Pedras angulares
Leitura

D. António Ferreira Gomes por D. Manuel Clemente

Como foi assinalado no nosso «site», publicou-se recentemente uma nova edição de textos de D. António Ferreira Gomes, que vem completar a já extensa lista de obras suas que a Fundação Spes tem vindo e editar. A presente obra tem por título Ser Bispo Conciliar no Exílio (1959-1969), e surge como 9.º volume da colecção “Mundo, Evangelho, Igreja”.

O livro contém uma introdução de D. Carlos Azevedo (actual Presidente da Fundação), textos das intervenções de D. António no Concílio Vaticano II, a tradução de um trabalho também para o Concílio, a que chamou Stimulus Pastorum (com Nota introdutória de David Sampaio Barbosa, e tradução de António Esteves Meireles, um “texto irónico” que recorda o homónimo de Frei Bartolomeu dos Mártires, no Concílio de Trento) e a “Actividade Pastoral do bispo do Porto em Valência (1960-1963)”, por Nuno Vieira. Este último texto constitui uma versão mais completa e ampliada da comunicação do autor no Congresso comemorativo do centenário do seu nascimento, em Maio de 2006.

No último dia de 2007, D. Manuel Clemente apresentou a obra no Centro Paroquial de Mafamude, Vila Nova de Gaia. Leia o texto e conheça um pouco mais da vida de D. António Ferreira Gomes.


Dispomos agora, em publicação acessível, do conjunto das reflexões do grande Bispo no âmbito do último Concílio Ecuménico.

Dadas as circunstâncias pessoais em que as fazia, são frequentes as alusões à situação da Igreja em Portugal na altura. Disto mesmo dão muito boa conta os introdutores de cada parte da colectânea. É essa, porventura, a faceta mais conhecida do grande bispo, com abundante literatura a propósito. Creio, ainda assim, que este volume traz detalhes e episódios originais e bem apreciados pelos co-autores.

Para insistir agora nalgum ponto de particular acuidade, permiti-me destacar a fundamentação doutrinal que D. António dá à sua actuação, naqueles tempos de activo exílio. Enuncio assim: mais do que eclesiológica e política, a posição de D. António Ferreira Gomes quer-se propriamente “teológica”, daí derivando as consequências eclesiológicas e mesmo políticas.

No âmbito da vasta e sólida bibliografia com que já conta a vida e a obra de D. António, o que adiantarei, não traz qualquer novidade. Mas, no âmbito concreto da obra hoje apresentada, renovará a sua evidência.

Na verdade, quando um tópico é recorrente na boca e na pena de um autor, tal significa que daí parte, para aí voltar. É o que sucede com o tópico propriamente “teológico” nos escritos aqui reunidos. Com a particular oportunidade de ser essa a urgência actual, no que à relação Igreja-Mundo respeita.

Lembrou-a recentemente o Papa Bento XVI, falando aos bispos portugueses: o essencial – muito para além da organização interna da Igreja – é falar de Deus aos nossos contemporâneos. E é importante verificar como D. António, noutro contexto - ainda moderno, mais progressista e mundialista -, também sentia tal urgência, para que a religião ganhasse actualidade e até alguma funcionalidade.


Temas a abordar no Concílio

Propondo temas a abordar no Concílio, D. António Ferreira Gomes, escrevia em 1960: “A universal e enorme acção do ateísmo, quer militante, sob a capa histórica da divina Providência, realmente pressagia e indica algo mais seguro: talvez a necessidade de algo mais sincero, mais profundo, de um conceito de Divindade mais operante. […] As reuniões internacionais e as associações de povos, como não podem proximamente ocupar-se da religião positiva, poderiam consolidar-se melhor no conhecimento do Supremo Criador e Salvador da ordem moral e jurídica no mundo (que com toda a certeza será entendido em sentido cristão)” (p. 23-24).

Um conceito de Divindade mais operante… D. António entreveria a grande vantagem de unir as religiões em torno de noções fundamentais e fundamentantes da respectiva marcha solidária, colaborando no que lhes é próprio e essencial para a inteira caminhada humana. Evidenciar-se-ia o que é comum a todas e chegar-se-ia ao que Cristo finalmente oferece.


Festa e centralidade de Deus

Começaríamos por celebrar o já comum, para prosseguirmos unidos. E era concreto, propondo para a consideração do Concílio: “Na liturgia e no culto que se deve prestar, tudo isto e outras coisas semelhantes devem constar, de forma elegante, para fiéis e infiéis. No calendário universal fazem falta os seguintes dias de festa: Do Deus criador do género humano, do Autor da lei natural, do garante da ordem moral e jurídica, do Remunerador, da Divina Providência, da Acção de Graças pelos benefícios recebidos, da Fraternidade sob Deus Pai (ou da Paternidade de Deus” (ibidem , p. 25).

Sugestivo elenco, programa ambicioso e, certamente, de aceitação difícil. Mas que poderia ser preventivo dos desvios “fundamentalistas” que alguma religião sofreu depois. A ter sido aceite e realizado pelo Concílio, alguma coisa salvaguardaria, em termos de acolhimento inter-religioso e base humanitária comum, religiosamente inspirada. Como, aliás, prosseguem hoje os que não desistem da paz.

