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Separação religiosa como modernidade

O dia 20 de abril de 1911 marca a data da Lei da Separação do Estado das Igrejas, na sequência da implantação da República. No dia em que se assinalam cem anos sobre aquele decreto, o Secretariado Nacional da Pastoral da Cultura apresenta a introdução do livro “Separação religiosa como modernidade”, de Sérgio Ribeiro Pinto, investigador do Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa.

 

«A separação entre o Estado e as Igrejas constitui uma questão civilizacional, central no debate sobre a modernidade política. Diz respeito ao entendimento acerca das relações entre o poder espiritual e o temporal, mas interfere decisivamente na natureza das vinculações sociais, nas perceções existentes sobre a sociedade e nas modalidades de entender e construir o Estado. Ainda que originalmente tenha sido colocada em sociedade de hegemonia católica, esta é uma problemática mais lata porque fortemente enraizada numa antropologia de matriz cristã, onde se evidenciam tensões entre o humano e o divino, na medida em que o cristianismo e as suas formas institucionalizadas se referem a um transcendentalismo radical mas encarnacional e apontam para uma perceção do tempo soteriológico e escatológico.

Quando, a 5 de Outubro de 1910, ocorreu a mudança da forma de regime político em Portugal, pelo triunfo do movimento republicano, acabava a última modalidade do regime monárquico, mas também se acentuava um complexo processo de desconfessionalização da sociedade e do Estado. A Monarquia Constitucional, triunfante depois da vitória dos Liberais na guerra civil que os opôs aos Miguelistas, terminava nesse dia com a proclamação da República.

A 5 de Outubro de 1910 era ainda impossível, por definição da Carta Constitucional (artigo 6°), ser-se português sem se ser católico. Ao Estado competia, após concurso, prover os párocos. A estes competiam, para lá das funções religiosas, um vasto conjunto de funções civis. Os bispos não podiam ser colocados à frente das respetivas dioceses sem a anuência do Governo; nem podiam fazer circular documentação da Igreja sem a prévia autorização das entidades estatais.

Estes elementos e outras implicações de um Estado Confessional, bem como as tensões entre a Igreja Católica e diferentes governos da Monarquia, davam origem às reclamações de diversos grupos de católicos, exigindo, por um lado, que o Estado cumprisse as suas obrigações no que à proteção da Igreja de Estado dizia respeito e, por outro lado, que aquele permitisse uma maior autonomia de ação à Igreja Católica. Por seu turno, outros setores e grupos exigiam o fim das obrigações religiosas do Estado.

Embora o último Governo da Monarquia, liderado por Teixeira de Sousa, tivesse preparado a promulgação de uma lei da separação, que colocasse fim ao estatuto da Igreja Católica como religião de Estado, eram os grupos afetos ao movimento republicano e ao Partido Republicano Português que há muito reivindicavam essa separação. Consideravam, em primeiro lugar, a liberdade de consciência na adesão a uma religião como trave mestra da pertença religiosa, e não, apenas, uma obrigação civil, como previa a Carta Constitucional. Em segundo lugar, entendiam a influência da Igreja Católica como fator de atraso e obscurantismo, na linha do pensamento positivista e do cientismo do século XIX que apresentavam as manifestações religiosas como um estádio inferior da evolução humana e que seria necessário ultrapassar. As franjas mais radicais, monárquicas e republicanas, entendiam, por tudo isso, que era necessário limitar a ação da Igreja Católica e de quaisquer outros grupos religiosos então presentes na sociedade portuguesa, quer no espaço europeu, quer nas colónias.

Ao chegar ao poder, e ainda antes da definição de uma nova constituição, o movimento republicano, através da ação do Governo Provisório e em linha com a propaganda republicana durante o período final da Monarquia, procurou dar satisfação à exigência de retirada da Igreja Católica e da sua influência, quer nos organismos estatais, quer no tecido social.

Nesse processo foi decisiva a ação legislativa, entre outros, de Afonso Costa, Ministro da Justiça e dos Cultos - já que competia a esse ministério a gestão da Religião de Estado. Ao considerar a Igreja Católica como um suporte decisivo da Monarquia, os setores mais radicais do republicanismo julgavam necessário conter e limitar a influência e ação da Igreja na estruturação do novo regime. Todavia, o paradigma prevalecente da teologia ou da teoria política, nos diversos espectros da vida político-partidária, era o regalismo.

A Lei da Separação do Estado das Igrejas, da autoria de Afonso Costa, mas caucionada por todos os membros do Governo Provisório, ficou como símbolo — para o campo republicano - da mudança cultural, política, social que a República pretendia corporizar e - para alguns ambientes católicos - da hostilidade e da perseguição por parte do Estado. Para todos, a Lei da Separação constituiu-se como um elemento de divisão e disputa social e política, do embate cultural que marcou a evolução do país nos primeiros anos da República.

