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A ciência em Portugal

A nossa herança económica, social, educativa e cultural era pesada à data da Revolução de 25 de Abril de 1974. O atraso da ciência em Portugal tinha, muito em particular, que ver com o atraso na educação, em especial a falta da educação universal a que os cidadãos modernamente têm direito. Em Portugal aprendeu-se tarde e mal a ler, escrever e contar. No início do século XX, o analfabetismo ainda era, entre nós, uma trágica realidade, a ponto de o país ser referido como exemplo da "pobreza das nações" em livros de referência internacionais. David Landes, professor de Economia na Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, pôs, no seu livro A Riqueza, e a Pobreza das Nações, o dedo na ferida do nosso analfabetismo:

«Por volta de 1900, por exemplo, apenas três por cento da população da Grã-Bretanha era analfabeta, o número para a Itália era 48 por cento, para Espanha 56 por cento, e para Portugal 78 por cento.»

A I República, implantada em 1910 e muito perturbada por crises políticas sucessivas, pela participação portuguesa na Primeira Guerra Mundial e por terríveis epidemias, apesar de ter reconhecido o valor da educação e da ciência (as ideias positivistas do século XIX estiveram aliás subjacentes ao movimento republicano), pouco tinha feito para debelar esse lamentável estado de coisas. No início do século passado, não existiam nem escolas, nem professores, nem sobretudo dinheiro para contrariar o atraso educativo que então reinava. Inaugurado com a Constituição de 1933, sete anos após a Revolução de 28 de maio de 1926 (período durante o qual vigorou uma ditadura militar), o Estado Novo, ligado de perto à figura de António de Oliveira Salazar, presidente do Conselho de Ministros ao longo de várias décadas, revelou-se extremamente lento na recuperação do défice educativo de que o país padecia. Só em 1971, quando foi anunciada uma reforma educativa, por José Veiga Simão, professor de Física da Universidade de Coimbra que teve a pasta da Educação no governo de Marcelo Caetano (o sucessor de Salazar em 1968), se assistiu a um impulso no sentido de generalizar o acesso dos jovens à educação.

Esse impulso teve reflexos visíveis no ensino superior. De acordo com o censo de 1971, menos de 50 mil portugueses tinham completado o ensino superior mas esse número aumentou para mais do triplo no censo de 1981 (os dados estatísticos deste capítulo, assim como quase todas as figuras, provêm da “Pordata”, a base de dados em linha sobre Portugal contemporâneo da responsabilidade da Fundação Francisco Manuel dos Santos).

Apesar disso, em 1982 (escolhe-se este ano pois foi então que a Constituição Portuguesa de 1976 foi revista pela primeira vez, libertando-a do conteúdo mais "revolucionário", e por estarem facilmente acessíveis séries estatísticas nas áreas da educação e da ciência a partir dessa data), só cerca de 87 mil estudantes frequentavam o ensino superior, quando hoje são cerca de 375 mil, portanto cerca de quatro vezes mais, continuando a população portuguesa a ser de cerca de dez milhões de pessoas. O número de licenciados era pequeno relativamente ao total da população e as oportunidades de pós-graduação no país eram escassas, obrigando a longas estadas no estrangeiro, apoiadas por bolsas de estudo. Era necessária a dispensa das funções docentes para os assistentes universitários que as obtinham. Saliente-se o papel inestimável que a Fundação Calouste Gulbenkian, criada em 1956, desempe­nhou neste domínio.

Não admira, por isso, que o número de doutorados fosse muito exíguo no início dos anos 80, não existindo mão de obra intelectual suficiente para assegurar um sólido sistema de ciência e tecnologia. Em 1982, só se realizaram 130 doutoramentos em universidades portuguesas em todas as áreas do conhecimento, estando incluídos neste número os reconhecimentos dos graus de doutor obtidos no estrangeiro, ao passo que, em 2008, houve 1496 doutoramentos, isto é, cerca de dez vezes mais (cresceu sobremaneira o número de doutoramentos nacionais, que hoje são cerca de 90 por cento do total).

Entre 1974 e 1986, ano em que Portugal entrou na União Europeia, em simultâneo com a Espanha, a nossa situação política passou por várias atribulações, o que em nada ajudou o progresso da ciência e das suas aplicações. Mas, a partir de 1986, com o cenário político estabilizado e com o rumo do país colocado na Europa, começaram a ser claros os sinais de mudança. Os licenciados (que, em Portugal, eram e ainda hoje são correntemente chamados "doutores" sem o serem) começaram a tornar-se comuns e os doutores (isto é, as pessoas habilitadas com o doutoramento) passaram a ganhar maior visibilidade. Antes este título quase só era reservado às pessoas que seguiam uma carreira académica na instituição onde se doutoravam, isto é, as pessoas que iam, em princípio, ascender à cátedra. Depois começaram a surgir doutores que, nas suas carreiras profissionais, tinham de mudar de sítio para singrar na carreira académica ou mesmo abraçar uma outra carreira.

