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Cristianismo e Europa: uma relação essencial

Na exortação apostólica pós-sinodal Ecclesia in Europa, de 28 de Junho de 2003, o Papa João Paulo II insiste no reconhecimento público da relação essencial entre o Cristianismo e a Europa. Não o faz por si só, mas pelo Sínodo dos Bispos reunido em 1999, com expressiva participação de prelados «do Atlântico aos Urais», numa unanimidade quantitativa e qualitativa tão invulgar como quase impossível até então.

Sabemos como a insistência de João Paulo II se justifica por razões institucionais e pessoais muito próprias. Institucionais, pois os debates correntes sobre um possível texto «constitucional» para a União Europeia tocaram frequentemente na alusão ou não-alusão ao Cristianismo como quadro matricial do continente. Pessoais, uma vez que este ponto, afirmativamente tomado, tem sido constante no magistério do Pontífice, que trouxe da Europa eslava à latina o reforço de raízes comuns e frequentemente esquecidas, evangélicas porém e sobretudo.

Noutros tempos, anteriores ao final do século XIX, o tema era habitual e líquido. Fosse ortodoxa, protestante ou católica, a Europa sabia-se «cristã», talvez com demasiada pressa... Mas as revoluções de Oitocentos tanto afirmaram a inspiração evangélica das máximas liberais ou socialistas, mesmo heterodoxamente, como lhes contrapuseram outras, mais «científicas» ou «filosóficas», alegadamente laicas todas. Mais ainda, tornou-se vulgar a afirmação de que as referências religiosas eram divisionistas para a sociedade comum de crentes e não-crentes, podendo até potenciar conflitos e extremar posições. Mais recentemente, não faltaram nem faltam os que pensam que qualquer alusão a raízes confessionais - cristãs no caso - terá de ser abrangente em relação a outras similares, podendo algumas dar cidadania a fundamentalismos perigosos.

Cabe então dizer que, com este pano de fundo, restringe-se o campo das convicções religiosas à «consciência» de cada um, muito individualmente considerada, sem qualquer margem para a sua apresentação institucional pública.

Karol Wojtyla, porém, levou a cabo com outros, por largo tempo, uma árdua luta pelos direitos humanos na sua pátria, que tinha precisamente na liberdade religiosa a primeira afirmação e reivindicação. O direito do seu povo a manifestar-se como essencialmente cristão e católico, em termos culturais e civilizacionais, como a história duramente o provou e forjou, foi muito requerido durante o regime estabelecido na Polónia de 1945 a 1989. Por isso mesmo, para João Paulo II, a consciência religiosa é uma consciência essencial, em termos pessoais mais do que meramente individuais, ou seja, como forma básica de entender e relacionar as vidas e as convivências, locais, nacionais ou internacionais. Como consciência última do homem e do seu destino, não pode deixar de ter redundância e menção no âmbito colectivo e alargado, ainda que ao seu nível, complementar de outros, mais seculares ou laicos, à luz conciliar sobre a «autonomia das realidades temporais».

Dito doutra maneira, a projecção social da crença é tão necessária como tudo o que ao homem diga respeito, porque é dele e para ele que a sociedade parte e existe. Convive com outras dimensões onde não se jogam nem conjugam logo as motivações últimas, como seja a ciência «natural» ou a execução técnica, onde a lei é a da competência; ou mesmo a organização política e administrativa, como gestão de meios em prol do bem comum. Convivem estas e outras dimensões, respeitando-se mutuamente como em cada pessoa a saúde física, a mental e a dimensão espiritual.

A secularidade dos Estados não deixa fora da convivência pública a afirmação religiosa dos cidadãos. Exerce-se sim como base comum e imparcial, onde todas as convicções se afirmem, como manifestações humanas de cultura e culto. E quando se diz cultura, refere-se também aquilo que do culto se propagou em mundo, visão e sentimento próprios do Outro e dos outros, para além até da sua celebração religiosa propriamente dita. É neste sentido que a insistência do Papa na base cristã da Europa pode e deve integrar-se.

Talvez mais claramente agora, podemos tomar alguns passos da referida exortação apostólica de João Paulo II, comentando-os brevemente. É o caso, muito em particular, do seguinte trecho, em que o Papa faz sua uma afirmação central dos documentos sinodais: «O Cristianismo deu forma à Europa, imprimindo-lhe alguns valores fundamentais. Mesmo a modernidade europeia, que deu ao mundo o ideal democrático e os direitos humanos, recebe os seus próprios valores da herança cristã. A Europa é qualificada, não tanto pelo espaço geográfico, mas sobretudo por “um conceito prevalentemente cultural e histórico, que caracteriza uma realidade nascida como continente em virtude também da força unificadora do Cristianismo, que soube integrar entre si povos e culturas diversos e está intimamente ligado a toda a cultura europeia”» (Ecclesia in Europa, n.° 108).

