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A palavra que leva ao silêncio
A beleza da visão cristã da vida é a sua visão da unidade. Aos seus olhos, toda a humanidade foi unificada no Único que está em união com o Pai. Toda a matéria, toda a criação se encontra também arrojada ao movimento cósmico para a unidade, que será a realização da harmonia divina. Não é esta uma visão abstrata. Exsuda uma profunda alegria pessoal, porque nela se afirma o valor de cada pessoa. Nem uma só e singular beleza se perderá nesta grande unificação, mas cada uma será em todos levada à culminação. Na união tornamo-nos quem somos chamados a ser. Só na união sabemos plenamente quem somos.
Eis a magnífica e preponderante visão que, durante séculos, dominou a tradição cristã. Sem ela, não podemos chamar-nos Seus discípulos. E, no entanto, a tarefa de cada um de nós é alçar-nos a esta visão na nossa experiência pessoal, vê-la por nós próprios ou, antes, com os olhos do Senhor. A tarefa central da nossa vida, na visão cristã, é chegar à união, à comunhão. Afirmar isto sob o ponto de vista em que quase todos começamos significa ir além de todo o dualismo, de toda a cisão dentro de nós mesmos e da alienação que nos separa dos outros. O dualismo que caracterizou as heresias é que ameaçou destruir a fina centralidade, o equilíbrio da perspetiva cristã. É também este dualismo que suscita, para cada um de nós, o impossível e irrealista «ou-ou», que tanta angústia inútil origina: Deus ou a humanidade, o amor de si ou o amor do próximo, o claustro ou a praça pública.
Para comunicar a experiência cristã da união, a experiência de Deus em Jesus, temos de resolver estas falsas dicotomias, antes de mais, em nós mesmos. Temos de nos fazer um só por meio do Único que é uno.
Aparentemente, a natureza das dualidades consiste em propagarem-se a si mesmas e, desta forma, em complicarem a totalidade e a simplicidade de que partimos e à qual nos faz regressar a oração profunda. Uma das dualidades mais básicas tem sido a polarização de vida ativa e vida contemplativa, e o seu efeito mais nocivo foi alienar a maioria dos cristãos desta mesma oração profunda que transcende a complexidade e restaura a unidade. Acabámos por nos imaginar a nós próprios ou como contemplativos ou como ativos, e esta distinção aplicou-se aos religiosos e aos leigos. Enquanto ativos, encontrávamo-nos no seio da vasta maioria cuja vida espiritual se baseava nas devoções ou no elemento intelectual, e que não tinha pretensões enfatuadas a uma experiência de Deus. Como contemplativos, fazíamos parte de uma minoria restrita, privilegiada, separada do corpo principal não só por altos muros e estranhos costumes, mas também, muitas vezes, por vocabulários especializados ou até por uma total ausência de comunicação.
Como todas as heresias, esta revelou-se plausível e duradoura, porque possuía um grão de verdade. Há os que são chamados a viver no Espírito à margem da atividade do mundo e cujos valores primordiais são o silêncio, a quietude e a solidão. Os contemplativos não são, porventura, pregadores, mas devem, apesar de tudo, comunicar a sua experiência, porque esta se notifica e transmite a si mesma. A sua experiência é a experiência do amor e o amor estende-se, difunde-se, partilha-se para alargar o reino da sua própria comunhão. A conclusão eduzida da falsa compreensão da dimensão contemplativa da Igreja distorceu o ensinamento explícito do Novo Testamento, a saber, que o apelo à santidade é universal. O apelo do Absoluto dirige-se a cada um de nós e só este apelo nos faculta o sentido derradeiro; o nosso valor último é a liberdade que nos é dada de lhe respondermos. A exclusão da maioria dos cristãos deste apelo teve profundos e desmesurados efeitos na Igreja e na sociedade. Se o nosso valor e significado derradeiros forem negados, como poderemos esperar que a reverência humana recíproca seja o princípio orientador das nossas relações habituais?
Não há na Igreja e no mundo atual necessidade mais urgente do que a compreensão renovada de que é universal o apelo à oração, à oração profunda. Também a unidade entre os cristãos, a longo prazo a unidade entre os diferentes povos e credos assenta na nossa descoberta do princípio interior da unidade como uma experiência pessoal dentro dos nossos corações. Se quisermos perceber que Cristo é, de facto, a paz entre nós, temos de saber que «Cristo é tudo e está em todos». E nós n'Ele. A autoridade com que a Igreja comunica esta experiência será o grau com que nós, a Igreja e o Corpo de Cristo, a tivermos pessoalmente realizado. A nossa autoridade será humilde, isto é, deve enraizar-se numa experiência que nos leve, além de nós mesmos, à plena pessoalidade. A nossa autoridade como discípulos é a nossa vizinhança e contiguidade ao Autor, muito longe do autoritarismo ou do complexo de medo e de culpa com que o poder é utilizado pelo homem contra o homem. Os cristãos, na sua oração, renunciam ao seu próprio poder; deixam para trás o Si mesmo. Ao fazê-lo, têm uma fé absoluta no poder de Cristo como o único poder que aumenta a unidade entre todos os seres humanos, porque é o poder do amor, o poder da própria união. Quando, como cristãos, homens e mulheres de oração abrem os seus corações a este poder, ampliam a capacidade de todas as pessoas para encontrar a paz acima de e para lá da sua compreensão habitual.