Na realidade, as características da Lei da Separação de 1911 haveriam de dividir os republicanos entre si, como os próprios católicos. Entre estes, alguns viam na separação uma possibilidade para a ação autónoma da Igreja e um novo tipo de presença social do catolicismo. Outros, considerando a condenação papal da independência dos poderes eda indiferença estatal em relação às confissões religiosas, resistiram à Lei e ao princípio da separação. O episcopado, procurando evitar os movimentos de resistência e de hostilidade declarada ao novo regime, lutou pela modificação das disposições da Lei da Separação que consideravam gravosas para a Igreja Católica e que classificavam como de perseguição ao catolicismo.

As relações entre o Estado e a Igreja Católica foram, por todos estes elementos, complexas e difíceis, mas não deixaram de registar uma evolução ao longo da experiência da Primeira República. Todavia, como fator de identidade e de coesão, a pertença religiosa tinha implicações que ultrapassavam a esfera da relação institucional, bulindo com o quotidiano das populações para quem as referências religiosas eram centrais. A conflituosidade social decorrente da aplicação das disposições da Lei da Separação havia de conduzir à necessidade de um entendimento institucional tendencialmente pacificador, até porque as vivências religiosas das populações patenteavam um dinamismo que os poderes políticos acabaram por reconhecer ou, pelo menos, com o qual pactuaram.

Por tudo isto, a problemática religiosa é central para se compreender a fase final do liberalismo político em Portugal na transição da Monarquia Constitucional para a República. Compreender as implicações da Lei da Separação e a forma como dividiu politicamente o país, quer republicanos, quer aqueles que não se reviam nesse ideal, é crucial para se perceber o que foram os últimos cem anos da história portuguesa.

Na realidade, a trajetória da separação entre o campo do religioso e o do político diz respeito à articulação entre autonomia da consciência, a liberdade e a verdade como dimensões constitutivas da coesão social. A perceção do valor da separação, por contraponto à confessionalidade, não se apresenta diretamente como antinomia da crença e do religioso, mas implica uma disputa no seio das Igrejas e das sociedades em torno da autenticidade da fé e da cidadania, bem como da consistência e relevância de ambas.

A separação entre o Estado e a Igreja Católica (e as demais confissões religiosas) convoca realidades múltiplas que não se esgotam no âmbito legislativo. O presente estudo, partindo do decreto de 20 de abril de 1911, que ficou conhecido como Lei da Separação do Estado das Igrejas, procura atender à complexidade para que a separação remete enquanto realidade e processo ideológico e societário; desde logo a questão da identidade nacional e a pertença a uma determinada comunidade cívica, os vínculos que a criam e os mecanismos de sedimentação dessa pertença. É possível ser-se português e não se ser católico? Até onde se estendem as competências do Estado e qual a pertinência da pertença religiosa? Ser católico, logo membro de uma comunidade transnacional, é compatível com o acatamento de um regime que prescinde da legitimação religiosa?

Para os mais variados setores da sociedade portuguesa estas perguntas, e outras a elas conexas, não obtiveram (seria esse o autêntico desiderato?) respostas unívocas na primeira década do século XX, especialmente entre o final da Monarquia Constitucional e os alvores da Primeira República. Em larga medida, o regime republicano procurou encontrar a resposta para os diferendos que, em torno da problemática religiosa, tinham ocorrido nos anos finais do regime anterior e que ilustravam a relação difícil entre a Igreja Católica, religião de Estado, e o liberalismo português: o início das reuniões anuais dos bispos portugueses e as reclamações na Câmara dos Senhores Deputados contra esse facto (dezembro de 1891), o caso «Sara de Matos» (de julho de 1891 em diante), a realização continuada de Congressos Católicos, nomeadamente o Congresso Internacional em Lisboa aquando da celebração do Centenário Antoniano e a sua contestação (1895), a constituição do Centro Católico Parlamentar (1894), o «Caso Calmon» e o decreto relativo às associações religiosas (1901), a renúncia do Patriarca D. José Neto (1907) e o diferendo entre os jornais A Voz de Santo António e o Mensageiro do Coração de Jesus (1908-1910). Todos estes factos e acontecimentos balizaram uma disputa longa em torno da legitimidade da Igreja Católica e o Estado Português, mas também sobre a natureza e a condição dos católicos como cidadãos.

De facto, para a "questão religiosa" confluíam diferentes planos da disputa política e social da sociedade portuguesa finissecular. Para uns, a problemática religiosa e a conflituosidade que gerava era a causa da decadênciaou da crisecom que perspetivavam a situação do país; para outros, sem a revitalização da experiência religiosa e a alteração da situação da Igreja Católica a regeneração do país não podia operar-se.

