Vemos, ouvimos e lemos
Paisagens
Pedras angulares A teologia visual da belezaQuem somosPastoral da Cultura em movimentoImpressão digitalVemos, ouvimos e lemosLigaçõesBrevesAgenda Arquivo

Exposição

Rui Chafes: Inferno (A minha fraqueza é muito forte)

A Galeria João Esteves de Oliveira, em Lisboa, inaugura esta quinta-feira, pelas 19h00, a exposição “Inferno (A minha fraqueza é muito forte)”, trabalhos sobre papel do escultor Rui Chafes.

«Avesso a modas, criando a sua obra ancorado plástica e conceptualmente no gótico tardio e no romantismo alemão, Rui Chafes é um artista peculiar. É visto, consensualmente, como um dos maiores entre os contemporâneos portugueses», refere a nota de imprensa da galeria.

Os desenhos de Rui Chafes podem ser apreciados até 17 de novembro na Rua Ivens, 38, ao Chiado, no seguinte horário: segunda-feira, das 15h00 às 19h30; terça-feira a sábado: das 11h00 às 19h30 (ao sábado encerra das 13h30 às 15h00).

Do texto do catálogo, assinado por Paulo Pires do Vale:

 

«O que fere aquele que desenha?

O livro do Eclesiastes, na sua sabedoria prática, afirma: “Quem cava um buraco, nele cairá. Quem escava um muro, uma cobra o morderá. O que transporta pedras, aleija-se nelas. O que racha lenha, fere-se nas lascas” (Ecl 10, 9). Aquele que desenha também não pode deixar de se ferir com o que trabalha: a sua própria ferida. O que assalta aquele que desenha, o objeto que se transforma em arma virada contra si, é o si-mesmo. Não o eu (ego), mas um si (ipse) por vir. E isso há de feri-lo até que venha.

O artista aleija-se nessa violência que é a origem da obra - e que lhe é íntima, transporta-a em si. Em vez de esconder essa violência, usa-a. Mesmo que não a exponha. Ele sabe dar um bom uso à morte (1). E nisso há uma dimensão profética. Aquilo que outros não querem ver, ele não pode recusar. Afinal, aquilo onde cada um de nós se pode ferir é sempre na própria ferida. Flor que nunca fecha. No seu modo próprio e radical de abertura ao mundo. Esta ferida, como a metáfora indica, não é fechamento solipsista, mas abertura que conduz ao exterior, para fora de si - “talvez para fora de tudo”, julgava Blanchot (2). Essa forma de êxtase é modo de tocar o caos, a obscuridade, a violência, a noite.

O artista tem de perder a luta contra o anjo, tem de sentir o nada (3), para que, então, a sua fraqueza seja muito forte. Para que possa vencer. O artista tem de assumir e alimentar a sua vulnerabilidade, ser capaz de se ferir, de se abrir: como dar atenção de outro modo? É dessa fraqueza que receberá a força. A fragilidade é a sua verdade – e por isso é a única força que o pode libertar. Simone Weil dizia que “quando um aprendiz se fere ou se queixa de cansaço, os operários, os camponeses, têm estas belas palavras: “É o ofício que entra no corpo”. De cada vez que suportamos uma dor, podemos dizer-nos, com verdade, que é o universo, a ordem do mundo, a beleza do mundo, a obediência da criação a Deus que nos entram no corpo” (4). A fragilidade é o nosso modo de abertura à verdade do mundo. As feridas são um dom. É delas que surge a obra, porque é delas que se alimenta o artista. Desse perigo, que é também oportunidade de se elevar do mais baixo para o mais alto.

O que faz o artista senão procurar no débil e fragmentário a força do máximo? Nos seus gestos e obras não quer acrescentar mais objetos ao mundo, mas abrir nele fissuras. A arte surge então como objeto sub specie aeternitatis (Wittgenstein). Essa sombra da eternidade sobre o tempo, permitirá o olhar do estrangeiro. A estranheza necessária à revolução. Coloca-nos no deserto, faz-nos atravessar as chamas. O que faz o artista senão oferecer uma nova forma de presença do mundo? Uma vertigem inesperada.