Que os cristãos devem orar não é uma ideia nova. O repto verdadeiramente atual é que temos de recuperar um modo de oração profunda que nos encaminhará para a experiência da união, longe das distrações superficiais e da autocomiseração. As questões que hoje se levantam sempre ali existiram: Como é que oramos a este nível? Como aprenderemos a disciplina que isso implica? Como concentrar-nos a nós mesmos, de modo inteiramente natural, na mais profunda realidade da nossa fé? Como consumar a transição essencial da imaginação para a realidade, do conceptual para o concreto, do assentimento nocional para a experiência pessoal? Não basta abordarmos estas questões como problemas intelectuais. Elas são muito mais urgentes do que isso. São desafios à nossa existência e só podem ser respondidos com a nossa vida, e não mediante ideias.
A maneira mais simples de responder à questão «Como orar?» pode encontrar-se na afirmação de S. Paulo: «Nem sequer sabemos como devemos rezar, mas o Espírito ora em nós». O cristão, relativamente a todas as questões problemáticas acerca da oração, foi contemplado com a liberdade pela revelação de que o que ele chama a «sua oração» é tão-só um imergir e entrar na experiência orante do próprio Jesus, no Espírito, no vínculo de união com o Pai. Esta experiência pessoal de Jesus é a realidade presente, eternamente presente, no coração de cada consciência humana. Toda a nossa busca de conhecimentos secretos, todos os caminhos ou ensinamentos ocultos se tornaram supérfluos, porque o segredo derradeiro foi revelado: «o segredo é este - Cristo em vós». Por isso, na oração, não nos esforçamos por que algo aconteça. Já aconteceu. Estamos tão-só a cumprir o que já é, caminhando e ingressando mais profundamente na consciência unificada de Jesus, no milagre e na maravilha da nossa própria criação. O cárcere da fixação em si mesmo, que nos impede a realização desta jornada, já não consegue reter os que podem compreender que «possuímos o espírito de Cristo».
Quando percebemos que o centro da oração está em Cristo, não em nós, podemos então perguntar «Como?» e receber uma resposta adequada. A jornada que fazemos até este ponto de partida é uma primeira etapa, e será talvez uma jornada difícil, solitária. Mas, neste momento da nossa vida, acordamos para nós mesmos no seio da comunidade de todos aqueles que já aqui chegaram e que foram mais além. A nossa experiência própria encaminha-nos para a tradição; na nossa aceitação da tradição, fazemo-la viver e transmitimo-la aos que a nós se seguem. O importante é que reconheçamos e acatemos a oportunidade de conferir plena realidade à nossa experiência pessoal.
A tradição da meditação cristã é uma resposta simples e, acima de tudo, prática a esta questão; e no entanto, no seu seio, está concentrada a rica e profunda experiência dos santos, conhecidos e desconhecidos. É uma tradição radicada nos ensinamentos de Jesus, a tradição religiosa em que viveram e ensinaram a Igreja apostólica e os Padres da Igreja. Bem depressa ela se tornou na Igreja cristã uma tradição associada aos monges e ao monaquismo e, desde sempre, tem sido um canal essencial pelo qual ela se difundiu em todo o Corpo e o alimentou. A meu ver, nada há de misterioso a este respeito. Os monges são, no essencial, homens e mulheres cuja prioridade fundamental é a prática e não a teoria, cuja pobreza interior e exterior visa facilitar mais a «experiência em si» do que a reflexão sobre a experiência. É, pois, natural e até inevitável que a meditação se encontre no coração do monaquismo. E, porque aí se encontra, o monaquismo é importante para a Igreja e para o mundo.
Semelhante monaquismo, claro quanto à sua própria prioridade, será mais um movimento inclusivo do que exclusivo na Igreja. Saberá que a experiência tem apenas de ser realmente vivida para ser comunicada. Onde a senda é seguida por uns quantos, outros serão arrastados para ela. Algo se deve dizer, por escrito ou em discussão. Mas o ensinamento mais profundo, o fim de todas as palavras será uma participação no momento criativo da oração. O silêncio dos monges é a sua verdadeira eloquência.
