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Os melhores contos do Padre Brown

A escolha de um pequeno e apagado sacerdote católico para seu detetive de eleição é talvez o aspeto mais intrigante da incursão de Chesterton no conto policial. A construção do Padre Brown, homem de Deus simples, sábio e humano, é tanto mais curiosa quanto o primeiro conto de que é protagonista foi publicado há cem em 1810, muito antes do autor ter aderido ao catolicismo. (1)

Quando, em 1923, Gilbert Keith Chesterton (1874-1936), jornalista, biógrafo, filósofo e poeta, quis acolher-se à Igreja Católica já os seus contos circulavam em coletâneas como A Inocência do Padre Brown (1911). Não ombreavam, em termos de qualidade literária, apologética ou espiritual, com The Napoleon of Notting Hill (1904), Ortodoxy (1908) ou The Man Who Was Thursday (1908), mas a sua enorme popularidade deixou, rapidamente, a grande distância essas obras maiores. Não por acaso Chesterton foi eleito, em 1929, primeiro presidente do Detection Club fundado por Anthony Berkeley (2).

À primeira vista, o contexto não era favorável ao lançamento de um novo protagonista de romances policiais. A concorrência era grande. Em O Segredo do Padre Brown, o americano Grandison Chace refere Dupin, Lecocq, Sherlock Holmes e Nicholas Carter, e um pouco mais adiante confronta as reflexões de Edgar Alan Poe sobre o método de Lupin, com as deduções «elementares» do brilhante e cerebral Sherlock Holmes recolhidas pelo seu amigo Dr. Watson. Por que se deixou atrair, então, o autor e com ele um número imenso de leitores anglicanos e protestantes pelas investigações criminais de um pequena padre católico com «um rosto tão redondo e desinteressante quanto um pudim de Norfolk» e «uns olhos tão vazios quanto o Mar do Norte»?

Um elemento biográfico ajuda a clarificar o motivo que levou Chesterton a eleger para herói discreto dos seus contos um padre, numa altura em que o catolicismo romano era encarado ainda, no mundo anglo-saxónico, com profunda suspeição. É ele próprio quem nos informa ter sido o padre irlandês John O’Connor o modelo de que se socorreu.

O encontro com o P. O’Connor deu-se por um acaso, em 1904 (3). Chesterton encontrava-se a passava férias em casa de um amigo no condado de Yorkshire quando um admirador da sua obra o convidou para proferir uma palestra na vizinha vila de Keighley. No debate e convívio que se seguiram, sensibilizou-o o tato com que o coadjutor da comunidade católica local se integrou, discretamente, naquele ambiente maioritariamente anglicano. Na manhã seguinte, o padre disponibilizou-se para o orientar de volta a Ilkley, a pé. E na caminhada pela charneca de West Riding, despertou entre os dois uma amizade que perduraria até à morte de Chesterton, trinta e dois anos depois. Foi durante esse passeio que o padre o impressionou pela primeira vez com a sua profunda compreensão das falhas e grandezas da condição humana, acompanhada de uma surpreendente inocência no modo respeitoso como se referia aos outros. Por isso, em 1927, dedicou-lhe a coletânea “O Segredo do Padre Brown” com as palavras «Ao Padre John O’Connor […] cuja verdade é mais estranha que a ficção, com uma gratidão maior que o mundo».

Esta coexistência, paradoxal aos olhos da sociedade contemporânea, da sabedoria e da inocência é precisamente o que Chesterton procura captar na figura do seu detetive católico. Evoca-o nos títulos que escolhe para as duas primeiras coletâneas de contos: A “Inocência do Padre Brown” (1911) e “A Sabedoria do Padre Brown” (1914). A razão que o levou a empreender essa aventura literária, segundo nos relata, foi um acontecimento fortuito ocorrido à chegada a Ilkley. Dois estudantes de Cambridge, ao vê-lo na companhia do P. John O’Connor, comentaram, divertidos, que o clero ter a sorte de viver longe da realidade e nada saber «do mal que há no mundo». A ironia da frase, escutada depois da longa conversa com o padre, levou-o pensar que, em comparação com o padre, os dois jovens «sabiam tanto da verdadeiro mal como duas crianças de carrinho». Foi então que lhe veio à cabeça, confessa na sua autobiografia, «a ideia de fazer algum uso artístico desta contradição cómica, mas também trágica; e de construir uma comédia em que pudesse parecer que o padre nada percebia, quando na realidade entendia mais de crime do que o próprio criminoso» (4).

