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Exposição

«Tudo vale a pena se a alma não é pequena» - Os Portugueses no tempo dos Descobrimentos

Depois da exposição Fátima no Coração da História, apresentada em 2003 no Meeting de Rimini, o Centro Cultural de Lisboa Pedro Hispano realizou em 2008 uma mostra sobre a aventura dos portugueses no tempo dos Descobrimentos (1415-1580): Para do mundo a Deus dar parte grande (Camões, Lusíadas, I, 6), no encontro intitulado Ou protagonistas ou ninguém.

Durante uma semana mais de sete mil pessoas participaram em visitas guiadas, fazendo a experiência do aperto do Mediterrâneo à abertura das navegações oceânicas, num percurso guiado pela poesia portuguesa de Camões e Pessoa; pelas cartas, sermões e tratados de vários jesuítas tais como o Padre António Vieira, São Francisco Xavier, Frei Gaspar da Cruz, Padre Luís Fróis e tantos outros; e a carta de Pêro Vaz de Caminha e as crónicas de Gomes Eanes de Zurara, Pêro de Magalhães Gândavo...

Um grupo de dezoito guias da exposição, não se cansava de falar, das 9h30 às 23h30, desta experiência feita pelos portugueses nos séculos XV e XVI. O mar podia ser visto num filme que se encontrava no percurso da exposição. Podemos continuar a relatar tantos outros testemunhos que nos chegaram e que eram visíveis no final da visita à exposição: a novidade da história, o espanto com a experiência, o não ter medo da desproporção, o abraço gratuito ao outro que é diferente… Esta exposição é uma ajuda fundamental para nos darmos conta do que é que moveu aqueles homens, não por uma nostalgia, não por um revival nacionalista, mas para uma consciência mais profunda do que nos toca a viver cada um de nós.

A exposição relata a aventura do povo português, num período em que a Europa se digladiava em batalhas sem fim e o Mediterrâneo se mostrava demasiado pequeno: urgia ultrapassar as colunas de Hércules e entrar no oceano desconhecido. Diante do oceano descobrimos que a alma de um homem, o meu coração não é pequeno porque está feito para um desejo de felicidade, desejo de um destino grande.

A história europeia está assinalada por conflitos, confrontos, franceses, ingleses e franceses aliados contra os alemães, até desembocar nas guerras mundiais. Como é que na ponta extrema da Europa, um país com uma população pouco numerosa, apenas um milhão de habitantes, tinha um outro horizonte feito de um ímpeto de descoberta, de um ímpeto de aventura, que levou à definição de rotas sempre mais audazes e, literalmente, à abertura do mundo, do Mediterrâneo: primeiro a África, até ao Cabo da Boa Esperança, depois uma das grandes descobertas da época moderna, a passagem entre o Atlântico e o Índico, a Índia, a China e depois o encontro com civilizações desconhecidas, africanas e grandes civilizações de tradições plurimilenares, como a indiana ou a chinesa? Todas estas aventuras situam-se entre os séculos XV e XVI.

Nos cem anos que vão da conquista de Ceuta à morte do grande Afonso de Albuquerque (1415-1515) os portugueses conquistaram no norte de África um grande número de cidades fortificadas (Ceuta, Tânger, Arzila), descobriram e povoaram as ilhas atlânticas (um total de cerca de 26 ilhas), exploraram a costa ocidental de África, construíram no golfo da Guiné o castelo de São Jorge da Mina, fizeram alianças com os reis do Benim e do Congo, navegando no Atlântico sul, descobriram o Brasil, passaram o Cabo da Boa Esperança, chegaram à Índia e estabeleceram um império no Extremo Oriente. Nos cem anos seguintes mantiveram e defenderam esse império do Oriente, entrando em relação com centenas de povos e reinos de diferentes religiões e culturas, ao mesmo tempo que povoavam e evangelizavam o Brasil e expandiam o território sul-americano.

Para compreender a aventura quinhentista de Portugal é preciso colocá-la na perspetiva da História da Igreja. A reconquista da Península Ibérica foi uma causa comum da Europa cristã. Antecede em mais de duzentos anos as cruzadas da Terra Santa: mas quando a cristandade se mobilizou para a libertação do Santo Sepulcro, havia por toda a Europa a consciência de que a luta que se travava no Ocidente da Europa era a mesma que decorria na Palestina.

Quando em 1314 o Papa Clemente VI extinguiu a Ordem do Templo, o rei D. Dinis obedeceu extinguindo a ordem; mas como os templários portugueses tinham sido declarados inocentes no tribunal do bispo de Lisboa, cinco anos depois obteve do Papa João XXII licença para criar a uma nova ordem, a Ordem de Cristo, dotou-a com todos os bens da ordem extinta e fez professar nela quase todos os antigos templários, que mantivera discretamente ao seu serviço. A missionação e o governo eclesiástico, tanto como o comércio, conquista e navegação, estarão a cargo da Ordem de Cristo nos primeiros cem anos das navegações portuguesas.