As pessoas expressam, por vezes, alguma preocupação acerca da disponibilidade da tradição monástica de meditação. Ao comunicá-la, perguntam «não dizem os monges que ela é a única via? Subjacente está aqui, com muita frequência, o receio de que se faça uma exigência demasiado absoluta aos «cristãos ordinários», aos «não-contemplativos». Mas esta é a exigência, a oportunidade, proposta pelo Evangelho a todos homens e a todas as mulheres em cada época e cultura. Foi a «todos» que Jesus revelou a condição para o seguirem. A ironia é que as pessoas «comuns», aos milhares, têm procurado este caminho fora da Igreja; elas não conseguiram encontrar este ensinamento espiritual na Igreja quando a ela o foram procurar e, por isso, olharam para o Oriente ou para formas da religião oriental, importadas para o Ocidente. Quando tais pessoas ouvem falar da sua própria tradição ocidental cristã de meditação, expressam surpresa: «Porque é que isso nos foi ocultado?», perguntam. O encontro do Oriente e do Ocidente no Espírito - uma das grandes características da nossa época - só pode ser frutuoso se for realizado ao nível da oração profunda. Decerto, isto também vale para a união das diferentes denominações cristãs. A condição prévia é que redescubramos a riqueza da nossa própria tradição, e tenhamos a coragem de a abraçar.
Mas não passará tudo isto de uma simples utopia religiosa? Este livro baseia-se na convicção de que não é assim. E tal convicção baseia-se na experiência que tivemos como um mosteiro comunicando e partilhando esta tradição enquanto realidade viva. Na nossa Comunidade temos, como prioridade nossa, quatro períodos de meditação em cada dia, que estão integrados na recitação da Liturgia das Horas e na Eucaristia. Além disso, o nosso trabalho é comunicar e partilhar a nossa tradição com quem quer que a ela deseje abrir-se. A maioria dos que acorrem aos nossos grupos semanais de meditação, dos que vêm estar connosco como hóspedes ou meditar connosco nos nossos tempos comunitários de oração, são pessoas com famílias e carreiras, com as responsabilidades normais e exigentes da vida. Todavia, a meditação falou-lhes fundo, criou nas suas vidas, em cada manhã e à noite, um espaço de silêncio, e isto proporcionou-lhes a estrutura e a disciplina na sua demanda de profundeza e de enraizamento em Cristo. Rotulá-los, sem mais, de «ativos» ou «contemplativos» erra o alvo. São pessoas que escutaram o Evangelho e que, no nível mais profundo do seu ser, tentam responder à dádiva infinita que receberam no amor de Deus, que vem a nós em Jesus. Sabem que esta resposta é uma jornada para as profundezas infindas do amor de Deus. Começaram tão-só a empreender esta jornada.
Este livro foi suscitado e estimulado pela resposta dessas pessoas à meditação. A sua substância, o seu conteúdo, é um conjunto de gravações feitas, há alguns anos, na Inglaterra como introdução à meditação e como meio de encorajamento para aqueles que começaram a meditar, sobretudo para os que não podiam visitar-nos ou estar connosco. Iniciou-se, pois, com a palavra falada e penso que esta continua a ser o meio ideal de comunicar semelhante tradição. O mistério a que a meditação nos conduz é um mistério pessoal, o mistério da nossa própria pessoalidade, que encontra o seu cumprimento na pessoa de Cristo. E assim, quanto mais pessoal for o modo de ele ser comunicado, tanto mais se aproximará da sua fonte e da sua meta.
Peço, por isso, que vos lembreis de que as palavras impressas neste livro vieram originalmente à vida como palavras proferidas e espero que, ao recordar isso, elas vos falem a partir de uma tradição que sempre se há de reavivar na nossa própria experiência.
O autor
John Main (1926-1982) nasceu em Londres, no seio de uma família católica irlandesa. Diplomou-se em Direito. Inscreveu-se no Serviço Britânico dos Estrangeiros e foi colocado na Malásia, que se revelaria uma estação providencial. Aí contactou com as formas de meditação e oração orientais. No seu regresso tornou-se monge beneditino.
O seu grande contributo foi recuperar e repropor a experiência contemplativa para as pessoas comuns dentro da tradição cristã. Nos ensinamentos de João Cassiano (século IV) e dos Padres e Madres do Deserto, ele aprofundou o significado da chamada «oração pura» e compreendeu que esta forma de oração poderia facilitar a busca de uma vida espiritual mais profunda.
Em 1977 foi convidado pelo arcebispo de Montreal, Canadá, a fundar um pequeno mosteiro beneditino, dedicado à prática e ao ensino da Meditação Cristã.
John Main
In A palavra que leva ao silêncio, ed. pedra Angular
09.03.11
A palavra que
leva ao silêncio
Autor
John Main
Editora
Pedra Angular
Ano
2011
Páginas
110
ISBN
978-989-971-193-8