Leitura
O grão de amendoeira
A palavra «amêndoa», «amendoeira» ("saqed"), significa aquele que vigia. De facto, a amendoeira é a primeira árvore a florir na primavera, ou melhor, ainda em pleno inverno, antes da entrada da primavera, e as suas pétalas brancas dão a ilusão da neve na continuidade do inverno. A fragilidade da sua flor acrescenta-lhe beleza. A amendoeira é um sinal da vigilância, «árvore estúpida», mal vem o sol floresce, não espera pela primavera. Ao mesmo tempo ésinal antecipador e anunciador de grandes novas.
No entanto, a sua precocidade é a metáfora para falar de Deus como quem está vigilante até ao pleno cumprimento da sua Palavra (cf. Jr 1, 11ss). «Deus ousa perguntar a Jeremias: "O que vês Jeremias?", ao que Jeremias responde: "Vejo um ramo de amendoeira" (Jr 1,11). E Deus manifesta a sua aprovação: "Viste bem Jeremias, viste bem!" (Jr 1,12). "Bem" diz-se em hebraico "tôb". Mas "tôb" significa também "belo" e "bom". Jeremias vê, portanto, "bem", "belo" e "bom". (...) Jeremias ao responder: "Vejo um ramo de amendoeira", Jeremias já ergueu os olhos da invernia e da tempestade e do lodo e da lama e da catástrofe e da morte que tinha pela frente, e já os fixou lá longe ou aqui tão perto, na frágil-forte-vigilante flor da esperança, que a amendoeira representa.» Outras imagens bíblicas como o bastão de Aarão que se transformou num ramo de amendoeira florida (cf. Nm 17,23) indicam a bênção de Deus.
A seguir à floração a amendoeira desenvolve as folhas e um casulo de casca verde e dentro deste, um outro casulo de cor castanha mais duro, em cujo interior surgirá o grão de amêndoa. Só quando descascada e partida a amêndoa se descobre o grão, qual coração da mesma amêndoa. A amêndoa, o fruto da amendoeira, é muito usada na doçaria tradicional portuguesa e na cosmética. Na terra dos meus pais, Parada, concelho de Alfândega da Fé, a amêndoa é umas das fontes de riqueza da aldeia e um dos seus símbolos. A amêndoa é também representada na iconografia cristã como o enquadramento ogival que recolhe a figura de Cristo na Ascensão e ainda tida como um dos símbolos eloquentes da Páscoa, o núcleo do mistério cristão. Por isso mesmo, escolhi o título “O Grão de Amendoeira”para esta coletânea de textos e meditações realizadas em alguns retiros espirituais. O Espírito ressurge na magnificência da própria natureza. Numa poesia anónima lê-se: «O estudioso disse à amendoeira: fala-me de Deus. E a amendoeira floriu.»O grão de amendoeira é o sabor do silêncio no coração da Igreja orante.
Além do grão de amendoeira, cativa-me muito a imagem da fonte, aquela fonte da aldeia. Na verdade, também a liturgia, que é o coração da Igreja, tem sido comparada à fonte da aldeia, como recordou o servo de Deus João Paulo II:
«Representa uma sua fonte e um ponto culminante. É uma fonte porque aí, sobretudo nos Sacramentos, vão os fiéis beber abundantemente a água da graça, que mana do lado de Cristo crucificado. Para usar uma imagem de que gostava o Papa João XXIII, ela é como que a fonte da aldeia, na qual todas as gerações vêm beber a água sempre viva e fresca. É também um ponto culminante, porque toda a atividade da Igreja tende para a comunhão de vida com Cristo; e é na liturgia que a Igreja manifesta e comunica aos fiéis a obra da Salvação, realizada por Cristo de uma vez para sempre.»
A água que corre sai da profundidade da terra, é algo misterioso, que evoca o próprio mistério da vida. Algumas nascentes de água deram origem a fontes sagradas.
As reflexões do itinerário que faremos tentam ser um humilde traço do único e mesmo mistério que a liturgia celebra, como fonte e vértice da vida eclesial. Ser Mistério para uma vida em Cristo: «por Cristo, com Cristo e em Cristo» é um desafio. Esta fonte de água viva sacia a sede da verdade e da beleza, e o grão de amendoeira remete-nos para o essencial do Mistério. Estes mesmos textos foram propostos em 2010 nos cinco retiros a religiosos (as) em Portugal, Angola e Brasil, nomeadamente às Servas Franciscanas Reparadoras de Jesus Sacramentado e aos Beneditinos do Mosteiro de S. Bento do Rio de Janeiro.
Só o Amor converte
Retiro não é sair para «retirar-se» da vida, mas é encontrar-se com Deus, consigo, com os outros, com a história e com a criação. Retiro é uma experiência forte de silêncio, de escuta e de contemplação. Sabemos que o barulho não faz bem e o bem não faz barulho.
É preciso querer para se ter um bom silêncio. «O lugar essencial do silêncio é um lugar interior, um reino onde o silêncio se enche de vantagem e onde não há fronteiras, pois os horizontes do mundo interior não têm fim. O silêncio é a calma da vida interior. Ele é a profundeza do desconhecido. Ele é presença recolhida, abertura e disponibilidade. Deste modo, ele não pode significar algo mudo, inerte, ele não é um fardo improdutivo. O silêncio autêntico é um despertar pleno de atenção e de disponibilidade.»
Retiro é uma aventura do caminho (ex. os caminhos de Santiago - Ano Compostelano ou Jacobeo). A metáfora da peregrinação, um dos mais antigos exercícios espirituais, ajuda-nos a uma compreensão profunda do tempo do retiro espiritual. Com efeito, o retiro é uma peregrinação interior. O peregrino é alguém que caminha e espera o encontro. Para tal, partir significa perder os pontos de referência na esperança de ganhar tudo. Escreve um autor espiritual: «Há gente que vai em peregrinação para terras distantes. Vai em procissão à volta do templo sem nunca entrar no santuário. Mas eu vou em peregrinação até ao amigo que habita em mim.»