Nesta ontologia quebrada, sustento frágil, quer do homem, quer das suas obras, que poder tem o desenho?

O “pequeno intervalo” que é a vida de cada um, encontra um eco estranho nesse “pequeno intervalo” que é a obra de arte no mundo. O que a distingue das outras coisas é o estremecimento que pode causar por ser excecional. É o seu caráter de exceção (5), de estrangeira ao mundo mortal, que obriga a projetar um olhar novo sobre todos os outros intervalos. É a exceção injustificada que, no abalo que cria, justifica a regra, o geral, o mundo, a repetição mortal. Como poderia ser exceção se não assegurasse o geral? Mas fá-lo em luta. A exceção examina e interroga o geral, ao mesmo tempo que se pensa a si própria (6), mas o geral, o mundo, não quer ser posto em causa. Por isso, como as exceções, a obra tem de fracassar. Não seria uma exceção se não falhasse. Não salvará o mundo, mas pode mostrar-lhe o que ele é.

Há na obra de arte a potência de um inferno incendiário: o poder destruidor do fogo e dos líquidos corrosivos. É essa inquietação corrosiva que devemos esperar deste Desenho. Ele deita fogo ao que somos. É o ordálio que nos põe à prova. E aquele que atravessar este deserto com chuva de fogo sem se magoar, não está já vivo. É preciso amar o deserto, a ausência, a ferida, para manter o amor à vida. Cuidar da escuridão, para poder ver os mais brilhantes clarões. As altas estrelas, desejadas por Dante, só se veem de noite. O sofrimento aparece ao lado da beleza. Ele é o intensificador, que predispõe a olhar a vida com outros olhos. E por isso alegra-se e rejubila, como Constantin Constantius, pseudónimo de Kierkegaard: “viva o movimento das vagas que me atiram no abismo, viva o movimento das vagas que me projetam até às estrelas!” (7).

Quando olhamos para este Desenho de Rui Chafes, encontramo-nos a nós próprios, como estranhos, no inferno. E espantados, nesse estremecimento, sem armadura que nos proteja das feridas, chamamos por nós, como Dante ao ver incrédulo o filósofo e mestre amado que lhe ensinou “como o homem se eterna” (8):

“Vós aqui, Senhor Brunneto?”» (9).

 

(1) A morte, como ensinou Weil, “é o que de mais precioso foi dado ao homem. É por isso que a impiedade suprema é usa-la mal.” (Weil, La pesanteur..., p.101).

(2) Blanchot, O livro por vir. Lisboa: Relógio d´Água – 1984, p.118

(3) Kierkegaard, La reprise. Paris: Flammarion - 1990, p.173-174

(4) Weil, Espera de Deus, p.120

(5) Sobre a noção de exceção, no sentido aqui pretendido cfr Kierkegaard, La reprise. Paris: Flammarion, 1990, p.171ss

(6) Kierkegaard, La reprise, p.171

(7) Kierkegaard, La reprise, p.166. – Constantius, Kierkegaard, que de si dizia que pertencia à ideia, e que quando a ideia o chamava, abandonava tudo, escreveu: “viva a descolagem do pensamento, viva o perigo de morte ao serviço da ideia, viva o perigo do combate, viva a jubilação solene da vitória, viva a dança no turbilhão do infinito (...)”

(8) Inferno XV, 85 – Brunnetto Latini, ilustre intelectual florentino, mestre de Dante. Nietzsche, utiliza esta referência para, aparentemente, se referir ao seu proprio trabalho:
“Para terminar/Como conclusão: “ter sido um professor de”
come l’uom s’eterna...
(Inf. XV, 85)” Fragmento póstumo de 1886/1887 9[4] (KSA 13, p. 341– trad. de Maria João Branco).

(9) Inferno XV, 30

 

Desenho

 

Paulo Pires do Vale
27.09.11

Rui Chafes
Rui Chafes


















Citação































Rui Chafes



























Rui Chafes

 

 

 

 

Página anteriorTopo da página

 


 

Subscreva

 


 

Secções do site


 

Procurar e encontrar


 

 

Página anteriorTopo da página