Poesia
O bebedor nocturno
A Assírio & Alvim reeditou recentemente “O bebedor nocturno”, poemas mudados para português por Herberto Helder.
A obra inclui poesia, canções e enigmas da tradição judaica, árabe, arábico-andaluz, egípcia, mexicana, indonésia, japonesa, esquimó, tártara, índia e grega.
Herberto Helder traduz também sete salmos do «Velho Testamento» (22, 42, 57, 69, 88, 137 e 139) e o também bíblico Cântico dos Cânticos.
Salmo 42
A gazela brame correndo para a água, e corre a minha alma para ti.
Quando verei Aquele de que tenho tanta sede?
Cresce-me o pranto se me perguntam onde está o Deus vivo.
Triste, lembro-me de haver caminhado para ti,
entre os gritos delirantes de um povo na sua festa.
Que tens, ó minha alma, que estremeces de melancolia?
Porquê gemer e não cantar Aquele
onde se apoia a tua face?
Sobre os montes do exílio tua lembrança me enlouquece.
O abismo tem sede de abismo: tuas chuvas turbilhonantes
caem sempre sobre mim, no fragor das cataratas.
Nascia-me de ti um canto tumultuoso,
longamente agora esqueço nesta inspiração das lágrimas.
- Onde está o Deus vivo? – perguntam-me os frios de coração. E eu pergunto onde está o meu Deus vivo.
Que tens, ó minha alma, que estremeces de melancolia?
Porquê gemer e não cantar Aquele
onde se apoia a tua face?
Onde está o Deus vivo, que se não esgota
o tempo das trevas? Sobre os montes do exílio, tremo e peço que revele a sua luz.
Que eu mencione em minha cítara um Deus de alta presença.
Que tens, ó minha alma, que estremeces de melancolia?
Porquê gemer e não cantar Aquele
onde se apoia a tua face?
Cântico dos Cânticos (primeiro poema)
Sulamite
Sou morena mas bela, ó raparigas de Jerusalém, como as tendas de Quedar,
como os pavilhões de Salomão.
Não olheis meu rosto bronzeado:
foi o sol que me queimou.
Os filhos de minha mãe viraram-se contra mim,
mandaram-me guardar as vinhas.
Porém, eu não guardei a minha própria vinha.
Diz-me, tu a quem ama o meu coração:
onde apascentas o rebanho,
onde o recolhes ao meio-dia?
Para que eu não erre, cara velada, como uma vagabunda,
entre os rebanhos dos teus companheiros.
Coro das raparigas de Jerusalém
Se não sabes, ó mais bela entre as mulheres,
segue as pègadas dos rebanhos,
apascenta os cabritos junto às tendas dos pastores.
Salomão
Comparo-te à minha égua, atrelada
ao carro do Faraó.
Inalterável em sua maravilha se conserva teu rosto
ao meio das arrecadas, e o pescoço
com seus colares.
Longos pingentes de ouro e esferas de prata,
para ti.
Sulamite
Enquanto o rei se assenta à sua mesa,
exala o meu nardo o seu perfume.
O meu amado é como um ramo de mirra
cravado entre meus seios –
cacho de ligustro nas vinhas de En-Gaddi.
Salomão
Como és bela bela, minha amada, como
és bela.
Teus olhos são duas pombas.
Sulamite
Como és belo belo, meu amado, como
és belo.
Verde de folhagem é o nosso leite verde.
Salomão
As traves da nossa casa são de cedro, os forros
em madeira de cipreste.
Sulamite
Eu sou a rosa de Saron, o lírio dos vales.
Salomão
Como o lírio no meio dos cardos,
assim é a minha amada entre as outras raparigas.
Sulamite
Como a macieira entre as árvores de um pomar,
assim é o meu amado entre os homens.
- Sentei-me à sua sombra, coberta
pelos grandes frutos da sua árvore.
Levou-me o meu amado pelas câmaras da festa,
e era o amor o estandarte que ele abria sobre mim.
- Dai-me bolos de passas, reanimai-me
com maçãs.
Porque eu estou doente de amor.
O seu braço esquerdo está debaixo da minha cabeça,
o seu braço direito aperta-me
fortemente.
- Suplico-vos, ó raparigas de Jerusalém,
pelas gazelas, pelas corças dos campos,
não acordeis, não acordeis o meu amor, antes que ele o deseje.
Herberto Helder
In O bebedor nocturno, ed. Assírio & Alvim
07.11.10
Autor
Herberto Helder
Editora
Assírio & Alvim
Ano
2010
Páginas
192
Preço
9,00 €
ISBN
978-972-371-505-7