Quem caminha ama o silêncio. O silêncio permite-lhe regular a respiração ao ritmo dos seus passos. Como diz um provérbio “tuareg” (região do deserto Sahara): «O deserto é Deus, o silêncio é a sua palavra. E o peregrino alimenta-se desta palavra.» S. Basílio Magno costumava rezar: «Não sei falar-Te, Senhor. Ensina-me as palavras do silêncio. A ti, Senhor, só podemos louvar com as palavras do silêncio.»
A arquitetura dos lugares de peregrinação traduz o sentido profundo da peregrinação à fonte da vida cristã. Por exemplo, a visita ad limina aos túmulos dos Apóstolos em Roma, a Basílica de S. Pedro é precedida pela colunata que, como dois braços, conduzem os peregrinos ao coração do Mistério. O mesmo na Basílica de S. Paulo (claustro ou jardim fechado), em Fátima, em Lourdes... A verdadeira peregrinação é uma longa oração feita com o corpo todo.
Inácio de Loyola autodefiniu-se «o peregrino», como milhares de mulheres e homens, e recordou que a peregrinação não é uma questão de ascética, mas a ocasião para praticar o essencial, isto é, as três virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade.
O retiro não para me aperfeiçoar, mas para me converter, converter o coração à Palavra que salva e dá a vida. Tornar-se puro, capaz de se fascinar e admirar a Deus, que é tudo e só Amor, na vida quotidiana. Na verdade, só o Amor converte. Jesus gostava de se retirar para o monte ou para o deserto, mas voltava depressa para o meio das pessoas. Deus está onde nós estamos, não devemos procurá-Lo noutro lugar, não devemos evadir-nos... Com efeito, «a vida não é tempo, é encontro com os amigos, sempre novos».
Fazer retiro significa parar, fechar um momento os olhos não para esquecer, mas pelo contrário, para reencontrar-se, para recuperar as forças, para pôr em ordem os pensamentos, para acalmar a angústia. Todavia, não é um simples exercício de autodisciplina. Fazer retiro é como preparar-se para um encontro: retiramo-nos só para estarmos mais seguros de encontrar o rosto de Deus:
no Silêncio
na Beleza
na Autenticidade
na Verdade
O primado do Dom
Em latim cristão, "Gratia" quer dizer a amizade de Deus, o amor de Deus por nós, a benevolência e o estado do homem privilegiado da benevolência de Deus; expressa ainda o dom de Deus, dado por uma benevolência e gratuidade, a ajuda divina. «A caridade, que Deus é», costumava repetir muitas vezes S. Francisco. Não é por acaso que a palavra «caridade» provém do grego "cháris" que significa Graça.
O Papa João Paulo II, na carta apostólica “Novo Millennio Ineunte”, enumera algumas prioridades pastorais para a Igreja hodierna, a saber:
1) a santidade;
2) a oração;
3) a Eucaristia;
4) o sacramento da Reconciliação;
5) o primado da graça;
6) a escuta da Palavra;
7) o anúncio da Palavra.
E, no âmbito da vida espiritual pessoal e comunitária, o Papa respeita um princípio essencial – "Gratiae principatus" – e diz que há «uma tentação que sempre insídia qualquer caminho espiritual e também a ação pastoral: pensar que os resultados dependem da nossa capacidade de agir e programar».
Todos os recursos de inteligência e de ação devem ser investidos no exercício do ministério e na vida espiritual do presbítero, mas é preciso estar consciente do que Cristo adverte: «Sem Mim nada podeis fazer.»
Nos preliminares gerais do livro da “Ordenação do Bispo, dos Presbíteros e Diáconos”consta claramente que pela imposição das mãos e pela oração de ordenação se confere o dom do Espírito Santo e se imprime o caráter. As mãos impostas e as mãos ungidas simbolizam o dom gratuito do Espírito, que por Cristo é comunicado ao presbitério.
«As estatísticas são a nossa ruína...»
«O evangelizador deve deixar-se radicalmente transformar pela mensagem, não deve ter medo de entrar em crise para amadurecer segundo as exigências de Cristo, deve ser profundamente convencido de que vale a pena gastar a vida por Cristo morto e ressuscitado.»
Estamos a viver a nível internacional uma crise financeira (a pior desde 1929), devido ao elevado débito, e que é também efeito da crise dos valores humanos e cristãos fundamentais. Oxalá não falte aos responsáveis dos governos e a cada um de nós a coragem da esperança para a enfrentar e ultrapassar. No entanto, podemos tomar o sentido original da palavra «crise» que não indica só a queda ou a catástrofe, mas uma situação de mudança em que é necessário tomar uma decisão. Devemos, por isso, entender a crise como um desafio à coragem e à confiança. A luz da Páscoa renova sempre a esperança no nosso coração e no coração de todos os homens de boa vontade.
Introduzam-nos no espírito da liturgia e do silêncio orante as sábias palavras de S. Bento: «Escuta, filho, os preceitos do mestre e inclina o ouvido do teu coração; aceita de boa mente o conselho dum pai cheio de ternura e põe-no em prática, para que, pelo trabalho da obediência, tornes Aquele de quem, pela cobardia da desobediência, te afastaras.»
Nota: Esta transcrição omite as notas de rodapé.
José Manuel Cordeiro
In O grão de amendoeira, ed. Pedra Angular
19.07.11
O grão de amendoeira
Autor
José Manuel Cordeiro
Editora
Pedra Angular
Ano
2010
Páginas
176
ISBN
978-989-96145-9-8