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Cultura do entretenimento

Em Junho passado, a Comissão Episcopal da Cultura promoveu um Seminário sobre a "Cultura do Entretenimento". O texto que se segue é uma memória elaborada dessa actividade.

 

1.
No prelúdio às aventuras do seu Fausto, Goethe colocou na voz de um Director de teatro as seguintes palavras:

“Quem cá vem é para ver, quer sensação.
Se lhe enchermos o olho com enredos,
A multidão fica de boca aberta,
E vós ganhais com isso fama a rodos,
Sois homem de sucesso, pela certa.
A massa só pela massa se conquista,
Cada um colhe aí o que lhe agrada.
Quem muito oferece, a cada um assiste,
E toda a gente sai daqui encantada.

Dais uma peça? Então dai-a em pedaços!
Com tal guisado não tereis fracassos:
É fácil de servir, de imaginar.” (1)

 

2.
Pensar o entretenimento como característica antropológica e cultural não nos encerra no presente. Como percebemos na citação de Goethe, não é uma marca exclusiva do nosso tempo, mas a contemporaneidade dá-nos novas coordenadas onde devemos procurar a compreensão deste fenómeno social. Devemos considerar o entretenimento com enfatizado optimismo ou com um pessimismo irredutível? (2)

 

3.
A revolução industrial, com o progresso técnico, a maior facilidade nas vias de comunicação e a complexificação do tecido urbano, serve de marco à mutação na cultura: esta ganhou mobilidade, expansão, e um notável lugar na expressão das sociabilidades. Desde o livro de bolso à multiplicação dos teatros (e, posteriormente, dos cinemas), das tertúlias aos jantares literários democratizaram-se os hábitos de uma vivência do saber, que passou a estar aliado ao prazer e à diversão, facto que se reforçou com a emergência dos meios de comunicação de massa, sobretudo a televisão.

Se a democratização, multiplicação e circulação das propostas culturais de ocupação dos tempos livres são aspectos positivos de uma mutação profunda nos modos de vida, por outro lado, o perigo de substituir a arte e a cultura pelo entretenimento, ou mesmo de a arte se tornar mero produto de entretenimento, é bem real. Ainda mais perverso é compreender que o entretenimento pode ser meio de manipulação e alienação das massas, numa vontade de poder que exige deixá-las alheadas e anestesiadas.

Então, como encarar o desejo de entretenimento?

 

4.
Deparamos recentemente com uma dificuldade na distinção de antinomias clássicas: superficialidade-profundidade; verdadeiro-ficcional; real-virtual... Hoje misturam-se e interpenetram-se. Se o mais fundo está na pele, se as notícias e as novelas se sucedem numa amálgama indiferenciada, se o espectáculo se torna na própria realidade, onde encontrar critérios que permitam analisar e julgar o real e as propostas culturais? Como distinguir o bom do mau entretenimento?

Não podemos separar a categoria “entretenimento” de “cultura”, mas é-nos exigido um esforço de compreensão deste fenómeno. Se existe, como lhe chamava Montaigne, um “honesto entretenimento”,(3) entendido como um prazer que advém, por exemplo, do passar o tempo em companhia de um livro ou noutra actividade cultural, as indústrias da cultura, procurando entreter a todo o custo aumentando audiências e públicos, conduzem à rarefacção de conteúdos, simplificação dos conceitos e consequente banalização. É a ditadura do meio. Mas esta tendência torna-se mais perigosa quando a banalização nos meios de comunicação e nos produtos culturais se transfere para os centros produtores de saberes e elites. Quando os lugares de ensino se transformam em espelhos da simplificação banalizante dos media, em especial da televisão. À imagem do espectáculo, é recusado o sacrifício e a dificuldade em favor da espontaneidade imediatista, simplista e redutora. O tempo é ocupado no consumo ávido do que se apresenta pré-fabricado. Tudo é reduzido. Se é difícil, corta-se. Das obras de referência lêem-se os resumos e os manuais são, por sua vez, condensados em esquemas.

Assim, a vários níveis, temos assistido à pimbalização das elites portuguesas. Sobre todos paira a mesma mitologia, que é no fundo a da omnipresente cultura pop. Tudo é zapping, link, montagem, citação, sobreposição.

 

5.
Tendo-se tornado numa indústria, o entretenimento é também parte da sociedade de consumo. Consumo marcado pela aptidão cultural ou pelos meios económicos que se possuem – e deste modo não deixou de ser classista: quem tem dinheiro acede a uma oferta cultural mais lata; quem não tem participa na grande festa do consumo que é servida pela televisão, com a consequente (de)formação identitária.

Na modelação das mentalidades a influência da televisão traduz-se no facilitismo; na necessidade de desejar e consumir sempre coisas novas; na diminuição de sentido crítico; na procura obsidiante de uma compaginação à moda; na recusa da aprendizagem da complexidade.

O consumo de entretenimento segue o mesmo esquema da outra mercadoria: logo que o desejo é satisfeito, reproduz-se a insatisfação e surge outro desejo, num circulo vicioso interminável. O consumo gera consumo, um produto requer outro, e o vazio vai-se adensando.

 

6.
Dentro da cultura do entretenimento o humor e o riso ganharam um lugar especial. “O riso é a grande tragédia contemporânea”(4). Isto porque deixou de haver espaço para a tragédia, para a aristotélica catarse em que a representação do vivido é forma de o olhar e interpretar, superando-o. O tempo agora é de divertimento, de passagem e de riso sobre o vazio. Tudo pode ser objecto de humor e todas as situações o devem incluir. É um modo de leveza, de aparente facilidade e boa disposição.