Estavam em causa visões distintas sobre o facto religioso e a pertença confessional, mas também sobre a natureza da sociedade portuguesa, outro tanto é dizer, dirimiam-se questões sobre a liberdade e a ação religiosa, política e cívica; enfim, mundividências distintas sobre os mais diversos âmbitos da realidade humana. É para esta disputa mais abrangente que remetem os modelos de separação e a discussão que o decreto promulgado pelo Governo Provisório da República suscitou. De facto, se a desconfessionalização do Estado merecia consenso alargado, a sua modalidade e execução abriam um amplo leque de perspetivas que permitem apontar para a complexidade e heterogeneidade dos campos católico e republicano.

Pretende-se, por isso, perceber a realidade para lá da dicotomia tradicional - que esconde mais do que explica - entre o Estado, perseguidor e garante do progresso, e a Igreja Católica, vítima e empecilho ao desenvolvimento do país. As perspetivas que se reclamavam do republicanismo e do catolicismo explanam, no espectro amplo das suas propostas, respostas diferenciadas para a situação de crise com que era olhada a sociedade portuguesa coeva, ou seja, para modelos culturais em que a valoração do fenómeno religioso se apresentava distinta.

Efetivamente, o sistema de separação que pretendia regular a relação do fenómeno religioso com a entidade estatal, dito já na caução plena da pluralidade das suas expressões juridicamente legítimas, não tinha um entendimento unívoco.

Se, em retrospetiva, algumas leituras tendem a identificar a Lei da Separação e o projeto da Primeira República, essa identificação será redutora no caso de haver o esquecimento da complexidade dos aspetos em jogo e dos diferentes contendores. Convergem realidades e problemáticas diversas para o que a disputa da época e a historiografia consagrou como sendo a «questão religiosa». E se o fator religioso foi profundamente problematizado, não menos o foram o social e o político.

Deste modo, é dificilmente compreensível a conflituosidade que em torno da Lei da Separação e da execução das suas disposições se gerou, sem se atender ao conflito mais vasto que percorreu os últimos anos do liberalismo português e cujo fim, em termos políticos, mas não só, se pode indicar com o termo da Primeira República.

Na realidade, a desconfessionalização do Estado implicava alterações profundas no corpo sócio-político português do início do século passado, estendendo-se, como pretendiam os publicistas republicanos, à alteração das mentalidades e à formação do cidadão novo. Assim, se o debate foi político e religioso, foi também jurídico e, sobretudo, cultural; ou seja, a "questão religiosa" - porque o religioso remete para a configuração da visão e posicionamento do crente, no caso do cidadão crente, perante os diferentes âmbitos da vida pessoal e social - condensou, e camuflou, um embate de maior alcance pela configuração do panorama mental, político e social.

Por outro lado, se o Estado pretendeu separar-se das confissões religiosas, também as diferentes Igrejas se acharam separadas do aparelho estatal - e este dado teve implicações profundas na alteração do posicionamento das mesmas e na concretização da sua ação de aí em diante. No caso que nos ocupará, a religião socialmente maioritária, a Igreja Católica, formulou neste período novos modelos de presença e ação que perdurariam para lá do fim da Primeira República.

A realidade da separação em Portugal, dado o conteúdo do decreto de 20 de abril de 1911, complexificou-se, todavia. Como se verá, nem o Estado prescindiu de controlar as manifestações religiosas, pretendendo reduzir o seu espaço de influência, nem a Igreja Católica abdicou de reclamar do Estado o concurso para o seu projeto de intervenção na sociedade portuguesa. Este embate institucional, no entanto, tem rostos e protagonistas que encaram outros tantos projetos políticos, sociais e religiosos, numa palavra, culturais.

É sobre o debate em torno dos modelos de separação e da configuração da sua execução que este trabalho se debruça. Dito de outro modo, indaga as visões diferentes, e valorações distintas, acerca do fenómeno religioso e das suas implicações, no intuito de contribuir para a compreensão do panorama cultural e político das primeiras décadas do século XX em Portugal, atendendo à complexidade das questões em equação e dos protagonismos que, em torno delas, se foram gerando.»

 

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Sérgio Ribeiro Pinto
In Separação religiosa como modernidade, ed. Centro de Estudos de História Religiosa - Universidade Católica Portuguesa
19.04.11

Capa

Separação religiosa
como modernidade

Autor
Sérgio Ribeiro Pinto

Editora
Centro de Estudos de História Religiosa - Universidade Católica Portuguesa

Ano
2011

Páginas
254

Preço
15,00 €

ISBN
978-972-836-1358















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