Nos anos 80, as nossas universidades passaram também a oferecer mestrados, um grau intermédio entre a licenciatura e o doutoramento (exigindo normalmente dois anos de estudos) que antes era praticamente inexistente. Apareceram também outras formas de ensino de pós-graduação.

Para os leitores menos familiarizados com a estrutura académica, convém lembrar que a obtenção tanto de mestrados como de doutoramentos exige a defesa de uma dissertação, o que pressupõe um trabalho individual sobre um tema especializado. Mas, ao contrário da dissertação de mestrado, uma tese de doutoramento deve conter obra científica original. A uma pessoa que obtém em provas públicas o grau de doutor reconhece-se, em princípio, a capacidade para realizar trabalho científico independente. Tal como um estudante de mestrado, um estudante de doutoramento, enquanto prepara a sua tese, é supervisionado por um doutor (em certos casos por dois). Depois do doutoramento, que demora em regra três ou quatro anos, é recomendável que o novo doutor realize uma estada de alguns anos num local que deve ser diferente daquele onde alcançou o grau. A esse período chama-se "pós-doutoramento" e ao investigador nessa fase chama-se "investigador de pós-doutoramento" ou, coloquialmente, um post-doc. Concretizado em Portugal nos últimos anos o chamado processo de Bolonha, ocorrido na sequência da Declaração de Bolonha de 1999 com vista à criação de um "espaço europeu de ensino superior", a duração da licenciatura (primeiro ciclo) diminuiu, passando o mestrado (segundo ciclo), nalguns casos, a ser incluído na sequência direta e obrigatória do primeiro grau (formando o chamado mestrado integrado), ao passo que, noutros casos, passou a ser tão-só uma opção de continuação dos estudos. O doutoramento (terceiro ciclo) não foi muito alterado.

O panorama do ensino superior modificou-se nas últimas duas décadas do século XX, sendo a sua marca maior a frequência alargada, que originou obviamente uma maior formação em média da população. Na década de 90, essa expansão foi particularmente significativa, levando a um crescimento algo descontrolado do ensino superior privado. Assim, em 2001, já havia 631 521 portugueses com mais de 25 anos que tinham o curso superior completo, a maior parte dos quais eram do sexo feminino (366 592). Em 2008, frequentavam o ensino superior 376 917 pessoas, e licenciaram-se 64 009 pessoas, a maior parte dos quais mulheres. Hoje existe cerca de um milhão de licenciados, dos quais aproximadamente metade do sexo feminino. O acesso maciço das mulheres ao ensino superior foi uma das maiores mudanças a que o país assistiu após a Revolução de 1974.

O número de doutores é, atualmente, de mais de cinco por cada mil pessoas da população ativa, dos quais cerca de metade são mulheres. Com o aumento do número de doutores, o sistema científico e tecnológico nacional pôde crescer notoriamente, absorvendo uma boa parte dos doutores formados. O número de pessoas em atividades de investigação e desenvolvimento era, em 2008, de 8,7 em cada mil ativos (total de 49 114 equivalentes a tempo integral), dos quais 7,2 eram investigadores (total de 40 563 equivalentes a tempo integral), valores que, relativamente a 1982, eram, respetivamente, cerca de quatro vezes e oito vezes mais. Isto é, passou a haver não só mais pessoas qualificadas a realizar atividades de investigação e desenvolvimento como pessoas capazes de realizar trabalho científico-tecnológico criativo.

O número de doutores e o número de investigadores em percentagem da população ativa são apenas dois dos indicadores que testemunham o nosso efetivo progresso em ciência e tecnologia. Um outro indicador, relacionado com esses, é o número de artigos de autores portugueses (ou melhor, autores com endereços em instituições portuguesas) publicados em revistas científicas internacionais. Esse número foi, em 2008, de 6758 artigos, o que corresponde a 636 artigos por milhão de habitantes, um número que é cerca de vinte vezes maior do que o que se registou em 1982 (apenas 300 artigos).

É claro que só pode haver pessoas a realizar trabalho de ciência e desenvolvimento se a sua atividade for devidamente financiada. Assim, um outro indicador do estádio de desenvolvimento de um país em ciência e tecnologia, que está a montante dos indicadores atrás referidos, é a percentagem do produto interno bruto (PIB) que é investida em atividades de investigação e desenvolvimento. Passámos de uma situação absolutamente lamentável de 0,3 por cento em 1982 (dos quais 0,1 por cento a cargo das empresas) para uma situação que, apesar de estar longe da ideal, é bastante mais decente: a despesa pública e privada em investigação e desenvolvimento atingiu 1,5 por cento do PIB em 2008, sendo 0,8 por cento das empresas, portanto cerca de metade do total. Isto é, nos setores público e privado, gastou-se em percentagem do PIB cinco vezes mais do que se gastou em 1982. Tal só foi possível graças a importantes financiamentos concedidos pela União Europeia, no quadro das "ajudas à coesão" que se seguiram à nossa entrada na Europa.