Então, a grande tragédia contemporânea é que não há tragédia. A tragédia é imediatamente transformada em espectáculo. Recebemos o mundo e a realidade em zapping. Falta o tempo para a interiorização do efeito. E esse tempo demorado, essa lentidão, é fundamental para o que há de especifico na formação pessoal e que está na base da cultura e da acção da Igreja: a libertação da própria pessoa.

 

7.
O entretenimento pode ser, segundo Isabel Allegro Magalhães, interpretado como uma colonização, uma ocupação de uma espaço interior vago. Um tempo que temos entre outros tempos já ocupados é colonizado. Esta ocupação da vontade e do espírito por algo que vem do exterior, que entretém, é o oposto do tempo de gestação, de solidão, de pausa, de criação, exigido pela construção de uma personalidade autónoma.

O entretenimento não é simples divertimento, prazer, gosto ou elevação estética. É a vivência do espectáculo, da exterioridade, do estar fora de si, da aparência, da alienação.

Esta ocupação trava caminhos individuais, igualiza e generaliza. Transforma a pessoa em mais um elemento das massas, com a pretensão de responder a expectativas genuínas e à vontade do público. Deste modo infantiliza, constrói o fácil, o imediato, a imitação da vida em vez da própria vida. Não problematiza nem abre à transcendência.

O problema reside na incapacidade de simbolização (e é o símbolo que religa a superfície e o fundo). Deslizando à superfície tornamo-nos incapazes de transcender o visível, o tangível, a pele. A esta ausência sucedem-se outras: a da capacidade critica e a da indignação. Tudo se torna possível e aceitável. Recuamos e cedemos.

Alastra na sociedade contemporânea o sentimento de vazio e deserto. A perda ou empobrecimento das tradições religiosas herdadas conduz a procuras por vezes sem norte e a respostas sem verdadeira transcendência. Mas essa experiência de vazio e de busca podem-se tornar numa verdadeira oportunidade para a qual a Igreja deve propor desafios de qualidade – contrariando assim a corrente medíocre. As não-certezas e a consequente perda das seguranças, pode ser um novo inicio: é essa a atitude que provoca uma disposição de abertura espiritual. O Naufrágio onde se perde tudo, é a metáfora perfeita da experiência filosófica inicial. Perdido o supérfluo e acessório o desejo de sabedoria essencial.

 

8.
Emerge na sociedade contemporânea um novo tipo de angústia: a angústia do preenchimento do tempo livre. Ter muito para fazer, muitas propostas culturais, uma agenda de possibilidades e nenhuma parecer interessante. O tempo livre e a experiência do tédio não é um problema novo, é, aliás, recorrente na história. Escreveu Eric Weil: “Se, obtido tudo o que razoavelmente se pode desejar, as pessoas estão ainda insatisfeitas e se todo o mundo partilha do mesmo sentimento de insatisfação, pode então desencadear-se o recurso a coisas não razoáveis. Estamos todos de acordo num ponto, a saber: que a violência é o único verdadeiro passatempo”(5). Este problema tem que nos fazer pensar sobre o sentido de cultura e educação como projecto de construção da identidade de homens livres. E o filósofo propõe um caminho: “uma educação que obrigaria cada um a admitir a sua perplexidade, o seu tédio, o seu desespero – não a confessa-lo publicamente a uma autoridade ou especialista, mas a confessar a si mesmo que está à procura de qualquer coisa que não tem e que deseja mais do que tudo no mundo” (6).

 

9.
Vivendo numa cultura de entretenimento, conscientes de que nela estamos mergulhados de forma inconsciente, é-nos exigido um olhar crítico sobre o que nos pode construir como homens livres, não recusando a faceta lúdica da existência, mas fazendo propostas alternativas de resistência à infantilização e alienação que o entretenimento podem esconder. Era importante que algumas instâncias resistissem e contrariassem esta generalizada política do superficial e efémero, nomeadamente a Escola e a Igreja. Que sejam essa forma de lentidão que permite, em tempos de velocidade, a construção de uma humanidade mais livre e reconciliada.

 

(1) GOETHE, Johann W., Fausto, trad. João Barrento, Lisboa, Relógio d´Água, 1999, p.31.
(2) Apoiados nas reflexões que a Profª Drª Isabel Allegro Magalhães, o Dr. António Mega Ferreira, o Dr. João Henrique Silva e o Dr. Nuno Artur Silva apresentaram no Encontro com o Grupo de Trabalho da CEC, no dia 25 de Junho de 2004, prosseguiremos a análise desta categoria.
(3) Montaigne citado por Mega Ferreira.
(4) Nuno Artur Silva no encontro promovido com o Grupo de Trabalho da CEC.
(5) WEIL, Eric, A Educação enquanto problema do nosso tempo in ARENDT, Hannah, WEIL, Eric, RUSSEL, Bertrand, ORTEGA Y GASSET, "Quatro textos excêntricos", Lisboa, Relógio d´Água, 2000, p.62 . Segundo George Steiner, no livro O castelo do Barba-Azul, é o tédio vivido durante grande parte do séc. XIX e princípios do XX que levam à barbárie que se segue.
(6) Ibidem, p.67.


 

Paulo Vale
In Observatório da Cultura 3
Atualizado (mudança de grafismo da página) em 17.10.2023

 

 
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