ganhar outros contornos. Onde nos pode levar a formação da atenção à vida? Algumas breves notas:
1. Em primeiro lugar, e começando pelo fim, leva-nos à morte. A sociedade contemporânea não propõe verdadeiramente uma cultura da morte, mas uma cultura de morte. O obnubilamento sistemático ou a banalização desenfreada da morte conduz à não-relação com esse vector fundamental na construção da identidade pessoal. Se a cultura educa a atenção, o cuidado com a morte levaria, em consequência e rigor, à revalorização da vida consciente das suas potencialidades e limites. Assim, a “cultura da vida”, para existir, não se pode opor ao confronto com a finitude humana. Pelo contrário, deve apresentar, consciencializar e enfrentar essa limitação: ser “morte assumida”, para ser verdadeira Vida. A grafia da palavra em maiúscula propõe figurar a experiência da superação, na sua integração, da morte na vida. O Vivente é aquele que venceu o reino das sombras, não o que fugiu dele. Uma primeira exigência da “cultura da Vida” será a de uma outra relação com a morte e a sua aproximação - o envelhecimento é um problema central do nosso tempo, a exigir um enquadramento na vida. Afinal, a vida não pode ser um exclusivo, como parece, do ícone da contemporaneidade: o jovem. Como envelhecer na Vida? É uma procura a que esta cultura nova deve dar respostas.
2. Outra consequência de uma “cultura da Vida” será um olhar renovado sobre os começos. Tradicionalmente, quer nos comportamentos e modos de vida quer na metafísica ocidental, dá-se mais atenção ao fim do que ao início. Vivemos dentro de um pensamento apocalíptico ou escatológico. Um dos mais proeminentes filósofos contemporâneos, Peter Sloterdijk, reconheceu-o e contraria-o: “É um facto, o nascimento para mim é o tema dos temas.” (1) E na mesma entrevista afirma, de modo provocador: “Em tudo o que publiquei ao longo dos últimos anos existe uma perspectiva sobre uma teoria do homem considerado como um animal do Advento. Vejo mil razões pelas quais os homens deveriam renunciar à metafísica tradicional, ao fascínio que exercem sobre ela a morte e a perfeição. Mas critico ao mesmo tempo a trivialidade da simples não-metafísica. Em cada um dos meus livros tentei desenvolver uma nova linguagem que deixasse mais espaço ao fascínio pelos nascimentos e pelas chegadas ao mundo. Os homens são animais que vêm, animais de chegada, animais de experiência, estão sempre a caminho (...)” (2). A cultura da Vida exige um outro modo de pensar que se espelhará em novos comportamentos. Pensamos/sentimos menos o nascer que o pôr-do-sol. Não será mais fácil descobrir o encanto do Dom no começo da estrada?
3. Sobre o começo, a chegada à vida, a vida que desperta e se desenvolve até ao declínio, a ciência tem, hoje, uma palavra/actuação fundamental. O desenvolvimento do conhecimento e da técnica permitiu compreender melhor os mecanismos da criação e o seu desenrolar, sem, no entanto, apagar o mistério que ela continua a ser. As consequências biológicas, ecológicas, politicas e éticas da tecno-ciência são o campo de uma nova disciplina, a Bioética, que tem e terá um contributo insubstituível na formação da atenção à vida. À vida que nasce (ou não), que cresce (e como) e finda (e quando). A proposta de uma Ecologia humana faz parte desta cultura, que tem que se manifestar em escolhas legislativas e politicas porque, obviamente, elas manifestam sempre valores. E, se da vida falamos, o tema da corporeidade é incontornável: o corpo, da concepção à morte, é sujeito e não deve ser confundido com um objecto. E, num sentido mais lato, a dignidade da vida humana impõe que a Pessoa nunca seja tratada como um meio. Por outro lado, esta vida só poderá ser Vida se responsavelmente souber cuidar da “casa comum” que nos abriga e sustenta, e preservando-a para as gerações futuras. Também nesta responsabilização ecológica se manifestará uma autêntica cultura da Vida.
4. A vida só pode ser humana na medida em que for acolhida por humanos. Aqui não podemos esquecer esse lugar - ou será mais um tempo? - em que a obscuridade é fundamental. A família. A asa protectora, o seio onde a vida pode nascer e ser alimentada e acarinhada. Crescer é bem mais do que sobreviver. A obscuridade - tema que retomo de Hanna Arendt - é o reduto seguro que protege da violência e dos holofotes do espaço público, mas que forma para ele personalidades fortes capazes de o enfrentar e reconstruir. Não esconde, mas protege e dá segurança. Esta formação exige tempo, estabilidade, persistência - características pouco hodiernas. Uma cultura da Vida não poderá abandonar a protecção social da família, a sua valorização, a proposta da sua estabilidade. Às famílias pede-se o acolhimento amoroso e a nutrição da Vida em abundância, não apenas da vida. Aqui começa a educação que deverá ser acompanhada pela escola. Uma educação para a liberdade, porque só nela a Vida se pode revelar e ser aquilo que é - outra definição da verdade. Educar para a liberdade/verdade implica uma pedagogia da escolha e da responsabilização, uma pedagogia da participação e da exigência, da alegria e do sacrifício. Educar para a Vida, implica apresentá-la na sua totalidade contraditória e complexa: a festa e o luto, a facilidade e a dificuldade, a exaltação e o sofrimento, e as variantes cromáticas que ultrapassam a simplificação do tudo branco ou tudo preto. À imagem da viagem pascal de Dante, educar é guiar por entre a totalidade aberta da existência humana e assim preparar para o mundo, introduzir nele os recém-chegados - e protegê-lo (ao mundo), porque o começo de uma nova vida não é o seu principio. Preservar, conservar, transmitir e introduzir no mundo, para que a revolução da Vida seja possível, é o trabalho dos educadores.
5. Uma última nota. O homem encontrou, desde o seu começo, na experiência religiosa e na experiência estética (então inseparáveis) dois modos de alargamento da vida. A novidade, a inquietude, o sinal do início, a exigência permanente do recomeçar, a destruição de ideias ou caminhos previstos é, nesta história, constante. Tal como a relação íntima com a revelação do Vivo abana as estruturas estabelecidas e propõe constantemente a mudança, também a abertura de um mundo, instaurado/rasgado pela obra de arte, permite a recriação do nosso horizonte de possibilidades. Essa Vida larga pode ser a via longa para encontrar o Vivo. Mas esta relação pessoal com a própria existência é afectada no nosso tempo pela separação que os média e a cultura do entretenimento introduzem, produzindo mesmo um afastamento da própria vida, com a ilusão de viver outras vidas e a alienação de si mesmo em simulacros e aparências (3). Quer na manifestação da experiência religiosa quer na estética, a cultura da Vida salienta que a distância criadora instaurada pela mediação deve ser veículo de um maior auto-conhecimento da Vida da qual participamos e não de um afastamento alienante. Participamos já da Vida do Vivo.
Este humilde contributo para pensar os fundamentos e consequências de uma “cultura da Vida”, procurou colocar como central a própria definição de cultura como formação da Atenção: a necessidade premente de atender e assinalar a Vida, porque ela é caminho de encontro renovador com o Vivo que Se dá em abundância.
Paulo Vale
(1) Peter Sloterdijk, Ensaio sobre a intoxicação voluntária, Lisboa, Fenda, 2001, p. 55.
(2) Ibidem, p. 59.
(3) Cf. Paulo Vale, Cultura do entretenimento in Observatório da Cultura 3 (Novembro 2004), pp. 2-7.
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