Um fator decisivo para a canalização desses financiamentos para a ciência foi a criação em 1995 do Ministério para a Ciência e Tecnologia - MCT, ao qual se haveria de seguir em 2002 o Ministério para a Ciência, Tecnologia e Ensino Superior - MCTES. No ano de 1996 foi criada, com base em organismos anteriores, a Fundação para a Ciência e Tecnologia - FCT, a agência de financiamento da investigação científica e tecnológica.

A dotação pública anual para ciência e desenvolvimento, localizada na sua maior parte no MCTES, atingiu, em 2009, um máximo absoluto, orçando em mais de 1700 milhões de euros (com a maior fatia atribuída à FCT), quando, no ano da criação do MCT, era de 440 milhões de euros. Por outro lado, no setor privado, apesar de o orçamento de investigação e desenvolvimento a cargo de empresas ter crescido nos últimos tempos muito mais do que o orçamento público (ressalve-se que não é claro nem incontroverso o modo como esse valor é medido), ela está ainda longe da percentagem despendida nos países europeus com a dimensão do nosso mas mais desenvolvidos.

Em resumo, o país pode orgulhar-se de ter saído, neste domínio, do grupo dos países menos evoluídos na Europa para "bater à porta" do grupo dos mais avançados. Por enquanto está apenas "à porta", mas espera-se não só que entre em casa mas também que fique...

Portugal passou de uma situação em que a ciência era residual para uma outra em que a ciência passou a ter alguma presença e impacto na sociedade. A ciência encontra-se hoje nos jornais, onde há poucas décadas quase não se encontrava. Está hoje na agenda política quando há pouco tempo não estava. Se os números do crescimento do sistema científico-tecnológico nacional podem causar alguma admiração, esse sentimento é, porém, mitigado quando se atende ao baixíssimo nível de partida. Como veremos, existe ainda um défice a ultrapassar se atentarmos em comparações internacionais, designadamente se cotejarmos a situação atual do nosso país em ciência e tecnologia com a situação, também atual, dos nossos parceiros europeus. A maior parte dos países da Europa que estavam melhor do que nós também entretanto progrediram, permanecendo por isso à nossa frente. Aproximámo-nos dos padrões europeus, mas estamos ainda longe dos lugares de topo.

Este livrinho pretende apresentar o estado da ciência em Portugal, no final da primeira década do novo milénio. Falar-se-á da mudança que ocorreu, identificar-se-ão algumas questões pendentes e perspetivar-se-á a mudança adicional que ainda terá de haver neste setor. Será naturalmente uma perspetiva pessoal. Ao autor, tanto como a ciência propriamente dita, a ciência "pura e dura" que se pode medir pelos indicadores apresentados (número de pessoas, número de artigos e valor do financiamento), interessa o ensino da ciência e a divulgação da ciência, que são partes essenciais de qualquer sistema científico e tecnológico no sentido em que sem elas tal sistema não é de maneira nenhuma sustentável. Embora por "ciência" se entenda o conhecimento do mundo de um modo geral, incluindo em particular o homem, serão mais privilegiadas as áreas das ciências que mais têm que ver com o mundo físico (nomeadamente, as chamadas ciências exatas e naturais, as ciências da saúde e as ciências da engenharia). Poderão, por isso, sair desiludidos os leitores mais interessados nas ciências humanas e sociais. Poderão também sair desiludidos os leitores mais interessados em informações e reflexões sobre a tecnologia e o seu papel na economia, uma vez que, embora a tecnologia seja hoje inseparável da ciência, um breve ensaio como este não pode alargar-se sobre essa relevante área.

Por último, deixa-se, nesta Introdução, um importante "aviso à navegação": este ensaio não é neutro, por o autor estar convencido de que a nossa qualidade de vida, tanto material como intelectual, depende criticamente da presença e influência da ciência. Pode não ser apenas a ciência que nos salve, mas sem a ciência estaremos definitivamente perdidos.

 

Nota: Esta transcrição omite as notas de rodapé e adota o novo acordo ortográfico.

 

Carlos Fiolhais
In A ciência em Portugal, ed. Fundação Francisco Manuel dos Santos
24.02.11

Capa

A ciência em Portugal

Autor
Carlos Fiolhais

Editora
Fundação Francisco
Manuel dos Santos

Ano
2011

Páginas
112

Preço
5,00 €

ISBN
978-989-842-4150













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