Ao ler os contos, o sacerdote desajeitado que Chesterton idealizou, com o seu «grande e puído chapéu-de-chuva, que lhe estava sempre a cair ao chão», parece de início não ser mais do que uma antecipação do profiler contemporânea: um observador atento do comportamento humano, um analista de perfis psicológicos que identifica o criminoso a partir do seu agir e da vítima que preferiu. Confrontado com essa hipótese em "O Segredo do Padre Brown", o pequeno sacerdote reage, no entanto, com inesperada energia e explica que esse método, dito científico por muitos, obrigá-lo-ia a «situar-se fora do homem e a estudá-lo como se fosse um gigantesco inseto», sujeitando o eventual criminoso ao que o padre «chamaria uma luz morta e desumanizante». Pelo contrário, o seu método, se assim se podia chamar, partia do simples reconhecimento de que «Estou dentro de um homem. Estou sempre dentro de um homem». É no interior da sua condição humana que, na verdade, aguarda «até saber que estou dentro de um assassino […]. Até ser mesmo um assassino.»

A deteção do criminoso não parte, portanto, de um exercício científico mas de um «exercício religioso», explica o Padre Brown. No seu horizonte não está a entrega do prevaricador à justiça humana, embora não a negue e com ela colabore. O seu objetivo é encontrar o pecador, quando o há – na última série de contos, aumenta o número de crimes que o são só em aparência –, para lhe falar a verdade e abrir o caminho à conversão.

Para isso, movido pela sua vocação e missão, o padre percorre o caminho traçado por «Aquele que não conheceu o pecado» e a quem «Deus fez pecado por nós, para que nele nós nos tornássemos justiça de Deus” (2 Co 5,21). É o que, no diálogo introdutório da última coleção, traduziu o gesto final do Padre Brown, quando «também levantou a sua taça, e a chama da lareira tornou o vinho tinto transparente [...]. A chama vermelha parecia prender-lhe os olhos e absorver-lhe a concentração que nela se afundava cada vez mais, como se essa taça única contivesse em si, qual mar vermelho, o sangue de toda a humanidade, e a sua alma mergulhasse permanentemente, em escura humildade e invertida imaginação, abaixo dos seus monstros mais profundos e do seu lodo mais antigo.»

A humildade condu-lo a uma leitura do real que tem em conta, para além dos inevitáveis condicionalismos psicológicos e sociais de qualquer opção, também a misteriosa dimensão da liberdade humana, capaz de «fechar e escurecer todas as claraboias [da consciência] por onde passa a boa luz do dia que desce do céu».

O conhecimento íntimo que revela da mente do criminoso não resulta, portanto, só da sua experiência de confessor, mas da partilha de uma comum humanidade decaída. O que os salva, a ele e ao pecador, é a caridade que os leva a viajarem juntos ao centro de si mesmos para aí reconhecerem o horror da maldade praticada, ou que o padre bem poderia ter praticado, e remontarem pelo caminho da verdade e do remorso à graça que do alto é mediada pela amizade. É esse O Segredo de Flambeau, procurado «pela polícia de dois hemisférios». Mestre do crime, que desdenhava os sermões dos justos e o repúdio dos bem-pensantes, teve a sorte de se cruzar com o Padre Brown. Agora, retirado em Espanha, reconhece que: «Só o meu amigo me disse que sabia exatamente por que é que eu roubava; e desde então nunca mais voltei a roubar» (sublinhado meu). Não foi uma simpatia qualquer que o tocou, mas uma amizade desinteressada, oferecida em plena consciência e com conhecimento exato da maldade que estava na origem dos seus crimes.

Talvez seja isso que o leitor intui e com o qual simpatiza, mais do que com o enredo engenhoso encontrado pelo autor para cada caso que relata. Ou talvez seja porque na curiosidade despertada por cada mistério se esconde a sede de um mistério maior. No fundo, como escreve Chesterton um dia: «Toda a ciência, mesmo a ciência divina [a Teologia], é um sublime conto de deteção. Só que não para detetar por que está morto alguém; mas o segredo mais obscuro de saber por que está vivo.» (5)

 

(1) Os primeiros contos do Padre Brown apareceram na segunda metade de 1910, há precisamente 100 anos, na revista Storyteller e na revista da editora Cassel.

(2) Para os dados históricos e biográficos que refiro nesta Apresentação sigo sobretudo a obra de Joseph Pearce, Wisdom and Innocence. A Life of G K Chesterton. San Francisco: Ignatius Press 1996. Entre os primeiros membros mais conhecidos do Detection Club contavam-se Dorothy L. Sayers, Ronald Knox e Agatha Christie. Mais tarde, associaram-se, autores como Margery Allingham, Gladys Mitchell, Ngaio Marsh e John Dickson Carr (cf. Pearce, p. 367).

(3) Cf. Pearce, p. 90-93.

(4) Citado em Pearce, p. 92.

(5) The Thing. London 1929, p. 78. Citado por Pearce, p. 371.

 

P. Peter Stilwell
Vice-reitor da Universidade Católica Portuguesa, diretor da Faculdade de Teologia
In Os melhores contos do Padre Brown, ed. Assírio & Alvim
25.10.10

Capa

Os melhores contos
do Padre Brown

Autor
G.K. Chesterton

Editora
Assírio & Alvim

Ano
2010

Páginas
240

Preço
14,40 €

ISBN
978-972-371-4227








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