Comecemos ainda pela forma geográfica da Europa. É básica mas exigida, porque nem sempre lembrada, como pode acontecer com as coisas essenciais. De que Europa falamos? Onde começa e acaba, quanto a fronteiras?

Pois bem, referimo-nos ao espaço que, de Portugal à Rússia, do Mar do Norte ao Mediterrâneo, se projecta a Ocidente da Ásia, até ao Atlântico. Composto de populações díspares, dos eslavos aos latinos, dos germanos aos celtas, e mais recentemente de muitos outros de todas as proveniências, formou-se como espaço humano de convivências várias que originaram - através de tudo e apesar de muito - uma civilização e uma cultura, qual soma de práticas e valores geralmente respeitados e transmitidos.

Sabemos até, independentemente de convicções pessoais ou ausência delas, como e quando tal recorte geográfico foi ganhando definição e consistência. Podendo concluir-se que a Europa a que nos referimos hoje não nasceu como tal nem com os Gregos, nem com os Romanos, nem com os Germanos, nem com os Celtas, nem com os Eslavos, nem com os Árabes ou os Judeus, embora todos estes contributos tenham estado presentes, mais aqui do que ali, na história do continente, deixando herança e rasto.

A Europa de que falamos não coincide com a Grécia cultural da Antiguidade, que se projectava muito para além dela, quer na Ásia Menor quer no Egipto africano. Não coincide com o Império Romano, que não ultrapassou o Reno ou o Danúbio e incorporava a Ásia Menor e toda a margem sul do Mediterrâneo. Germanos, Celtas, Eslavos e mesmo Árabes tiveram e têm presença variável no continente, mas nunca na totalidade dele ou maioritária... A Europa de que falamos hoje é herdeira inicial e directa dum vasto e complexo movimento missionário cristão da segunda metade do primeiro milénio da nossa era.

É relativamente fácil evidenciá-lo em poucas linhas. Em 476 foi deposto o último imperador romano do Ocidente. No Oriente, em Constantinopla-Bizâncio, o império manter-se-ia até à conquista turca de 1453. Entretanto, partindo de Roma, de Constantinopla ou doutros focos, irradiaram em várias direcções outros tantos missionários, frequentemente monges, que converteram ao Cristianismo, um após outro, os reis e os povos que se fixaram em todo o território da actual Europa. Dos Francos (século V) aos Russos (século X), ligados a Roma os primeiros e a Constantinopla os segundos; dos Irlandeses e Escoceses, evangelizados por São Patrício (século V) ou pelos monges celtas, aos nossos Suevos e Visigodos, trazidos ao Cristianismo católico por São Martinho de Dume e São Leandro de Sevilha (século VI)... Para todos os pontos cardeais se difundiu uma mensagem essencial que, suportando, é certo, muitas diferenciações e rupturas internas, acabou por «dar forma à Europa», como o primeiro papa eslavo escreve acima.

Se São Bento (século VI) e os Santos irmãos Cirilo e Metódio (século IX) foram proclamados padroeiros da Europa, foi exactamente devido ao papel «formador» que tiveram em relação a diversos povos e culturas do continente, que assim de facto nascia. O primeiro criou na Itália uma «escola» evangélica de vida que irradiou muito para além do Subiaco ou de Monte Cassino, em mosteiros e para além deles, exemplificando a articulação ideal da vida activa, intelectual e contemplativa, sob a orientação duma autoridade que se queria ministerial e pedagógica; os segundos, gregos de origem, souberam traduzir a verdade evangélica na linguagem corrente, criando o próprio alfabeto veicular da cultura eslava. Depois, século após século, monges e letrados cristãos acompanharam reis e inspiraram reformas, dando à história europeia uma dimensão mais ampla do que a dos simples factos políticos ou episódios militares. Por mera exemplificação, Alcuíno de York, junto de Carlos Magno, ou Otão de Frisinga, junto de Frederico 1, deram às várias reformulações do império uma intencionalidade cultural que não teriam sem eles.

Poderíamos prosseguir, pois mesmo quando o século XV levou o que restava do mundo bizantino para a órbita turco-muçulmana, ou quando a ocidente o saber foi transitando dos claustros para as academias, ainda nos encontraremos na ambiência cultural cristã, quer pela fuga para ocidente dos sábios de Constantinopla, quer pelas próprias polémicas então surgidas entre «Igreja» e «Estado» ou «ciência» e «religião», só possíveis na base cristã que todos de algum modo continuavam a partilhar.