Do lado da Igreja, necessário seria aparecer como entidade puramente religiosa e não enredada com algum poder deste mundo. Existindo só a partir de Deus, seria um desmentido prático da descrença ambiental. D. António considerava, já em Concílio, que “o problema da Igreja é realmente o ateísmo”; e este como um todo e não somente o “comunista” (ibidem, p. 52).

Noutro passo da sua intervenção conciliar, insiste na distinção dos campos, para que a imagem de Deus não se desacredite no mundo, nem com os poderes deste mundo: “Quando Cristo proclamou que se deve dar a César o que é de César, mas a Deus o que é de Deus, não se trata apenas de uma distinção entre coisa pública e religiosa, mas da criação de um novo e próprio (isto é, ateocrático) espaço ou esfera de assunto religioso” (ibidem, p. 67). Desta distinção seria a Igreja sinal e, por isso mesmo, chamariz.


Liberdade e Igreja

A pessoa humana, sim, mas transcendendo-se no convite ínsito que o Criador lhe faz. A Igreja também, como sinal e apelo a uma unidade maior e mais liberta. Di-lo, ao dissertar sobre a liberdade religiosa, fundada na consciência e necessariamente promovida pela Igreja: “Se o valor da liberdade não se coloca no verdadeiro sentido, isto é, na sua transcendência, então não se compreende a essência nem o fim da pessoa; então a permissão moral do mal não é aceite pela inteligência como vinda de um Deus bom e justo; nem são, portanto, admitidas as dimensões da salvação (e da perdição) da alma, quer para o indivíduo, quer para a humanidade, portanto, nem Redenção, nem Cristo, verdadeiramente Homem com os homens, as primícias e o modelo da nova criatura cuja lei é o Amor, isto é, a liberdade, a Igreja”(ibidem, p. 80).

É um dos pontos em que D. António mais se alarga. E com inteira razão, porque foi dos mais árduos de acertar no Concílio, onde não faltou quem estivesse mais pelos “direitos” da verdade objectiva do que pelos da pessoa em coincidir com ela. O prelado portucalense, baseando-se em S. Tomás, situa a liberdade religiosa na sua base mais segura: a dignidade da pessoa humana, incoercível na sua consciência, na adesão livre e responsável à verdade em que se transcende. Aqui sim, a liberdade da Igreja, fundada na adesão livre e libertadora ao convite divino.


Sobre o Stimulus Pastorum

Já depois do Concílio, mas inteiramente nele, D. António Ferreira Gomes volta ao tema teológico, num Stimulus Pastorum muito seu. Tratava-se agora de “libertar” Deus – a ideia de Deus – dum cativeiro mental persistente. Tão persistente, que polémicas e literaturas actuais ainda se enredam nele... Ideia errada, que tanto ligaria Deus à natureza, como o prenderia ao mundo, mesmo ao mundo político, qual garantia de boas ordens. Oiçamos o prelado portucalense, escrevendo em 1966: “O ateísmo moderno provém em grande parte duma ‘teologia’ de racionalismo primário, dum certo conceito de Deus como explicação dos fenómenos naturais, […] e por outro lado como fundamento da ordem moral e social – outrora como sustentáculo dos ceptros e dos tronos, hoje, da ordem, do bem comum, da paz e da hierarquia ‘queridas por Deus’ – enfim um deus ex machina, útil para resolver todas as tramóias e dispensar o homem de estudar, de esforçar-se, de responsabilizar-se e educar-se. […] É a respeito dum tal deus que o Bispo anglicano John Robison diz que ele aparece ao homem de hoje como ‘intelectualmente supérfluo, emocionalmente dispensável e moralmente intolerável’” (p. 124).

D. António Ferreira Gomes não entendia Deus assim. E chegava a ser benévolo para com os descrentes, reconhecendo-lhes uma demolição que libertaria o campo para a autenticidade divina e humana: “E não andarão muitos ‘ateus’ de hoje endireitando os caminhos do Senhor, esforçando-se negativa e mesmo positivamente por restituir Deus à sua absoluta Transcendência e por mostrar o homem adulto a si mesmo como ‘abertura’ para a Transcendência (condicionada, na sua actuação, pela Graça)?!...” (ibidem).

Aí o temos então, numa leitura breve e circunscrita. Relevando, também nesta obra, a coerência entre pensamento e atitude, no escopo permanente de construir uma Igreja mais teológica, para garantir uma prática mais evangélica e um serviço ao mundo mais libertador. Foi esse o seu caminho, de facto prudente, por tudo orientar para um notável fim; mas onde não faltariam justiça, fortaleza, e temperança. A lição aí está: “libertar” Deus de qualquer apriorismo nosso; libertar a Igreja para que, partindo só de Deus, liberte o homem e o mundo.

Parabéns à Fundação Spes e aos co-autores deste volume. Para que a memória das acções de D. António Ferreira Gomes mais uma vez se reforce com o pensamento que a informava. É esta a verdadeira actualidade das coisas.

 

Conheça os 8 volumes dos escritos de António Ferreira Gomes.

Artigo relacionado:
Ser bispo conciliar no exilio (inclui vídeo).

Texto da apresentação da obra: D. Manuel Clemente

in Voz Portucalense, 09.01.2008

Publicado em 15.01.2008

 

 

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