Projecto cultural
Conselho Pontifício da Cultura

Como é que a "Via Pulchritudinis" pode ser uma resposta da Igreja aos desafios do nosso tempo?

[Continuação do documento final da Assembleia Plenária do Conselho Pontifício da Cultura, 2006]

O Papa João Paulo II, incansável perscrutador dos sinais dos tempos, indica o caminho na sua Encíclica Fides et Ratio: “Pensando na nova evangelização, cuja urgência não me canso de recordar, faço apelo aos filósofos para que saibam aprofundar aquelas dimensões de verdade, bem e beleza, a que dá acesso a palavra de Deus. Isto torna-se ainda mais urgente, ao considerar os desafios que o novo milénio parece trazer consigo: eles tocam de modo particular as regiões e as culturas de antiga tradição cristã. Este cuidado deve considerar-se também um contributo fundamental e original para o avanço da nova evangelização.” (Fides et Ratio, n.º 103).

Este apelo ao filósofos poderá surpreender, mas não será a via pulchritudinis também uma via veritatis, na qual a pessoa humana se implica para descobrir a bonitas (1) do amor de Deus, fonte de toda a beleza, verdade e bem? A beleza, tal como a verdade e o bem, conduz-nos a Deus, a verdade primeira, bem supremo e a beleza em si mesmo. Mas a beleza significa mais do que a verdade ou o bem. Dizer que algo é belo é não só reconhecer-lhe uma inteligibilidade que o torna amável, mas também, especificando o nosso conhecimento, que nos atrai e, até, que nos cativa através de um esplendor capaz de suscitar o deslumbramento. Mais ainda, se ele exprime um certo poder de atracção, talvez o belo diga a própria realidade na perfeição da sua forma. Torna-se a sua epifania. Esse algo manifesta o belo ao exprimir o seu brilho interno. Este último é, para S. Tomás de Aquino, uma das três condições da beleza. No seu Tratado sobre a Trindade, na Suma Teológica, ele interroga-se sobre os atributos específicos de cada pessoa divina, associando a beleza à pessoa do Filho: “Pulchritudo habet similitudinem cum propriis Filii – A beleza expressa uma certa similitude com o que é próprio do Filho”. Seguidamente indica as três condições da beleza  para as aplicar a Cristo: a integridade ou a perfeição – integritas sive perfectio -, a justa proporção ou harmonia – proportio sive consonantia – e a claridade – claritas (Ia, qu. 39, art. 8). Se o bem diz o desejável, o belo diz ainda melhor o esplendor e a luz de uma perfeição que se manifesta.

A Via Pulchritudinis é um caminho pastoral que não se pode reduzir a uma aproximação filosófica. Mas o olhar do metafísico ajuda-nos a compreender porque é que a beleza é uma via real que leva até Deus. Sugerindo-nos quem Ele é, estimula em nós um desejo de gozar da paz da contemplação, não apenas porque só Ele pode satisfazer as nossas inteligências e os nossos corações, mas porque Ele contém em Si mesmo a perfeição do Ser, fonte harmoniosa e inesgotável de brilho e de luz. Para chegar a esse ponto, precisamos de saber como fazer a passagem do fenómeno para o fundamento: “Em toda a parte onde o homem descobre a presença dum apelo ao absoluto e ao transcendente, lá se abre uma fresta para a dimensão metafísica do real: na verdade, na beleza, nos valores morais, na pessoa do outro, no ser, em Deus. Um grande desafio, que nos espera no final deste milénio, é saber realizar a passagem, tão necessária como urgente, do fenómeno ao fundamento. Não é possível deter-se simplesmente na experiência; mesmo quando esta exprime e manifesta a interioridade do homem e a sua espiritualidade, é necessário que a reflexão especulativa alcance a substância espiritual e o fundamento que a sustenta. Portanto, um pensamento filosófico que rejeitasse qualquer abertura metafísica, seria radicalmente inadequado para desempenhar um papel de mediação na compreensão da Revelação.” (Fides et Ratio, n.º 83).

Esta passagem do fenómeno ao fundamento não é espontânea para quem não está acostumado a passar do visível ao invisível, devido a uma espécie de dependência da fealdade, do mau gosto e da grosseria que têm sido promovidas tanto pela publicidade como por esses artistes fous, que erguem como valor o imundo e o disforme, com o objectivo de suscitar o escândalo. São fascinantes as capciosas flores do mal: “Ó Beleza, virás tu do céu profundo ou sairás antes do abismo?”, interroga-se Baudelaire. E Dimitri Karamazov confidencia ao seu irmão Aliocha: “A Beleza é uma coisa terrível. Ela é a luta de Deus e de Satã, e o meu coração é o campo de batalha”. Se a beleza é imagem do Deus criador, ela é também filha de Adão e Eva, pelo que está marcada pelo pecado. Muitas vezes arrisca deixar-se prender pelo ardil que ela mesma congemina: o ícone torna-se ídolo, o meio engole o fim, verdade que aprisiona, armadilha na qual muitos caem devido à ausência de formação adequada da sensibilidade e de uma acertada educação para a beleza.

Percorrer a Via Pulchritudinis implica comprometer-se a educar os jovens na beleza, ajudá-los a desenvolver um espírito crítico face à oferta da cultura mediática e a esculpir a sua sensibilidade e o seu carácter para os elevar e conduzir a uma verdadeira maturidade. Não será a “cultura kitsch” característica de um certo medo de se ser atraído a uma transformação profunda? Depois de uma longa recusa desta “paixão”, Santo Agostinho testemunha a profunda transformação da alma provocada pelo encontro com a beleza de Deus: nas Confissões recorda com tristeza e amargura o tempo e as oportunidades perdidas; em páginas inesquecíveis, revive o seu atormentado caminho na procura da verdade e de Deus. Mas, numa espécie de iluminação na evidência, ele encontra Deus e apreende-o como a verdade mesma (cf. X, 24), fonte da pura alegria e da autêntica felicidade: “Tarde Vos amei, ó Beleza tão antiga e tão nova, tarde Vos amei! Eis que habitáveis dentro de mim, e eu lá fora a procurar-Vos! Disforme, lançava-me sobre estas formosuras que criastes. Estáveis comigo, e eu não estava convosco! Retinha-me longe de Vós aquilo que não existiria se não existisse em Vós. Porém chamastes-me com uma voz tão forte que rompestes a minha surdez! Brilhastes, cintilastes, e logo afugentastes a minha cegueira! Exalastes perfume: respirei-o suspirando por Vós. Saboreei-Vos, e agora tenho fome e sede de Vós. Tocastes-me e ardi no desejo da Vossa paz.” (X, 27). Esta experiência do encontro com o Deus da Beleza é um acontecimento vivido na totalidade do ser, e não apenas na sensibilidade. Daí a confissão do De musica (6, 13, 38) : “Num possumus amare nisi pulchra? – Que poderemos nós amar senão o belo?”

(1) Boa qualidade, bondade, benevolência, ternura, virtude (N. do T.).

 

A continuar.
Próximo trecho: "A Via Pulchitudinis, caminho para a Verdade e para o Bem".

Documento final da Assembleia Plenária do Conselho Pontifício da Cultura, 2006

© SNPC : Tradução | Publicado em 23.11.2007

 

 

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