Retomemos então, porventura com mais clareza agora, as palavras de João Paulo II: «Mesmo a modernidade europeia, que deu ao mundo o ideal democrático e os direitos humanos, recebe os seus valores da herança cristã.» Modernidade que assenta na consideração mais detalhada do mundo, na sua consistência específica, precisamente como a revelação bíblica acabou por ser percebida: o mundo é criação, essencialmente distinto do Criador, entregue ao homem para o «encher e dominar». As polémicas entre alguns sábios e alguns teólogos, tão ilustradas no «caso Galileu», são internas e não externas ao Cristianismo e só por este suportadas sem eliminação de termos.

Galileu (+ 1642) era tão católico como os seus críticos e era à Bíblia que também se referia, com uma interpretação que o próprio texto na sua globalidade permitia. E como ele pensavam muitos outros, igualmente católicos e críticos dos críticos. Um cardeal lembrou na altura que «a Bíblia não diz como é o Céu, mas como se vai para lá»... Modernidade ainda em relação ao Estado, considerado como instância autónoma e determinante, no que à vida pública se refere. Ou aos direitos humanos, como se formularam a partir dos séculos XVII e XVIII, quer defendendo os povos indígenas face aos colonos europeus, quer visando o funcionamento democrático das instituições.

Em qualquer destes e doutros casos matriciais da modernidade, foi frequente a referência à igualdade original de todos segundo o Génesis, ou às palavras de Cristo, bem como à distinção evangélica entre Deus e César, por mais que isso contrariasse entendimentos posteriores, que tinham concentrado nos soberanos a autoridade política, ou tinham feito destes os protectores da religião e seus propagadores mundo fora. Para mais, a vida das comunidades cristãs, em capítulos, colegiadas, irmandades, mosteiros ou conventos, transportara consigo a experiência viva de decisões participadas e debates criativos, em que as democracias também se inspiraram.

Não é excessiva a afirmação papal, pois que se limita a constatar um facto que, não sendo linear nem unívoco, não ilude - mesmo quando eventualmente esqueça - a matriz e o âmbito cristãos. Poderemos reler agora - porventura ainda mais claramente - o citado trecho papal: «A Europa é qualificada, não tanto pelo espaço geográfico, como sobretudo por um “conceito prevalentemente cultural e histórico, que caracteriza uma realidade nascida como continente em virtude também da força unificadora do Cristianismo, que soube integrar entre si povos e culturas diversos e está intimamente ligado a toda a cultura europeia”.» Nada de abusivo aqui, antes a pura constatação factual. Um após outro, os povos que se estabeleceram a ocidente das estepes caucasianas, após a queda do Império Romano do Ocidente, foram sendo integrados pela respectiva conversão ao Cristianismo numa autêntica comunidade de valores culturais que, mais religiosa ou mais secularmente, define a Europa.

Define-a ainda agora, para cristãos ou não-cristãos que nela convivem. E, sendo esses mesmos valores os que estimularam o progresso em termos de ciência, direitos humanos e democracia, bom será que o continente continue a reconhecer a fonte e lhe continue a aurir a seiva. É este mesmo o sentido da afirmação de João Paulo II e do sínodo dos bispos, um pouco adiante: «Para dar novo impulso à sua história, a Europa deve “reconhecer e recuperar, com fidelidade criativa, aqueles valores fundamentais, adquiridos com o contributo determinante do Cristianismo, que se podem compendiar na afirmação da dignidade transcende da pessoa humana, do valor da razão, da liberdade, da democracia, do Estado de direito e da distinção entre política e religião”.»

É oportuno verificar como este conjunto de aspectos - inclusivamente o último - é referido à herança viva do Cristianismo na vida europeia. Seria interessante verificar ao menos que tais notas não caracterizam tão expressivamente outras culturas e civilizações, não tocadas pela mesma inspiração religiosa específica. Tão expressivamente e apesar de tudo, repito.

Daí a insistência papal no reconhecimento e na recuperação dos valores cristãos da tradição europeia. E por esta ordem: reconhecer para recuperar, para «dar novo impulso» à história europeia. Sem qualquer triunfalismo ou minimalismo contrários: outras tradições geraram valores complementares. Cada vez mais presentes na Europa, trazem contributos seus, reveladores de humanidade também. Os próprios do Cristianismo constituem base geral de acolhimento, tanto para o divino como para o humano, tanto para o indígena como para o estrangeiro, tanto para a mística como para a ciência, tanto para a autoridade como para a liberdade, corrigindo sempre a experiência concreta pela referência última à atitude de Cristo, universalmente apreciada.

A Europa não será um «clube cristão» no sentido excludente do termo. Mas, inspirando-se no exemplo de Cristo, garantirá a todos, cristãos ou não-cristãos, um lugar consistente de encontro e projecto.

D. Manuel Clemente

in Portugal e os Portugueses, ed. Assírio & Alvim

13.01.2009

 

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