Esta consciência de travar o bom combate de Cristo está presente sobretudo no infante D. Henrique, chamado “o navegador”. Terceiro filho do rei D. João I, o conquistador de Ceuta, Henrique foi feito pelo pai Grão-mestre da Ordem de Cristo. Encontrou-se assim à cabeça de um grande património de terras e castelos, e de um grande exército de cavaleiros e escudeiros consagrados a Deus: e tudo isso, gentes e bens, lançará na exploração do Atlântico, na navegação, conquista e evangelização de África, na demanda do Prestes João e na descoberta do caminho marítimo para a Índia. É o segundo grande protagonista, D. João II: entre 1474 e 1495 conduzirá com grande energia e determinação a exploração da costa de África e o avanço para a Índia.

São Francisco Xavier parte para o Oriente como embaixador de D. João III, com credenciais que obrigam as autoridades portuguesas a dar-lhe toda a colaboração que pedir; é também legado do Papa, com plenos poderes eclesiásticos para reformar a Igreja e, por Santo Inácio fá-lo provincial da província Jesuíta do Oriente. A passagem de S. Francisco Xavier pelo Oriente é um facto incompreensível com as categorias do racionalismo histórico. Em dez anos percorreu distâncias imensas, anunciando o amor e a misericórdia de Cristo a povos de línguas, culturas e religiões muito diferentes. De Goa a Malaca e ao Japão, Xavier converteu e batizou milhares de pessoas, lançando as bases de comunidades cristãs que duram até hoje. O seu desejo maior era evangelizar a China. Morreu, consumido de cansaços e doenças, na ilha de Coloane, às portas da China, oferecendo a sua vida pela conversão do povo chinês. E não nos podemos esquecer da história do P. Inácio de Azevedo e dos 40 mártires do Brasil.

Não podemos deixar de referir alguns dos limites desta exposição: o período cronológico considerado tem início em 1415 e vai até 1580; não se trata de uma exposição sobre os Descobrimentos e a expansão marítima europeia, concentra-se apenas nos Descobrimentos portugueses. A desproporção entre recursos humanos, materiais e organizativos e a dimensão do império construído é muito mais dramática do que a das outras nações europeias. A vastíssima extensão do império marítimo que os portugueses criaram, depois de 1440, é um acontecimento histórico único que suscita grandes questões nos historiadores. A passagem dos cabos Bojador e da Boa Esperança puseram em causa todo o saber antigo; na primeira fase dos Descobrimentos, até à chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil (1500), há dois elementos que emergem como centrais: o domínio do oceano e o domínio das regiões e espaços vastíssimos. Há uma grande diferença entre a navegação no Mediterrâneo e a navegação no Atlântico. O encontro com a terra inexplorada provocou o fascínio da nova vegetação encontrada, e a relação estabelecida com as grandes civilizações, nomeadamente, a Índia, a China e o Japão.

Como foi possível? O enigma da expansão portuguesa não é fácil de explicar, mas é possível identificar alguns elementos fundamentais: a cultura portuguesa daquele período estava perpassada pelo Cristianismo, uma certa visão do mundo, da terra, dos povos, que fazia com que a fragilidade, os limites, a desproporção não fosse vivida como uma determinação final.

Ver esta exposição leva a darmo-nos conta das linhas subtis que são as rotas, através do vastíssimo mar, das passagens que assinalaram, não só descobertas geográficas, mas passagens epocais e culturais; e a frase conclusiva, a que nos acompanhava à saída, a frase do grande apóstolo do Brasil, padre António Vieira, tão ligada a esta pequena terra e tão aberta ao infinito: «Nascer pequeno e morrer grande é chegar a ser homem. Por isso nos deu Deus tão pouca terra para o nascimento, e tantas terras para a sepultura. Para nascer, pouca terra; para morrer toda a terra. Para nascer, Portugal, para morrer, o mundo».

Milagrosamente, os descobrimentos continuam nos séculos que assinalam o início da modernidade, o início do homem medida de todas as coisas, o início da época que quererá tirar Deus do real, pô-lo fora da história, continua a aventura, a curiosidade do homem medieval, através deste pequeno povo. Mas esta é a aventura de cada um de nós, não é por acaso – olhem bem para as rotas – hoje, no início do terceiro milénio, em circunstâncias muito diferentes (existem os jatos, podemos ir rapidamente para todo o lado), mas o problema cultural é o mesmo: estamos diante do Oriente, a China e a Índia representam duas grandes potências emergentes.

Quem sabe se não nasce no coração de alguns de nós uma nova sugestão, uma ideia para uma nova aventura, porque o verdadeiro protagonista é o que sabe acolher, reconhecer e obedecer às grandes circunstâncias ou às mais pequenas, mas vê tudo à luz do desígnio de um Outro. O que desejo para cada um de nós exprimo-o com o verso de Fernando Pessoa: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”».

Isabel Alçada Cardoso (Texto e fotografia)

Centro Cultural de Lisboa Pedro Hispano

25.02.2009

 

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